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Resumo
O presente artigo analisa as formulações de Jean Laplanche construídas em torno da questão: existiria uma simbolização bem-sucedida? Os conceitos de sublimação e de inspiração, tal como concebidos no interior da teoria da sedução generalizada, ganham destaque nessa análise que toma como mote a curiosidade sexual das crianças, no intuito de explorar a seguinte questão: dentre as diversas possibilidades oferecidas pelo universo cultural como ajuda à simbolização dos enigmas sexuais que habitam a criança, seria possível arbitrar entre aquelas que promoveriam abertura às traduções e aquelas que fracassariam nesse intuito?


Palavras-chave
curiosidade sexual das crianças; teoria da sedução generalizada; sublimação; inspiração; Jean Laplanche.


Autor(es)
Maria Teresa de Melo Carvalho Carvalho
é doutora em psicanálise pela Universidade de Paris VII, na França.


Notas

[i]    {O UNIVERSO MITO-SIMBÓLICO} J. Laplanche, "Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos", in Sexual, p.286.

[ii]   J. Laplanche, op. cit., p. 286.

[iii]  Cf. J. André, La sexualité féminine, p.11 e J. André (org.), Les 100 mots de la sexualité, p. 67.[iv]  S. Freud, "O esclarecimento sexual das crianças", in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IX, p. 135-144.[v]   Cf. S. Freud, "Sobre as teorias sexuais das crianças", in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. IX, p. 217.

[vi]  S. Freud, "Análise terminável e interminável", in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, p. 266-267.

[vii]  J. Laplanche, Novos fundamentos para a psicanálise, p. 138-139.

[viii] Cf. J. Laplanche, op. cit., p. 111.

[ix]  Cf. J. Laplanche, Problemáticas II - Castração simbolizações, p. 27-28.

[x]   J. Laplanche, "Três acepções da palavra ‘inconsciente' no âmbito da teoria da sedução generalizada", in Sexual, p. 201-202.

[xi]  S. Bleichmar, Nas origens do sujeito psíquico - do mito à história, p. 81 (grifos de Bleichmar).

[xii]  S. Bleichmar, op. cit., p. 81.

[xiii] S. Bleichmar, op. cit., p. 81.

[xiv] S. Bleichmar, op. cit., p. 81.

[xv]  S. Bleichmar, op. cit., p. 89.

[xvi] Cf. Laplanche, Problemáticas II - Castração..., p. 163-164.

[xvii]       Cf. Laplanche, op. cit., p. 160.

[xviii]      Cf. Laplanche, op. cit., p. 160.

[xix] Cf. Laplanche, op. cit., p. 161.

[xx]  Cf. Laplanche, op. cit., p. 249.

[xxi] Cf. Laplanche, op. cit., p. 250.[xxii]       J. Laplanche, Problemáticas III - A Sublimação, p. 4.

[xxiii]      J. Laplanche, op. cit., p. 6.

[xxiv]      J. Laplanche, op. cit., p. 8.

[xxv]       J. Laplanche, op. cit., p. 9.

[xxvi]      Embora a sublimação possa ser considerada como desfecho favorável de um processo de análise, não se faz a partilha,

[xxvii]     J. Laplanche, "Sublimation et/ou inspiration", p. 321-322 (a tradução dessa passagem, assim como de todas as citações deste mesmo texto de Laplanche são de nossa responsabilidade).

[xxviii]     J. Laplanche, op. cit., p. 316.

[xxix]      J. Laplanche, op. cit., p. 316.

[xxx]       J. Laplanche, op. cit., p. 323.

[xxxi]      J. Laplanche, op. cit., p. 329.

[xxxii]     J. Laplanche, op. cit., p. 331.

[xxxiii]     J. Laplanche, op. cit., p. 332.

[xxxiv]     S. Freud (1910), "Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci", p. 139.

[xxxv]     P. H. Knudsen, How a baby is made.

[xxxvi]     Isso remete-nos a uma recente polêmica que se deu através das redes sociais no Brasil em torno do livro Aparelho sexual e Cia., livro traduzido do francês e destinado à educação sexual das crianças. Além de explicar os fatos da concepção e nascimento dos bebês, esse livro trata também, com naturalidade, da homossexualidade.



Referências bibliográficas

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____. (2006/2015). Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In ____. Sexual. Porto Alegre: Dublinense, p. 281-287.





Abstract
This article analyzes Jean Laplanche’s formulations around the following question: there would be a successful symbolization? The concepts of sublimation and inspiration, as conceived within the theory of generalized seduction, are highlighted in this analysis that took as its motto the sexual curiosity of children, in order to explore the following question: among the various possibilities offered by the cultural universe as an aid to symbolization of the sexual enigma that inhabit the child, would it be possible to arbitrate between those who would promote openness to translations and those who would fail in this intention?


Keywords
sexual curiosity of children; theory of generalized seduction; sublimation; inspiration; Jean Laplanche.

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 TEXTO

O universo mito-simbólico ante a curiosidade sexual das crianças

The mithosymbolic universe in the light of children’s sexual curiosity
Maria Teresa de Melo Carvalho Carvalho

Introdução

Desde 1992, realizam-se bianualmente as Journées Internationales Jean Laplanche, que reúnem estudiosos da teoria desse autor, em torno de um argumento previamente estabelecido. Até 2010, essas jornadas contavam com a presença de J. Laplanche, sempre aberto ao debate com ex-orientandos, com tradutores de seus livros, alguns colegas da Association Psychanalytique de France ou de seu grupo de estudos em Dijon, além de psicanalistas vindos de outros países e interessados em conhecer mais de perto seu pensamento. Assim é composto o grupo de participantes das jornadas, um grupo que, em geral, não ultrapassa o número de 40 pessoas, para que se possa constituir um verdadeiro grupo de debates, mantendo, dessa forma, o propósito para o qual foi criado. Mesmo após seu falecimento, em maio de 2012, as jornadas bianuais continuam acontecendo com o apoio da Fundação Jean Laplanche, filiada ao Institut de France e criada com o objetivo de dar continuidade aos debates, pesquisas e publicações em torno da obra que Laplanche desenvolveu ao longo de sua vida.

O argumento das jornadas deste ano de 2016, realizadas em junho na cidade alemã de Tutzing, pode ser resumido na seguinte questão: o universo mito-simbólico, concebido como assistente de tradução, poderia funcionar, a contrario, como um obstáculo à tradução? O texto que se segue é uma versão reelaborada daquele que apresentei nas jornadas de Tutzing. Cabe aqui explicitar o sentido da palavra composta "mito-simbólico", tal como introduzida por Laplanche nas últimas elaborações de sua teoria da sedução generalizada, para que o leitor não familiarizado com essa teoria possa compreender o sentido da questão acima colocada e acompanhar o desenvolvimento da argumentação ao longo deste artigo.

 

O mito-simbólico

O termo mito-simbólico foi introduzido por Laplanche para designar os esquemas narrativos, transmitidos e renovados pela cultura, que vêm ajudar o pequeno sujeito a tratar, isto é, a ligar e simbolizar, ou ainda, a traduzir as mensagens enigmáticas traumatizantes que lhe vêm do adulto. Traduzir é, portanto, uma forma de ligar a excitação pulsional desencadeada pela mensagem do outro. As narrativas míticas e/ou simbólicas, disponíveis no universo cultural, podem funcionar como ajuda à tradução para o pequeno sujeito impulsionado por essa excitação.

Tomemos, por exemplo, o mito de Édipo. Lembrando-nos de que o complexo de Édipo foi e continua sendo um mito, desde sua versão sofocliana até as versões freudianas e pós-freudianas, Laplanche afirma que: "Ele ajuda a criança a dar uma forma narrativa - à custa de sua própria culpa - às mensagens sexuais, muitas vezes bem mais cruas, que lhe são veiculadas pelos pais, pelo adulto [...]"[i]. E acrescenta: "Esses romances, esses roteiros variáveis entre os indivíduos, seriam, pois, da ordem de esquemas narrativos culturalmente transmitidos, e não, como gostaria a teoria clássica, da ordem de fantasias filogenéticas, pretensamente ‘originárias'"[ii].

Se o mito-simbólico é um recurso que serve à tradução da mensagem enigmática que vem do outro, isso indica que seu estatuto metapsicológico não é aquele de um conteúdo do Inconsciente, muito menos o de um inconsciente originário. Ao contrário, ele está do lado dos conteúdos que servem ao recalcamento, daquelas representações cujo investimento servirá de barreira à emergência da excitação pulsional livre, desenfreada, ou dos restos do processo de tradução, estes, sim, pertencentes ao Inconsciente. É importante observar também que o uso dos termos mito e simbólico na palavra composta mito-simbólico indica o reconhecimento da importância do pensamento freudiano sobre o mito e da importância do pensamento de Lacan sobre o simbólico, mas a noção que daí resulta contém, em sua nova concepção, uma crítica do lugar que coube ao mito em Freud e, ao mesmo tempo, do lugar ocupado pelo Simbólico em Lacan. Ou seja, o termo mito-simbólico vem reafirmar a legitimidade de se introduzir as noções de mito e de simbólico no campo da psicanálise, mas sua concepção no contexto da teoria laplancheana contém uma crítica à abordagem filogenética do mito em Freud, assim como uma crítica à abordagem linguística do Simbólico em Lacan.

Esperamos que o sentido dessa crítica se torne mais claro ao longo de nossa argumentação e, em particular, no item dedicado à questão das simbolizações bem-sucedidas. Antes de chegar lá, no entanto, é importante esclarecer a segunda parte do nosso título, a curiosidade sexual das crianças. Ou seja, por que abordar a questão proposta no argumento das jornadas de 2016 a partir da curiosidade sexual das crianças?
 

Os adultos ante a curiosidade
sexual das crianças

Analisando o material disponível hoje para a educação sexual das crianças - quer sejam os livros infantis, os sites que contêm orientações para os pais ou material para as próprias crianças, como vídeos ou animações em geral - observamos que a referência aos mitos ou lendas sobre a concepção e o nascimento dos bebês ou sobre a diferença entre os sexos, entre outras questões que normalmente são formuladas pelas crianças, cedeu completamente seu lugar às narrativas que privilegiam a "verdade" sobre a sexualidade. O mesmo podemos constatar ouvindo os pais no cotidiano de nossa clínica com crianças, ou os testemunhos espontâneos de pais em conversas em família, ou entre amigos.

É curioso notar também que, embora se considerem preparados para dizer a verdade quando confrontados com a curiosidade sexual dos filhos, por entenderem que essa é a postura correta, são sempre pegos de surpresa pelo momento ou pela forma em que as perguntas são feitas, ou ainda porque deparam, não com as esperadas perguntas, mas com manifestações da sexualidade infantil, como a masturbação, entre outras. Em geral sentem-se confusos ou inseguros sobre o que dizer ou como agir.

 

Parece que, de fato, a evolução dos costumes e, em particular, a "revolução sexual" têm sido fonte de muitas ilusões, conforme vem afirmando Jacques André[iii]. Não se trata, evidentemente, de negar as conquistas dessa evolução, como a superação de vários tabus, de repressões excessivas, etc., mas de reconhecer que a liberação sexual não se traduz, de forma equivalente, por uma liberação da vida psíquica. No caso dos pais, ou dos adultos em geral, confrontados com a curiosidade sexual das crianças, ainda que abertos às conquistas da liberação sexual, não estão imunes a que suas fantasias sexuais inconscientes venham parasitar suas respostas ou suas informações à criança. Isto é, suas fantasias sexuais inconscientes podem se impor, quando propõem às crianças uma ajuda na tradução dos enigmas da sexualidade. A teoria de Jean Laplanche tem muito a nos ensinar sobre esse descompasso entre a assim chamada "liberação sexual" e a permanência, no inconsciente, da sexualidade infantil recalcada.

 

As proposições freudianas sobre o esclarecimento sexual das crianças
à luz da teoria da sedução generalizada

Dizer a verdade às crianças em resposta à sua curiosidade sexual foi a recomendação de Freud no primeiro artigo que escreveu sobre o tema[iv]. Um ano mais tarde, no artigo sobre as teorias sexuais infantis, ele apresenta uma análise bem mais complexa da questão, ressaltando a relação estreita entre a curiosidade sexual da criança e a operação do recalcamento. Afirma que as respostas evasivas do adulto ou aquelas que propõem à criança mitos e fábulas sobre a origem dos bebês, por exemplo, provocam sua desconfiança e a levam a suspeitar de que o adulto esconde algo que é proibido, passando a manter secretas suas pesquisas ulteriores. Esta seria a ocasião do primeiro conflito psíquico, conforme ele esclarece: de um lado permanecem as concepções pelas quais a criança sente uma preferência de natureza pulsional, mas que não são aquelas do adulto e, de outro, ficam as concepções creditadas pela autoridade do adulto, mas que não satisfazem a criança[v].

 

Em um texto tardio, "Análise terminável e interminável", de 1937, Freud retoma essa questão ao comparar as limitações do alcance profilático de uma análise com as limitações do esclarecimento sexual das crianças e reconhece que os efeitos preventivos desse esclarecimento têm sido grandemente superestimados, embora ele não seja prejudicial ou desnecessário. Faz uma outra comparação curiosa: "Por longo tempo após receberem esclarecimentos sexuais, elas se comportam como as raças primitivas que tiveram o cristianismo enfiado nelas, mas que continuam a adorar em segredo seus antigos ídolos"[vi]. Reconhece, portanto, que mesmo as respostas corretas dos adultos têm o efeito de ocasionar uma dissociação na mente da criança, que não as assimila prontamente e continua com suas antigas teorias sexuais.

 

Ora, uma tal constatação remete-nos à ideia de uma inadequação de linguagens entre o adulto e a criança, conforme a entende a teoria da sedução generalizada. Essa inadequação seria, no fundo, como nos diz Laplanche, "inadequação da criança ao adulto, mas também e primordialmente, inadequação do adulto ao objeto-fonte que age nele mesmo"[vii]. Se a criança permanece presente no adulto, este, diante da criança, será particularmente suscetível ao infantil que o habita[viii]. É nesse sentido que ele afirma que o segredo dos adultos não é somente um elemento negativo, algo subtraído à criança, mas abre também a possibilidade para que a criança resguarde o seu domínio secreto ou, eventualmente, compartilhado com outras crianças, com suas próprias concepções e suas fantasias sobre a sexualidade. É como se o domínio reservado dos adultos funcionasse como garantia de um domínio reservado da criança e, nesse sentido, podemos entender a dimensão estrutural aí implicada. Ou seja, o domínio reservado do adulto remete a um domínio proibido, a uma clivagem psíquica, e isso permite que se constitua, do lado da criança, uma clivagem semelhante, aquela que estabelece o inconsciente como domínio psíquico separado do pré-consciente-consciente[ix].

 

As narrativas mito-simbólicas como ajuda à tradução dos enigmas da sexualidade

Do que foi exposto até aqui, depreende-se que, segundo a teoria da sedução generalizada, o adulto, diante da criança, ocupa simultaneamente duas posições: ele é sedutor, mas também aquele que pode fornecer à criança uma "ajuda à tradução" das mensagens enigmáticas nela implantadas, quando estas passam a exercer seu potencial de excitação. A expressão "ajuda à tradução", adotada por Laplanche a partir de uma sugestão de Francis Martens, estudioso de sua teoria, foi definida nos seguintes termos:

 

Confrontado às mensagens do adulto comprometidas pelo inconsciente, logo, enigmáticas, intraduzíveis somente pelos meios dos códigos relacionais que tem à sua disposição (códigos autoconservativos), o infans deve recorrer a novos códigos. Mas ele não os inventa a partir de nada. Possui a seu alcance, muito cedo, por seu meio cultural geral (e não unicamente familiar), códigos, esquemas narrativos pré-formados. Poder-se-ia falar de uma verdadeira "ajuda à tradução" proposta pela cultura ambiente[x].

 

Como ilustração da importância da ajuda à tradução proporcionada pelo universo mito-simbólico, retomaremos, a seguir, a discussão do caso clínico de Antônio, feita por S. Bleichmar em seu livro Nas origens do sujeito psíquico. Esse livro baseia-se em sua tese de doutorado, realizada sob a orientação de Laplanche, e nos mostra as implicações da teoria da sedução generalizada na clínica com crianças. Antônio, de 10 anos de idade, foi encaminhado a Bleichmar devido a uma acentuada e persistente dificuldade de aprendizagem, cujo traço mais chamativo, segundo seus professores, era a dificuldade de memorização. Já havia passado, sem sucesso, por atendimento psicopedagógico, aulas particulares e mudança de escola.

 

Na primeira entrevista conjunta mãe-criança, alguns momentos da fala da criança, em resposta à fala da mãe, chamaram a atenção de Bleichmar. Ao relatar acontecimentos muito precoces da infância do filho, a mãe se lembrou de que, quando Antônio ainda não havia completado um ano de idade, ela ficou grávida novamente, embora estivesse com problemas no casamento. Aos três meses de gestação teve um aborto espontâneo, o que a deixou muito triste. Ao ouvir a referência ao aborto, Antônio toma a palavra e acrescenta: "Ah, sim, no banho. Puseram o bebê em um frasco. Eu estava na sala e de repente havia muito sangue (vermelho), mamãe foi ao banheiro, trouxeram um frasco. Vi o frasco, mas não vi nada"[xi]. A mãe continua então seu relato, dizendo que voltou a ficar grávida e que teve seis meses de uma gravidez tranquila. Volta-se então para Antônio e lhe pergunta se ele se recorda do que aconteceu em seguida, ao que ele responde: "Sim, havia muito sangue no chão outra vez; tive medo que morresses. Não queria ficar em casa, íamos ao hospital. Havia um murinho e um vidro, aproximei-me e vi um tubo que tinha um aquário, embaixo havia algodão, o menino estava agarrado ao tubo, dando voltas, voando"[xii]. A mãe acrescenta: "Tinhas dois anos e três meses"[xiii].

 

Em se tratando de um menino com dificuldade de memorizar, é curioso constatar a presença de muitos detalhes nas recordações de vivências tão antigas, de momentos tão precoces. Bleichmar observa que essas recordações revelam acentuada vivacidade sensorial e dizem respeito a um acontecimento com grande potencial traumático, além de estarem muito diretamente ligadas à sexualidade materna. Tais características, juntamente com outros elementos do caso, levaram a autora a trabalhar com a hipótese de um fracasso do recalcamento no processo de constituição psíquica dessa criança. Nos termos da teoria da sedução generalizada, tratar-se-ia de um fracasso radical de tradução das mensagens enigmáticas que teriam sido implantadas no psiquismo de Antônio. Com efeito, os elementos de suas recordações aparentam-se muito mais a fragmentos de mensagens enigmáticas do que a lembranças encobridoras. Parecem evocar fragmentos de cenas vistas, pedaços de falas ouvidas num contexto em que mensagens enigmáticas teriam sido veiculadas.

 

Bleichmar supõe então que não se trata, no caso da dificuldade de aprendizagem de Antônio, de uma inibição neurótica em decorrência do recalcamento secundário, mas sim da não constituição da curiosidade intelectual em decorrência de um fracasso radical do recalcamento. Não havendo a barreira do recalcamento, fica aberta a possibilidade de um movimento regressivo no interior do psiquismo em direção ao polo perceptivo, o que mantém investidas as marcas mnêmicas originárias e impede seu ocultamento por inscrições posteriores. Vejamos, em seguida, um dos elementos do caso clínico, considerado por Bleichmar como elemento-chave para a formulação de sua hipótese, o que nos remeterá novamente ao tema do esclarecimento sexual das crianças. "Não sei se é necessário, Antônio sabe tudo acerca do que lhe posso dizer, eu não tenho segredos para com meu filho"[xiv], foi a resposta dada pela mãe de Antônio à analista, quando esta propôs uma sessão a sós com ela no intuito de abrir um espaço no qual pudessem vir à tona informações ou reflexões as quais não gostaria de expor o filho.

 

Dizer a verdade aos filhos, manter com eles um diálogo franco, colocar-se como sua (seu) melhor amiga (o), faz parte de uma ideologia que orienta muitos pais nos dias de hoje. Sem querer menosprezar o fato de que essa ideologia encerra o desejo de acertar e de superar os antigos entraves e repressões excessivas na relação pais-filhos, pensamos que, no que ela tem de formação reativa, isto é, de comprometimento com desejos e sentimentos ambivalentes e inconscientes, pode levar a muitos equívocos. No caso da mãe de Antônio, o "não tenho segredos para com meu filho" parece ter funcionado como álibi para que o filho fosse exposto a informações e situações que, embora verdadeiras, não o eram para o menino, senão desde a realidade da mãe, conforme argumenta Bleichmar, que diz ainda: "ao tentar escapar à mentira tradicional: ‘cegonha', ‘repolho', ‘semente', [a mãe] passou do plano do recalcamento ao plano da promiscuidade"[xv]. Essa afirmação bastante contundente aponta para a importância dos assistentes de tradução, tais como o mito da cegonha a que a autora se refere, entre outros, que podem ajudar a preservar o espaço do segredo entre mãe e criança, ou entre adultos e criança. Além das lendas, fábulas ou mitos, as informações baseadas em conhecimentos científicos - divulgadas sob a forma de livros, vídeos, etc. - também fazem parte dos esquemas narrativos construídos pelo universo cultural para fazer face às questões sobre a concepção e o nascimento dos bebês e, certamente, têm um lugar importante para as crianças maiores, que já não podem mais se contentar com a história da cegonha. Esse patrimônio do universo mito-simbólico, que normalmente é apresentado à criança pelo seu entorno, pode funcionar como mediação entre o adulto e a criança, de forma a preservá-la de uma exposição imediata e excessiva às fantasias inconscientes que parasitam a comunicação adulto-criança.

 

Depois dos desenvolvimentos acima, esperamos que o leitor tenha apreendido o sentido da questão/argumento das jornadas Jean Laplanche de 2016: o universo mito-simbólico, concebido, antes de tudo, como estando a serviço da tradução da mensagem enigmática, não poderia funcionar, a contrario, como obstáculo à tradução? Ao que podemos acrescentar: dentre as várias características dos esquemas narrativos, seria possível arbitrar sobre aquelas com maior potencial para funcionar como assistente de tradução em oposição àquelas que levariam ao fracasso nesta tarefa? Podemos encontrar, nas elaborações de Laplanche, sinalizações que nos orientem na abordagem dessas questões? É o que passaremos a considerar em seguida.

 

Existiria uma (ajuda à) tradução "bem-sucedida"?

Retomamos com o subtítulo acima a última frase do livro Problemáticas II - Castração simbolizações, nela substituindo deliberadamente o termo simbolização pelo termo tradução, por entendermos que, em certa medida, se equivalem, e também para expressar nosso propósito de refletir sobre os desdobramentos dessa questão nas formulações mais avançadas da teoria da sedução generalizada, remontando, para tanto, aos momentos precoces do percurso em espiral que caracteriza a trajetória de Laplanche.

 

Nesse percurso em espiral, encontramos três momentos em que Laplanche desenvolve a questão acima colocada. O primeiro momento equivale exatamente ao livro acima referido, o segundo encontra-se em Problemáticas III - A Sublimação, e o terceiro corresponde a um artigo bem posterior à formalização da teoria da sedução generalizada, intitulado "Sublimação e/ou inspiração".

 

Em Castração simbolizações, como o próprio título indica, é a teoria da castração ou, de modo mais geral, a castração que está no centro da reflexão de Laplanche. O seu percurso argumentativo é orientado por uma questão central que diz respeito ao estatuto metapsicológico da castração: qual é precisamente o estatuto metapsicológico da castração? Do ponto de vista tópico, a castração faria parte do conteúdo primário do isso ou, ao contrário, seria solidária das camadas "superiores", as camadas do eu e do supereu? Ou ainda, do ponto de vista dinâmico, a castração estaria ligada aos aspectos mais primitivos de nossas pulsões ou seria, ao contrário, um modo de organização secundário, uma maneira de ordenar o pulsional polimorfo das origens?[xvi]

 

O leitor familiarizado com a teoria da sedução generalizada conhece bem as proposições de Laplanche que situam a castração do lado da simbolização, como uma espécie de lei culturalmente inculcada, contingente relativamente ao que é da ordem do pulsional mais originário. A castração como simbolização lança a questão de sua relação com aquilo que ela viria simbolizar. Se ela é ordenação de elementos diversos, que fazem parte do assim chamado complexo de castração, tais como elementos perceptivos e empíricos, isso significa que ela opera, a posteriori, sobre algo preexistente a essa ordenação. Portanto, afirma Laplanche, "não há somente efeito de posterioridade, mas também efeito de antecipação"[xvii], o que o leva a sublinhar "a insuficiência dos ingredientes da história circunstancial, da vivência empírica de tal ou tal criança em relação a esse efeito[xviii].

 

Buscando trazer à tona aquilo que Freud teria acrescentado como catalisador a esses ingredientes para tornar possível a passagem a uma nova ordem simbólica, Laplanche encontra três possíveis vias para a formulação de uma resposta. A primeira delas é a tese das fantasias originárias, tese que foi submetida a uma análise crítica em diversos momentos de sua obra. A segunda, pouco explorada por Freud, pode ser depreendida da leitura do texto "O tabu da virgindade", texto bastante original relativamente a outros momentos do pensamento freudiano, no qual Laplanche ressalta a relação da castração com a sedução materna. Nessa segunda via, surge uma nova tese: a lei da castração não seria veiculada apenas por ameaças ou herdada como esquema que se eterniza, mas seria percebida e interiorizada a partir de uma percepção do inconsciente materno e do próprio complexo de castração presente na mãe[xix]. A terceira via, enfim, é encontrada nas discussões de Freud com Rank a respeito de uma genealogia da angústia de castração e do papel capital das primeiras experiências infantis de angústia como angústia de separação. A análise dessas discussões traz à tona a estreita ligação da angústia de separação com o abandono do sujeito indefeso ante o ataque pulsional.

 

Na segunda e terceira vias já estão delineadas ideias que ganharão corpo na teoria da sedução generalizada, quais sejam, a castração como mensagem enigmática do outro e como angústia gerada pela interiorização dessa mensagem. Podemos também dizer que se a angústia de castração é precedida de angústias pré-genitais, ela deve ser entendida como uma tentativa de simbolização num nível diferente das tentativas precedentes, todas visando ao domínio do ataque pulsional que tem sua origem na sedução do outro. Essas proposições implicam ainda que a castração, enquanto simbolização da angústia, que surge no momento em que a criança depara com o enigma da diferença entre os sexos, pode, ela própria, vir a ser simbolizada numa sucessão de níveis de simbolização. Ou seja, a castração tanto pode ser simbolização, estando do lado do domínio da angústia, quanto ser fonte de angústia, estando do lado daquilo que deve ser simbolizado.

 

E o que podemos dizer da teoria da castração como simbolização do enigma da diferença entre os sexos? Seria ela uma simbolização verdadeira, uma simbolização bem-sucedida? Teria realmente eficácia simbólica? Um dos objetivos específicos de Laplanche em Castração, simbolizações, objetivo que se entrelaça com a discussão sobre o estatuto metapsicológico da castração, é justamente o questionamento do lugar central que foi atribuído por Freud, e, em seguida por Lacan, ao complexo de castração com sua lógica fálica, binária, como um Universal da psicanálise, como uma espécie de simbolização maior, cuja eficácia seria inquestionável. Retomando, em uma minuciosa análise, contribuições de autores como Bettelheim, Reik, entre outros que se dedicaram ao estudo da circuncisão como prática ritual ou como rito de iniciação em diferentes culturas, Laplanche busca mostrar que tais ritos, se, por um lado, são simbolizações da castração, por outro, contêm uma significação muito menos unívoca do que aquela da lógica fálica.

 

Passamos diretamente às suas conclusões que apontam a relação profundamente e originariamente ambígua da circuncisão com a castração e com a diferença dos sexos. E essa relação ambígua, afirma Laplanche, "é própria de toda verdadeira simbolização, se esta significar uma certa abertura e não, pelo contrário, um fechamento. Relação ambígua no que se refere à diferença dos sexos, tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de vista do conteúdo, os quais, aliás, se conjugam"[xx]. Tanto do ponto de vista formal quanto do ponto de vista do conteúdo, os elos que ligam a circuncisão à castração são, simultaneamente, elos de metáfora, de metonímia e de oposição. A significação de castração está certamente presente nos ritos de circuncisão, mas diversas outras significações poderiam concretizar-se neles, inclusive a significação de desfeminização[xxi].

 

Vemos na citação transcrita acima o emprego da expressão "verdadeira simbolização" e, na sequência do texto, aparecem também as expressões "simbolizações bem-sucedidas" e "simbolizações abertas". Mas quando constatamos que Laplanche termina Castração simbolizações com a pergunta: "existiria uma simbolização bem-sucedida?", concluímos que ele não considerou conclusivas as balizas propostas até então para uma possível resposta a essa questão. Com efeito, ele a relançou no livro seguinte, que trata da sublimação.

 

Vejamos, em suas próprias palavras, como ele resume suas conclusões anteriores a respeito de uma simbolização bem-sucedida, ao introduzir a sublimação:

 

Ao cabo dessa investigação sobre o paradigma dos rituais da puberdade, duas condições nos parecem, pois, destacar-se para que uma simbolização possa verdadeiramente sê-lo, isto é, marcar uma etapa, uma passagem, o acesso a um novo status. Essas duas dimensões necessárias à "eficácia simbólica" - plurivalência e mesmo contradição interna do símbolo e possibilidade de uma assunção subjetiva - são, de fato, complementares, e reúnem-se num terceiro conjunto de condições: os fatores temporais, eminentemente dialéticos, que regem as sequências de inscrição, os remanejamentos - ou, pelo contrário, as repetições não mutativas - das experiências simbolizantes: tempo do trauma, tempo da iniciação, tempo da interpretação psicanalítica[xxii].

 

Ainda que tenha, de certa forma, definido acima uma simbolização bem-sucedida, Laplanche continuará perseguindo essa questão no livro sobre a sublimação. Em sua introdução, ele diz o seguinte: "Falar de simbolização bem-sucedida ou não implica, sem dúvida alguma, um juízo de valor, e isso nos leva a indagar o que será uma simbolização ‘patológica', em relação àquela que seria, senão normal, pelo menos aberta para um devenir"[xxiii].

 

A noção de compulsão à repetição, retomada de Freud, servirá de suporte à hipótese de uma simbolização patológica, permitindo a Laplanche colocar em evidência, nos exemplos freudianos de neurose de destino, "essa espécie de compulsão do símbolo que parece superar a vontade individual, superar o sujeito que se supõe simbolizar"[xxiv]. Ou seja, longe de sermos sempre sujeitos da simbolização, podemos estar à mercê desta. A compulsão à repetição seria, portanto, o caso típico de uma simbolização patológica, fechada num ciclo repetitivo. Mas convém interrogar: poderia existir uma simbolização não patológica, ou seja, que não fosse condenada à reduplicação dele? "Simbólica repetitiva e eficácia simbólica? Desconfiemos de uma distinção tão marcada de otimismo, desconfiemos de qualquer entusiasmo [...]"[xxv], afirma Laplanche, reconhecendo nesse momento a dificuldade em traçar uma linha que delimite essas duas formas de simbolização. Mesmo encarando com cautela essa delimitação, ele indica que a sublimação poderia estar do lado de uma simbolização bem-sucedida, na medida em que é tida como um destino pulsional menos defensivo do que o recalcamento e como um desfecho favorável do processo de análise.

 

Mas a própria noção de sublimação não é clara na obra freudiana, de modo que a longa discussão empreendida nas Problemáticas III buscará mostrar como é necessário repensá-la e redefini-la a partir do conjunto conceitual do qual faz parte: transformação do sexual em não sexual; sublimação desde o começo, independentemente do recalcamento, entre outras ideias, serão submetidas a uma investigação crítica. Essa longa investigação tem como fio condutor a análise do texto freudiano "Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci". Laplanche irá acompanhar Freud na busca dos elos entre a curiosidade intelectual - no caso a paixão de Leonardo pela investigação científica - e a curiosidade sexual que seria aquela do menino Leonardo. Suas conclusões colocarão em relevo a relação entre a sublimação, o traumatismo e a simbolização, entendida aqui como a possibilidade de ligação desse traumatismo. Tal relação, extremamente importante para a concepção laplancheana da sublimação, será retomada quase 20 anos depois no texto "Sublimação e/ou Inspiração", texto de uma riqueza e de uma densidade impressionantes, cujo enfrentamento se faz necessário para tentarmos entender suas últimas formulações sobre a questão que nos ocupa.

 

Lembrando que a sublimação é um conceito totalmente impregnado de metapsicologia e, mais especificamente, de teoria das pulsões, Laplanche rediscute as imprecisões que ali perduram desde Freud. Essas imprecisões dizem respeito tanto à ideia de que a sublimação seria um destino menos defensivo do que o recalcamento[xxvi], quanto à dificuldade do critério "valorização social" para se pensar a alquimia que leva a pulsão a um destino mais "sublime".

 

Não cabe aqui entrar nos detalhes dessa discussão e sim apontar, entre suas conclusões, aquelas que são mais relevantes para nosso propósito. A primeira delas leva-nos a considerar que a sublimação não tem nada de um processo à parte relativamente ao conjunto dos processos psíquicos que podemos denominar de processos de ligação. Nas palavras de Laplanche: "A sublimação, tal como fomos levados a concebê-la, não tem nada de um processo à parte. Ela é, deveríamos dizer, o processo normal de aculturação pela qual o eu tenta, sem cessar, a drenagem do Zuydersee do isso, transpondo em parte as pulsões de morte em pulsões de vida"[xxvii].

 

Embora tome emprestadas certas formulações freudianas a respeito da transposição das pulsões de morte em pulsões de vida, é importante lembrar a especificidade que a teoria pulsional adquire na teoria da sedução generalizada, como também a forma pela qual são concebidos os processos de ligação. Estes dizem respeito à ligação da excitação desencadeada pela mensagem enigmática do outro e dependem de uma tradução dessa mensagem. Os restos da tradução permanecerão como fonte contínua de pulsão, da pulsão sexual de morte, força eminentemente disruptiva e avessa a ligações, à homeostase ou às sínteses egoicas, na medida em que têm como objeto-fonte um aspecto clivado do objeto, um índice de objeto. Por outro lado, o produto das traduções constituirá o lugar de circulação da pulsão sexual de vida, força agregadora cujo objeto-fonte é um objeto "total", regulador.

 

Quanto aos processos de ligação, ou seja, quanto às formas pelas quais se fazem as ligações, Laplanche propõe a distinção entre aquelas que se dão pela via narcisista/gestaltista e aquelas que se dão pela via dos sistemas simbólicos. Considera o segundo tipo como um processo de ligação mais complexo e, poderíamos concluir, mais bem-sucedido do que o primeiro. Vejamos como ele os opõe:

 

À estupidez da ligação narcisista/gestaltista, na qual a totalidade unificadora impõe-se sem mediação, vem contrapor-se a complexidade das ligações simbolizantes e dos sistemas simbólicos nos quais - se quisermos nos referir a marcos filosóficos - o objeto e o conceito são necessariamente correlacionados a cenários, a proposições e a julgamentos[xxviii].

 

Embora os distinga dessa forma, observa que são dois modos de ligação complementares e associados, ilustrando essa ideia com a referência a um personagem tão caro a Freud: "não há Aníbal nem identificação a Aníbal, sem a lenda de Aníbal. Mas não há lenda de Aníbal, sem que o eu venha especularmente fazer destacar-se o personagem no seio de sua história"[xxix].

 

Vemos que o critério de abertura a possibilidades de remanejamento é o que define, novamente, uma ligação ou tradução bem-sucedida nessa nova discussão de Laplanche. A complexidade da rede de ligações simbolizantes presente na lenda de Aníbal, por exemplo, é o que torna possível a outro ser humano identificar-se ao personagem Aníbal, sem se afundar no espelho d'água que reflete a imagem desse personagem. Sistemas mito-simbólicos, portanto, abrindo o fechamento operado pelas ligações egoicas.

 

Se a sublimação equivale ao movimento de transposição da pulsão sexual de morte em pulsão sexual de vida, segundo as duas formas de ligação que abordamos acima, é importante ter sempre em mente que esse movimento colonizador da pulsão de vida, essa progressão de Eros, é um movimento sem fim. A apropriação da força pulsional pelo eu só pode ser um objetivo "infinito" da sublimação, assim como acontece no processo de análise.

 

A sublimação, como movimento sempre renovado de integração dos alvos sexuais anárquicos, será então situada, na última parte do texto, entre dois polos: o polo do sintoma e o polo da inspiração. Essa nova polarização, sintoma/inspiração, abre, outra vez, uma nova possibilidade para se pensar o que seria uma tradução bem-sucedida. No que diz respeito à relação entre sublimação e sintoma, lemos o seguinte:

 

Em muitas existências, a uma sublimação que efetivamente existe em cada ser humano, vem se justapor uma sexualização neurótica - na qual o sexual retorna muitas vezes sob as formas as mais cruas - seja infiltrando-se nas tarefas materiais do dia a dia, abertas à obsessionalidade ou até mesmo a uma analidade patente, seja insinuando-se nas relações inter-humanas, muitas vezes marcadas de sadomasoquismo se não de ódio[xxx].

 

Do lado oposto ao do sintoma, conceito bem estabelecido desde Freud, está a inspiração, noção das mais originais introduzida por Laplanche. Essa noção surge da necessidade de reafirmar aquilo que se encontra na origem da pulsão, ou seja, a passividade do sujeito, em vias de constituição, ante a mensagem enigmática do outro. "Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci", sendo o principal texto freudiano sobre a sublimação, além de ser aquele em que a sedução infantil precoce ressurge de forma muito clara, volta a ocupar a atenção de nosso autor. Sem entrar nos meandros de sua reflexão, buscaremos, mais uma vez, ressaltar o que é essencial para o nosso tema, lembrando que a relação da curiosidade intelectual de Leonardo com sua curiosidade sexual está em primeiro plano nesse caso.

 

Diferentemente de Freud, Laplanche não se detém nos mitos que teriam funcionado como ajuda à tradução para o menino Leonardo, confrontado aos enigmas da sexualidade. Ele irá colocar em relevo, sobretudo, o produto das sublimações de Leonardo em sua obra artística, apontando aquilo que o caracterizaria como uma simbolização bem-sucedida. Acredita que não se trata de uma "sublimação desde o começo", como concebia Freud, mas de "um recalcamento, porém com a conservação do aguilhão do enigma"[xxxi]. É precisamente essa potencialidade de guardiã do enigma que irá definir a inspiração.

 

A pesquisa e a criação artística são produzidas pelo sujeito Leonardo, mas o que as impulsiona é um vetor que vem do outro: "Para Leonardo, ‘o olho é a janela da alma', o que sinaliza uma abertura, até mesmo uma exposição da alma ao trauma do outro"[xxxii]. A abertura ao trauma que decorre do enigma do outro "é precisamente estar disponível para o outro que virá me surpreender"[xxxiii]. Isso se aplica tanto ao outro sedutor de outrora quanto ao outro do futuro, o grande público, a quem a obra é destinada. Portanto, o que define a abertura de uma sublimação, de uma obra artística, no caso, é o seu potencial para transferir o enigma ao expectador. Ela insinua que seu criador pressente algo que desconhece e provoca em seu expectador o mesmo pressentimento.

 

Nessa tentativa de definição da inspiração percebemos, nas palavras de Laplanche, um tom de aparência mística, o que ele próprio reconhece, da mesma forma que reconhece sua identificação com o sentimento de assombro expresso por Freud ao falar de Leonardo envelhecendo e de seu encontro com a Gioconda, ou do sorriso no quadro de São João Batista. Observa ainda que os próprios termos empregados por Freud para descrever alguns quadros de Leonardo indicam seu caráter enigmático, indicam que estes reabrem a ferida do inesperado, em ressonância com o enigma do outro adulto originário, como exemplifica esta bela passagem do texto freudiano:

 

Esses quadros respiram uma mística, em cujo mistério não ousamos penetrar; [...] As figuras são novamente masculino-femininas, mas não no sentido da fantasia do abutre, são belos adolescentes com delicadeza feminina e formas femininas; mas não lançam mais o olhar para baixo e sim olham misteriosos, triunfantes, como se soubessem de uma grande felicidade, sobre a qual devemos silenciar; o conhecido sorriso cativante permite pensar que se trata de um segredo de amor. É possível que Leonardo tenha negado nessas figuras a infelicidade de sua vida amorosa e a superado artisticamente, na medida em que ele, em tal unificação feliz da natureza masculina e feminina, representou a realização do desejo da criança acariciada pela mãe[xxxiv].

 

Eis aí, portanto, Freud inspirado pela obra de Leonardo e, por sua vez, fonte de inspiração para Laplanche no movimento sublimatório que faz avançar o trabalho cultural. Entre sintoma e inspiração situa-se toda a gama de possibilidades de simbolizações que funcionam como assistentes de tradução no universo cultural. Nessa gama de possibilidades, a abertura ao enigma do outro é o critério que sobressai na concepção de uma simbolização bem-sucedida.

 

Conclusão

Sintetizemos, então, as conclusões que pudemos apontar nas sucessivas discussões de Laplanche sobre as simbolizações bem-sucedidas. Num primeiro momento de seu pensamento, ele considera a plurivalência interna do símbolo e a possibilidade de retomada subjetiva, por meio de remanejamentos renovados ao longo da existência, como condição necessária para uma simbolização bem-sucedida. Em seguida, indica a abertura potencial dos sistemas mito-simbólicos em oposição ao fechamento das ligações narcisistas ou gestaltistas. Por último, uma simbolização bem-sucedida será concebida como aquela que pode abrir-se para a dimensão do enigma do outro, como inspiração. Trata-se, evidentemente, de um destino da mensagem enigmática que nunca é totalmente "puro" ou irredutível ao olhar analítico, pois não tem como escapar à interferência de elementos neuróticos e, sobretudo, psicóticos. Concepção teórica de difícil apreensão e, ao mesmo tempo, posição subjetiva difícil de ser atingida, na medida em que ela depende de um equilíbrio sutil entre a própria possibilidade de simbolização e o "deixar-se invadir" pela excitação provocada pelo enigma, correndo o risco de se deixar levar pela compulsão à repetição.

 

Para concluir, retomemos o tema da curiosidade sexual infantil e do papel do universo mito-simbólico como assistente de tradução para os enigmas sexuais que habitam as crianças. Um relato anedótico, relacionado à literatura que serve de apoio aos pais no esclarecimento sexual das crianças, poderá ajudar-nos a esboçar uma proposição sobre essa questão à luz das contribuições de Laplanche, discutidas acima.

Em 2009, circulou nos meios psi do Brasil um e-mail que trazia reproduzidas todas as páginas de um livro, editado na Alemanha em 2008, com o título: Die wahre Geschicte, wie Babys gemacht werden (A verdadeira história de como se fazem os bebês). O texto do e-mail dizia: "Não há nada como um livro infantil alemão para explicar o inexplicável às crianças". Com efeito, trata-se de um livro bastante objetivo por apresentar, sem rodeios e sem enquadres míticos ou fantasiosos, uma sequência de ilustrações gráficas e frases que explicam à criança o processo biológico da concepção e do nascimento de um bebê. Ao final do e-mail, uma brincadeira: "Nada como a sutil objetividade alemã! A cegonha suicidou-se após a publicação do livro!" A objetividade não era, nesse caso, alemã, pois trata-se da tradução de um livro escrito e ilustrado por um autor dinamarquês, publicado pela primeira vez nos EUA e na Inglaterra em 1973[xxxv]. Obviamente provocou muitas polêmicas naquela época, tendo sido muito bem-vindo para alguns pais e muito rejeitado por outros[xxxvi]. Mas, de fato, sua objetividade contrasta com os relatos míticos e com as lendas sobre a origem dos bebês. Entretanto, não devemos negar o lugar e a importância que um livro como esse pode ter em algum momento do esclarecimento sexual das crianças. Por outro lado, entendemos que a referência à trágica morte da cegonha convida-nos a pensar sobre a importância da preservação das narrativas míticas, lendárias, na medida em que estas podem funcionar, ao mesmo tempo, como enquadre e como abertura para a "verdade crua" da mecânica da reprodução e do nascimento. Não seria justamente o patrimônio do universo mito-simbólico que poderia levar à abertura da tradução do enigma sobre a origem dos bebês quando esta se fecha nos fatos biológicos? Não encontraríamos nesse patrimônio assistentes de tradução mais condizentes com a diversidade e o polimorfismo da sexualidade humana?


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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