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Resumo
O presente artigo relembra a visita de Jean Laplanche ao Brasil, em 1993, e expõe os principais elementos das suas teorias, que a autora considera muito úteis para a prática clínica. Retoma a importância da metapsicologia na escuta clínica e posiciona o pensamento de Laplanche em relação às fantasias originárias, frisando o fato de que para este autor não seriam protofantasias herdadas filogeneticamente mas que seu fundamento está ligado à forma em que a sexualidade se implanta através do outro adulto com sua própria sexualidade infantil recalcada.


Palavras-chave
fantasias originárias; sexualidade; recalcamento primário; metapsicologia.


Autor(es)
Ana Maria Sigal Sigal
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, professora do curso de Psicanálise e coordinadora do Curso Conflito e Sintoma, ambos do Instituto Sedes Sapientiae, coordenadora, autora de vários livros, entre os quais O lugar dos pais na psicanálise de crianças (Escuta), Escritos metapsicológicos e clínicos (Casa do Psicólogo).


Notas

[i]    {AS FANTASIAS ORIGINÁRIAS} São Paulo, 1 de outubro de 1992

Professor Jean Laplanche, Universidade de Paris VII - França

[ii]   A. M. Sigal, in J. Laplanche, Sexual. Comentário da nota citada na p. 13.
[iii]  J. Laplanche, Vida e morte em Psicanálise.
[iv]  J. Laplanche, Problemáticas, constituídas pelos volumes: 1 -
[v]   Ed. Presses Universitaire, cuja tradução em espanhol foi publicada em 1989, pela Ed. Amorrortu, bem como Nuevos
[vi]  Uma ampla discussão sobre essa temática poderá ser encontrada em Nuevos fundamentos para el Psicoanalisis, Ed. Amor
[vii]  J. Laplanche, Sexual.

[viii] Carta 69 de Freud a Fliess, 21 set. 1897.

[ix]  Texto lido na III Jornada sobre sexualidade feminina, realizada no Instituto Sedes Sapientiae, e publicado em espanhol na revista Gerações, pela editora da Universidade de Buenos Aires, aprofunda essa questão.

[x]   E. Carpintero, "La crisis del mito de Edipo patriarcal", "El patriarcado neoliberal".

[xi]  A. M. Sigal, "Algo mais que um brilho fálico: considerações acerca da inveja do pênis", in Escritos metapsicológicos e clínicos.

[xii]  M. Chnaiderman, filme De gravata e unha vermelha, 2014.[xiii] A. M. Sigal, "Todavia el psicaonálisis en el campo de la sexuación".[xiv] Sobre esse tema encontraremos vastas referências no livro de J. Laplanche Sexual, no capítulo "Sexualidade e apego na metapsicologia".[xv]  No texto "O originário: um conceito que ganha visibilidade", faço uma profunda análise desse conceito na obra de Laplanche. Publicado em A. M. Sigal, Escritos metapsicológicos e clínicos, cap. 10.[xvi] J. Laplanche, op. cit., 1978, p. 87-88.[xvii]       A. M. Sigal, "Francis Bacon e o pânico. Um estudo sobre o recalcamento primário", in Escritos metapsicológicos e clínicos.


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____. (2009). Algo mais que um brilho fálico: considerações acerca da inveja do pênis. In Escritos metapsicológicos e clínicos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

____. (2009). Francis Bacon e o pânico. Um estudo sobre o recalcamento primário. In Escritos metapsicológicos e clínicos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

____. (2015). Todavia el psicaonálisis en el campo de la sexuación. Revista Generaciones, año 4, n. 4, Eudeba/Universidad de Buenos Aires.





Abstract
This article recalls the visit of Jean Laplanche to Brazil in 1993 and sets out the main elements of their theories, which the author considers useful for clinical practice. Resumes the importance of metapsychology in clinical listening and situates the thought of Laplanche in relation to original fantasies, stressing the fact that for this author there is no protofantasies phylogenetically inherited but its foundation is stemmed on the way in which sexuality is implanted through the other adult, with his own infant repressed sexuality.


Keywords
original fantasies; sexuality; primary repression; metapsychology.

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 TEXTO

As fantasias originárias e o recalcamento primário: conceitos dos fundamentos

Original fantasies and primary repression: concepts of the foundations
Ana Maria Sigal Sigal

São Paulo, le 1 octobre 1992


M. le Professeur Jean Laplanche

Université de Paris vii - Paris - France

Cher monsieur,


Il y a déjà plusieurs années que je désire avoir le plaisir de vous inviter à São Paulo; je vous l'ai dit en 1987 à Paris, et j'ai renouvelé l'invitation à Buenos Aires, lors du coloque où vouz étiez l'hôte d'honneur.

Je vous écris aujourd'hui pour savoir si effeticvement vous pensez venir à São Paulo, auquel cas votre visite pourrait être organisée par l'instituition à laquelle j'appertiens, le Départament de Psychanalyse de l'Instituto Sedes Sapientiae. Je vous envoie égalment, ci-joint, un exemplaire de notre revue Percurso.[i]

Convite a Jean Laplanche

Em outubro de 1992, escrevi essa carta a Jean Laplanche convidando-o para vir a São Paulo. A proposta era que pudesse apresentar seu pensamento em uma atividade organizada pelo Departamento de Psicanálise. Enviei juntamente um exemplar de Percurso. Seu aceite seria a concretização de um sonho.

Leitora de Laplanche desde o início da minha formação, aspirei durante muitos anos a conhecer a obra deste autor a partir de um encontro pessoal. Visitei-o em Paris em 1987, com o objetivo de intermediar a publicação de seus textos em espanhol, e mantive uma correspondência em que me encaminhava seus artigos mais recentes. Desejava que o Sedes, nossa querida instituição de pertinência, fosse o lugar no qual pudesse transmitir seu pensamento em São Paulo. Esse convite culminou com a apresentação de Laplanche à comunidade psicanalítica paulista em 1993, no evento organizado pelo Departamento de Psicanálise que se realizou no Centro Rebouças para uma plateia de 500 pessoas.

Essa aproximação foi precedida de encontros em que apresentamos a Carta de Princípios do Sedes, o Departamento e o Curso de Psicanálise, explicitando os postulados que marcavam nossa transmissão. Apresentamos a revista Percurso, para que pudesse conhecer a produção teórica, científica e ideológica de nossa instituição. Laplanche considerou haver coincidências significativas com seu pensamento, e decidiu aceitar o convite.

Coincidências

Na APF - Associação Psicanalítica Francesa - instituição à qual pertencia, a análise didática não fazia parte do projeto de formação. Agradou-lhe a coincidência de que nossa instituição também defendesse esta concepção como marca de origem: a análise, como parte do tripé de formação, deveria estar ligada ao desejo de se analisar, e não a uma imposição institucional.

Desde a fundação do Departamento como espaço de formação e transmissão, trabalhávamos com um projeto de ensino que tomava a obra freudiana como o eixo teórico a partir do qual outros autores poderiam ser estudados. Um estudo consistente partiria sempre de um conhecimento apurado das bases nas quais esse pensamento encontra seus fundamentos. Não concebíamos a hipótese de ler Lacan, Bion, Melanie Klein, Winnicott ou outros sem conhecer previamente a obra de Freud. Por outro lado, considerávamos que os autores pós-freudianos devessem ser lidos para que novas vias se abrissem para aprofundar o pensamento freudiano. Laplanche pensava da mesma forma. Considerava que o ecletismo não poderia ser vencido pelo dogmatismo. Afirmava que aquele confunde e este esteriliza. Propunha trabalhar autores como forma de superar a oposição estéril das escolas, verdadeira praga do mundo analítico[ii].

 

Conceitos e fundamentos

Laplanche foi um estudioso da obra de Freud. Escreveu com Pontalis o Vocabulário de Psicanálise, com o objetivo de precisar os diversos conceitos psicanalíticos, a partir de Freud. Foi cuidadoso ao colocar como comentários opiniões de diferentes autores, evitando que pudessem ser lidos como verdades a partir de uma interpretação própria do texto freudiano. Aproveitou a noção hegeliana de "fazer justiça ao texto", afirmando que é necessário diferenciar a leitura da obra de um autor da interpretação dela.

No decorrer de sua vida publicou numerosos livros. Entre os que deixaram marcas estão: Origem das fantasias e fantasias das origens e Vida e morte em psicanálise[iii]. Publicou as Problemáticas em espanhol pela editora Amorrortu, em seis volumes[iv], que realizam uma extensa revisão de conceitos centrais da teoria freudiana. Nessa obra apresenta sua leitura, delimita as diferenças em relação aos conceitos de Freud, faz comentários às obras de Lacan e Melanie Klein, e recolhe os ensinamentos que desenvolveu desde 1969 na Universidade de Paris VII. Em 1987, publica Nouveaux fondaments pour la psychanalyse: la séduction originaire[v]. Nesse livro, Laplanche retorna aos fundamentos para renová-los, esclarecendo que não se trata de uma nova psicanálise, mas de repensar seus alicerces, voltando a eles a fim de questionar e renovar aquilo que funda a psicanálise. Laplanche prefere se referir a esse movimento como "retorno sobre Freud", diferentemente de Lacan, que propõe um "retorno a Freud"[vi]. As últimas formulações de Laplanche estão em A revolução copernicana inacabada, texto sobre o qual falou em suas conferências de São Paulo. A tradução desse livro de 600 páginas, publicado originalmente em francês, foi divulgada em pequenas publicações, separadamente, para que a circulação dos conceitos se tornasse mais ágil. Recentemente foi publicado o livro Sexual[vii], com os últimos textos de Laplanche (de 2000 a 2006), nos quais trabalha a sexualidade ampliada, os temas do sexo, sexualidade e do gênero, a partir de uma revisão do Édipo e da castração como esquemas narrativos.

Laplanche faz trabalhar o texto freudiano a fim de trazer à luz esses novos fundamentos. Recusa-se a falar de um pensamento laplancheano, mas não nega a possibilidade de que na pressão metapsicológica que aplica ao texto surjam novas ideias e formas de pensamento, novas organizações e novos conceitos. Toma partido também em relação a diversos caminhos que despontam no texto freudiano. Problematiza, questiona, debate e submete à prova seus fundamentos. Para dar um exemplo desses questionamentos, podemos observar que não adere totalmente à segunda teoria pulsional, questionando o conceito de pulsão de morte a fim de desenvolver a ideia de uma pulsão sexual de morte. Entende também que Freud abandona o caminho da sedução enunciado na carta 69 a Fliess[viii] e faz um trabalho de volta às primeiras origens, abordando a sedução do adulto em relação à criança, que denomina "sedução originária".

A partir de então Laplanche propõe um novo fundamento para a leitura dos textos freudianos, a "teoria da sedução generalizada". Ela leva em conta, na sedução, a passividade da criança em relação ao adulto, que implanta - sempre de forma traumática - a sexualidade na criança. A partir dessa colocação, a inclusão da alteridade torna-se elemento central para explicar a fonte da pulsão. Os conceitos de Laplanche nos levam a pensar novos conjuntos e organizações, que nos posicionam de forma diversa em relação a Freud e às escolas de seus seguidores.

 

Bases metapsicológicas da clínica

A clínica sempre me levou a tentar encontrar bases metapsicológicas que dessem conta da prática e da escuta. Sempre afirmei que a metapsicologia não é uma aventura epistemofílica, uma elaboração teórica que tivesse como finalidade buscar uma coerência interna dos postulados. A metapsicologia determina o modo pelo qual conduziremos o trabalho de análise. Nossa clínica vai se pautar pela forma de pensar o aparelho psíquico e pelo lugar que os conceitos ocupam na construção teórica. A concepção do Édipo nos últimos anos tem sofrido grandes questionamentos a partir das teorias de gênero, que nos obrigam a rever o processo de sexuação, incluindo as mudanças antropológicas e socioeconômicas que aportam elementos para produzir novas leituras[ix]. Mas a sexuação ainda é um pilar que pauta a estruturação subjetiva. Como diz Enrique Carpintero:

O complexo de Édipo organiza o aparelho psíquico ao instalar, com a proibição do incesto, a alteridade, suporte de nosso desvalimento originário. Sua sombra fala da falta que nos constitui, mas também da luz da potência - no sentido espinosiano do termo - ao reconhecer-se no outro humano que nos afirma no amor. Isto nos leva a sustentar a prática da psicanálise na potência do ser[x].

Torna-se necessário rever o Complexo de Édipo à luz dos novos papéis que homens e mulheres ocupam na atualidade. O papel ativo que as mulheres desempenham no mercado de trabalho não estaria necessariamente ligado à falicidade ou à inveja ao pênis, a menos que se trate de uma estrutura histérica. A maternidade não pode mais ser considerada como anseio natural da feminilidade ou um modo de curar o que seria um déficit, a castração - entendendo o desejo de filho como algo mais que um brilho fálico[xi]. Compreender o lugar da mulher adulta-genital permite interpretar que nela não há desejo de pênis, mas sim exercer sua potência feminina, a menos que se trate de uma estrutura neurótica ou histérica. Nesse caso, permanece em uma posição infantil de inveja do pênis.


Com relação ao desejo de cuidar dos filhos em suas necessidades básicas, no que diz respeito à constituição masculina, não mais será considerado um aspecto feminino do homem. Atualmente trabalhamos com a noção de diferença não oposicional, em que o traço, de acordo com Derrida, não pressupõe simplesmente um oposto, mas sim uma multiplicidade de diferentes. É necessário incorporar o conceito de diversidade para melhor pensar a sexuação. Entre homem e mulher há numerosas diversidades que dependerão de traços identificatórios, compostos de variações de gênero e marcas deixadas na formação subjetiva que se instauram na relação com o outro[xii].

 

O que oferecem as novas teorias epistemológicas

As novas teorias epistemológicas, tais como a teoria do caos de I. Prigogine, do acaso de E. Lorenz, das estruturas dissipativas, e da complexidade de E. Morin[xiii], oferecem alternativas possíveis para pensar o psíquico, diferentemente do modo com que Freud aplicava, por exemplo, a termodinâmica à construção do aparelho psíquico. Isso nos permite, por sua vez, compreender novas teorias da inscrição psíquica. Os estudos da linguagem (Saussure e Lévi-Strauss) ofereceram parâmetros para que algumas escolas aplicassem o estruturalismo à psicanálise. Os estudos da epigenética alteraram completamente certas concepções sobre o biológico e o meio ambiente. Exercemos uma psicanálise viva, em mudança, mas que mantém os pilares conceituais freudianos e - como Laplanche - pensamos novas possibilidades.

Alguns dos temas que ele desenvolveu fizeram profundo eco em minha escuta e me levaram a estudar especialmente suas decorrências na clínica, pois oferecem elementos para abordar impasses da teoria freudiana. Assim, ao trabalhar os conceitos de protofantasias ou fantasias originárias, Laplanche revê alguns aspectos biologizantes na obra de Freud, e retoma/recoloca a origem delas no encontro da criança com o adulto, sem que seja necessário apelar para a noção de herança filogenética. Através do desenvolvimento do conceito de recalque primário, o autor nos permite entender metapsicologicamente as patologias mais primitivas, que não são nem da ordem das neuroses nem do recalcamento secundário, e que guardam pontos de contato com as neuroses atuais.

Considerando a metapsicologia freudiana formulada até 1915, vemos que privilegia um inconsciente constituído fundamentalmente por representações. Na base dessas representações encontram-se as fantasias originárias (coito ou cena originária, sedução, castração e eventualmente retorno ao seio materno), que Freud considera como filogeneticamente herdadas, marcadas pela ordem biológica, patrimônio da espécie que iria além das inscrições individuais. Os fantasmas originários em Freud seriam categorias a priori, não apenas conceitos, mas roteiros ou scripts que enquadrariam ou completariam as singularidades pessoais. Naquele momento, Freud colocou em dúvida a singularidade da formação subjetiva, apelando a fantasias da espécie sobre as quais se inscreveriam as neuroses pessoais. Segundo Laplanche, não se trata de uma discussão entre o herdado e o adquirido, mas de retomar as séries complementares, longamente esquecidas, para considerar o herdado, o constitucional e o congênito, diferenciando aquilo que o corpo herda e o que a psique herda, se é que podemos aceitar essa ideia. Trata-se de questionar se o que precede o sujeito se deve a uma herança filogenética ou a um mundo de fantasias ao qual a criança advém, e que é determinado pela condição sexualizada do adulto. É esta que torna sedutor o contato inicial dele com a criança. Essa sedução marca o infans com o inconsciente dele, adulto, através de mensagens enigmáticas. As fantasias originárias se implantam com a sedução do adulto que gera o objeto-fonte da pulsão. Não se pode conceber as instâncias do aparelho da alma a não ser pela sua origem: o impacto das mensagens enigmáticas sexuais do outro sobre um organismo biológico em vias de desenvolvimento. Laplanche propõe que mais do que falar de instância da letra, conceito do estruturalismo, deveríamos falar da instância do outro. Esta prioridade do outro externo na constituição do aparelho psíquico se repetirá na instância do outro interno: no Id. Este não está primordialmente desde toda a eternidade. O recalcamento originário é aquilo que não foi possível ser integralmente traduzido e metabolizado da mensagem enigmática que vem do outro. Dito de outra forma, essas mensagens se fixam como inscrições, marcas da sexualidade do adulto, que lança sobre a criança seu mundo sexual inconsciente. Ao incluir a alteridade no campo da fundação pulsional, Laplanche nos oferece elementos para entender a constituição do sujeito psíquico no encontro do infans com o outro da relação, já que o que se inscreve funda o objeto-fonte da pulsão porque determina a forma em que a sexualidade do adulto faz marca. Os aportes de Laplanche permitem questionar os modelos endogenistas e inatistas com os quais a psicanálise clássica tentava dar conta não apenas da formação do inconsciente, mas também da noção de pulsão. Desde o primeiro momento se faz necessário, segundo Laplanche, pensar que o psíquico e o somático estão indissoluvelmente ligados. O funcionamento autoconservativo é recoberto pela sexualidade materna, o apego e a ternura, que produzem essa ligação. Nessa passagem do autoconservativo para o sexual infantil como sexualidade ampliada temos que considerar as consequências das transformações do instinto da espécie (ligado à sobrevivência) em algo diferente: a pulsão como especificamente humana, revestindo o objeto autoconservativo com o desejo e com a ternura. Laplanche amplia a trilha aberta (e depois abandonada) por Freud quando fala da sequência satisfação sexual ligada à necessidade/autoerotismo/narcisismo[xiv]. Lembremos também que a pulsão está aquém da distinção entre consciente e inconsciente. Ela jamais poderia tornar-se objeto de consciência, já que é preciso que seja representada no próprio inconsciente por uma ideia (representante ideativo). Abre-se assim um campo fundamental no pensamento de Laplanche em relação ao originário.

 

O recalque originário e a clínica

O conceito de recalque originário tem pouco espaço na obra freudiana, mas é pré-condição para os recalcamentos secundários. Para Laplanche, o originário terá um estatuto privilegiado que dará conta do momento de fundação do inconsciente[xv], e traz elementos para o estudo de novas patologias nas quais há vazamento dos representantes do recalcamento originário: estes não ficam bem soldados na malha que deveria compor esse recalcamento.

Ao afirmarmos que não há inconsciente desde as origens, e que o recalcamento é o responsável pela cisão do psiquismo, pela divisão em sistemas, podemos dizer que ao mesmo tempo que recalca essa operação, inaugura e funda o inconsciente.

O recalque originário corresponde portanto a uma primeira inscrição e a uma primeira fixação. A representação fixada passa a se comportar como se fosse recalcada, pois, ao se fixar, não sofre reordenamentos ou retranscrições, comporta-se como se fizesse parte do inconsciente, e permanece fora da roda que formaria, com outros representantes, novas figuras. Não tramita, não é traduzida, não é ligada. Permanece indisponível, e por isso inconsciente. O sujeito ficaria bloqueado, fixado, e isso em dois sentidos: num momento de sua evolução libidinal, e em uma lembrança que, como uma fotografia, fixa o representante pulsional[xvi].

É preciso reforçar a ideia de que, após a fixação de uma pulsão, sua representação corresponde à inscrição num sistema mnêmico, como inscrição que é inconsciente mas não é o inconsciente. Memória e marca mnêmica não pertencem ao mesmo sistema. A primeira é patrimônio do Eu, e a segunda, do Inconsciente.

Em resumo, de acordo com Laplanche, podem-se distinguir dois tempos na teoria do recalque originário:

 

-   um tempo exógeno, traumático em si, no qual aparecem representações implantadas pelo mundo dos adultos. São mensagens que veiculam pura energia sexual, excitação, algo que marca, sem no momento se saber por quê. Por excesso de gratificação, por impossibilidade de compreensão ou tramitação, por excesso de frustração? São fantasmas ou marcas sem estatuto tópico preciso.

-   um segundo tempo no qual o traumatismo se torna autotraumático e provoca o recalcamento em si, cujos movimentos pulsam a partir do interior.

 

O recalque originário tem assim um primeiro momento passivo, no qual se implantam os objetos-fonte da pulsão, inscritos num estatuto de espera, e um segundo momento, que corresponde à tentativa que a criança faz de ligar essas representações. Esse segundo momento pode se tornar autotraumático e provocar outra fixação, agora pela impossibilidade de tradução. O infans recebe da mãe mensagens que apenas veiculam energia, um quantum de excitação incapaz de ser dominado pela compreensão - tanto da mãe quanto da criança, sobre a qual se impõe um trabalho de simbolização, de tradução. Aqui o conceito de originário se relaciona com outro conceito fundamental, o da sedução generalizada e das mensagens enigmáticas que impõem a alteridade, sob a forma do "outro adulto".

A sexualidade materna, a sedução, os significantes enigmáticos tornar-se-ão internos e se transformarão em fontes autônomas de excitação, portanto de pulsão. Num segundo momento, o recalcamento originário define essas fixações e gera um lugar para essas representações, que permanecerão alheias ao sujeito até emergirem sem passar pelas representações-palavra. A importância desses conceitos na clínica nos permite a abordagem das patologias mais primitivas, nas quais o recalcamento secundário não é o elemento primordial - como nas neuroses - já que são as representações-coisa que ganham importância. No caso dessas patologias foi provocada uma invasão no Eu por elementos arcaicos inscritos na psique sem a possibilidade de tradução: o recalcamento primário não conseguiu sepultá-los definitivamente. Na Carta 52 a Fliess de 6.12.1896, Freud diz que, porque fracassaram em sua possibilidade de ligação, esses elementos não favorecem nem facilitam a aparição da angústia-sinal, irrompendo como energia não ligada. Isso determina um colapso do Eu, acompanhado de descargas neurofisiológicas e distúrbios na representação. Em outras palavras, um desamparo do Eu frente à invasão pulsional, um reencontro com o objeto-fonte da pulsão.

Considero que a síndrome do pânico[xvii], as diversas compulsões, o acting, e muitas patologias que comprometem o corpo, se originam nesses processos. Podemos também pensar que as patologias de inscrição no corpo, como tatuagens - que se transformam numa marca identificatória externa - funcionam como representações-coisa que expressam fantasmas sem palavras na superfície epidérmica.

A revisão que Laplanche faz desses dois conceitos que analisamos confere sustento ao edifício das construções metapsicológicas que Freud desenvolve em sua obra. Aproxima novas leituras e amplia os fundamentos que encontramos no texto freudiano. Em minha opinião, isso exemplifica o que significa "voltar sobre os fundamentos", sem estabelecer uma mudança nos fundamentos. As cenas primárias se mantêm na origem da neuroses, mas esta é profundamente revista. Laplanche avança quanto a conceitos que em Freud não encontram um desenvolvimento satisfatório, e assume como próprio o que não estaria dito por ele. Disponibiliza seu pensamento para que possamos adotá-lo. Retorna a Freud, e faz trabalhar sua obra.


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