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Resumo
Este artigo retoma a questão da sublimação, situando-a no contexto da teoria da sedução generalizada. Trabalhando o “Leonardo” e alguns outros textos de Freud, Laplanche a vincula às duas teorias da pulsão, e utiliza o tema da sublimação para reforçar seus argumentos em favor de uma “pulsão sexual de morte”. Passando por uma rápida reflexão sobre o conceito de “inspiração”, o autor conclui com observações sobre o papel da sublimação na conclusão de uma análise.


Palavras-chave
sublimação; inspiração; teoria das pulsões; criação; função da sublimação no tratamento analítico.


Autor(es)
Jean Laplanche
é psicanalista, membro da A.P.F. e autor de diversas obras, entre as quais La révolution copernicienne inachevée, Paris, Aubier, 1993.


Notas

[i]  W. Reich, L’effondrement de la morale sexuelle, 1932. Citado in E. Borneman, Psychanalyse de l’argent, p. 65.

[ii] S. Freud, OCF-P, XV, p. 55-56.

[iii]  Mas, nesses primeiros tempos, não sob a forma das fezes.

[iv]  Com uma ausência, todavia: a do seio – e poderíamos formular hipóteses a esse respeito.

[v]   H. Blüher apud L. Andreas-Salomé, “Anal et sexuel”, in Amour du narcissisme, p. 109.

[vi]  M. Mauss, “Essai sur Le Don”, in Sociologie et antropologie, p. 259.

[vii]   M. Mauss, Le Monde, 30 mar. 1968, suplemento p. V.

[viii]   Ver acima a ausência da sexualidade oral no pentágono freudiano.

[ix]  S. Freud, OCF-P, X, p. 105.

[x]  S. Freud, OCF-P, X, p. 97.

[xi]        S. Freud, OCF-P, X, p. 101.

[xii]      Y. Bonnefoy, Écrits, p. 267.

[xiii]    S. Freud, OCF-P, X, p. 159.

[xiv]    Y. Bonnefoy, Giacometti, p. 374.

[xv]      S. Freud, OCF-P, X, p. 160-161.

[xvi]    Ver Y. Bonnefoy, Giacometti, op. cit., p. 37.

[xvii]  S. Freud, OCF-P, X, p. 156.

[xviii]               S. Freud, op. cit., p. 365.

[xix]    S. Freud, OCF-P, X, p. 144.

[xx]      D. Lagache, Oeuvres, V, 1984.



Referências bibliográficas

Andreas-Salomé L. (1980). "Anal et sexuel". In Amour du narcissisme. Paris: Gallimard.

Bonnefoy Y. (1990). Écrits. Paris: Hermann.

____ (1991). Giacometti. Paris: Flammarion.

Borneman E. (1978). Psychanalyse de l'argent. Paris: PUF.

Freud S. OCF-P. Paris: Seuil, X.

____. OCF-P. Paris: Seuil, XV.

Lagache D. (1984). Oeuvres, V. Paris: PUF.

Mauss M. (1960). "Essai sur Le Don". In Sociologie et antropologie. Paris: PUF.

____. Le Monde, 30 mar. 1968, suplemento p. V.





Abstract
This paper focuses on the subject of sublimation, placing it in the context of the theory of generalized seduction. Freud’s “Leonardo” and other texts of him offer a bridge to link sublimation to the theory of instincts, which Laplanche has reformulated to absorb the death impulses into a “death sexual instinct”. A quick reflection on the concept of “inspiration” leads to some remarks about the role of sublimation in the course of an analysis.


Keywords
sublimation; inspiration; theory of instincts; creation; role of sublimation in the analythic work.

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 TEXTO

Sublimação e/ou inspiração

Sublimation and/or inspiration
Jean Laplanche

O conceito de sublimação ainda é útil, utilizável, utilizado? Em 1967, Pontalis e eu terminávamos assim nossa reflexão sobre ele: "Recorre-se com frequência ao conceito de sublimação, que é, com efeito, índice de uma exigência que dificilmente poderíamos dispensar. A ausência de uma teoria coerente da sublimação permanece como uma das lacunas do pensamento psicanalítico".

Isso ainda é válido? Esta é mesmo uma exigência que não podemos dispensar? Cabe indagar se o "índice", indicação imperiosa da necessidade de manter a questão aberta, não se tornou uma simples referência, obrigatória porém vaga, que às vezes se reverencia, sem que isso implique um uso preciso, nem uma concepção metapsicológica clara. Por outro lado, sabe-se que o próprio Freud abandonou ou destruiu o ensaio sobre a sublimação, que deveria ser incorporado aos seus escritos metapsicológicos.

Não se abandonou a palavra. Já a noção continua sujeita a reservas, quando não é simplesmente deixada de lado! Podemos citar vários exemplos.

É muito raro, quando se fala do tratamento analítico, que a sublimação seja mencionada em nossas reflexões ou discussões clínicas. Há para isso uma excelente razão, que podemos chamar, seguindo Freud, de "razão da Cruz Vermelha". Em tempos de guerra, a Cruz Vermelha, que deveria prevenir os bombardeios, seria antes o sinal de que o inimigo se refugiou na ambulância para se camuflar. "Não atirar na ambulância" não é uma regra da análise, e por um bom motivo. No início de uma análise, não é conveniente separar como respeitáveis as sublimações que não devem ser tocadas. Na prática, no tratamento não distinguimos, quanto ao objetivo de analisar, entre sublimação e sintoma. Essa escolha de analisar tudo, sem respeito nem reserva, seria a transposição da famosa frase de Montfort "matem todos; Deus reconhecerá os seus" - num "analise tudo, a sublimação reconhecerá os seus". Quanto ao fim da análise, se acaso ficarmos tentados pelo entusiasmo balintiano de um "novo começo", ele será contrabalançado por essa regra da recusa, que nos impõe analisar até o último instante, deixando a ferida da análise por assim dizer aberta.

Seria necessário então pensar que a sublimação é um conceito reservado sobretudo à Psicanálise aplicada? Não é à toa que o texto principal continua sendo o "Leonardo" de Freud, com todos os prolongamentos que lhe foram dados, entre outros, por Eissler ou Maidani-Gérard. Mas justamente, apesar de tudo aquilo com que este autor pôde contribuir para aproximar os Cadernos de Leonardo da rede de associações durante um tratamento, a distância se mantém. Poder-se-ia dizer então que a sublimação constituiria um incômodo quando estamos envolvidos na prática, mas que esse incômodo desaparece quando estamos a sós, sem responsabilidades, deitando no divã um personagem histórico?

Uma terceira série de questões estaria ligada ao termo sublime. Sabemos que Freud o retoma ao seu modo, definindo a alquimia que leva a pulsão a se sublimar como vinculada a objetos "socialmente valorizados". Uma definição pelo "social" que introduz todo um campo de reflexão, já que no pensamento de Freud não se poderia considerá-la acessória, extrínseca ao próprio processo. Certamente, poderíamos fazer muitas restrições a essa "adaptação social". Assim, em seu texto "A sublimação e os valores", Lagache mostra que os valores visados pela sublimação não pertencem necessariamente a um consenso mais ou menos conformista: podem ser os de um grupo restrito, marginal, máfia ou gangue de delinquentes. Num sentido semelhante, com frequência me foi assinalado o caráter sempre um pouco elitista dos nossos exemplos de sublimação. Por que sempre o pintor e o pesquisador, e não o torneiro, o jogador de golfe ou quem cultiva seu jardim? E o que dizer de quem se fascina ao navegar pela Internet?

Mas a questão do "social" não se reduz à sua versão individual. Freud, nisso acompanhado por alguns dinossauros da nossa disciplina, não recuou ante a ambição de confrontar a sublimação com a gênese dos fenômenos sociais em sua generalidade: gênese da linguagem, na esteira dos trabalhos do linguista Sperber, gênese da atividade em sociedade, tal como aparece nos grandes textos meta-antropológicos que escreveu.

Como esse debate se cristaliza no momento do florescimento conjunto e antagônico da antropologia psicanalítica e do freudo-marxismo, não posso resistir a dar um exemplo disso, com uma curta citação de Wilhelm Reich, relatando uma discussão com Géza Róheim:

 

Falamos com Róheim sobre a interpretação simbólica, e, seguindo o mesmo raciocínio, sobre a interpretação analítica do aparecimento das ferramentas. Propus a ideia de que o machado foi inicialmente concebido por razões racionais - para partir a madeira com mais facilidade - e que, em seguida, secundariamente, pôde assumir também uma significação simbólica, mas que esse simbolismo de forma alguma era necessário. Uma árvore ou um bastão podiam significar um falo no sonho, mas não deviam necessariamente ter essa significação... A tese de Róheim, pelo contrário, dizia que o machado simbolizava o pênis, e que por isso fora inventado; o racional, nesse caso, era secundário[i].

 

Em suma, segundo Róheim, a pulsão sexual estava na própria origem da civilização, de modo que esta poderia ser inscrita em seu conjunto sob a rubrica da "sublimação". Para Reich, a civilização tem uma origem coletiva autônoma, que o desejo sublimatório do indivíduo reutiliza de modo contingente, por meio da simbolização.

Trata-se de um debate obsoleto? O mero termo "freudo-marxista" poderia induzir a pensar assim. Mas, afinal, a sociologia e a antropologia social continuaram a se desenvolver de modo notável sem se submeter quer ao marxismo, quer à psicanálise. Portanto, eu mantenho o termo freudiano intencionalmente modesto de "valorização social" como um questionamento, esperando poder retrabalhá-lo.

A sublimação é um termo marcado pela metapsicologia e, mais precisamente, pela teoria das pulsões. Talvez isso também já não combine com o espírito atual da psicanálise. Quero dizer que, com frequência, achamos que podemos discutir casos, ou muitas outras coisas que não sejam casos - certos fenômenos culturais, por exemplo - sem nos perguntarmos se existe entre nós um acordo mínimo sobre o que move fundamentalmente os seres humanos. Não duvido de que cada um de nós tenha uma ideia bastante precisa do que denomina pulsão de morte - para aceitá-la, refutá-la ou interpretá-la. Seria isso gentileza? Ceticismo em relação a qualquer teoria? "Atitude analítica" transposta para a discussão educada entre colegas? Geralmente, a discussão é realizada com "teoria de pelica" (como se diz "um tapa com luvas de pelica").

Uma grande diferença, com certeza, frente ao que acontecia na época de Freud, quando obviamente ninguém era "pós-moderno". Um "paradigma" científico não podia ser escolhido de modo arbitrário dentre um leque de possibilidades. No entanto, o rigor metapsicológico quase intratável de Freud se conjuga com uma evolução que poderia desconcertar: você é partidário da primeira, da segunda ou da terceira teoria das pulsões, da primeira ou da segunda tópica? É aqui que as considerações sobre a estrutura e a evolução devem se conjugar com cuidado, a menos que, como alguns o fizeram, se veja na Psicanálise um meio de afirmar simultaneamente tudo e o seu contrário.

Tomemos um exemplo preciso, mas fundamental: as relações de ternura. No contexto da primeira teoria das pulsões, quando o sexual se opõe ao domínio bem delimitado da "autoconservação", a "corrente terna" remete a este segundo, ligando o bebê à mãe e mais tarde a outras pessoas. Esta corrente terna opõe-se à sexual, ou "sensual". Pode-se, de certo modo, aproximá-la do "amor de objeto primário" de Bálint. Em contrapartida, na segunda teoria das pulsões, a ternura deve ser derivada da sexualidade, justamente por "inibição quanto à meta" e "sublimação". No entanto, não é possível contentar-se em observar uma simples contradição do pensamento freudiano, sem perguntar se neste meio tempo outros elementos teóricos não mudaram de lugar. Especificamente, se o "sexual" da primeira teoria é mesmo idêntico ao Eros da segunda.

A questão do dualismo pulsional, dos dois dualismos, é pois fundamental. Para nos orientarmos nela, partamos de um ponto aparentemente polêmico: a acusação de "pansexualismo", contra a qual Freud se defende o tempo todo. O pansexualismo, se afirmado radicalmente, arruína a própria ideia de sublimação. Se "tudo é sexual", o único problema da Psicanálise é revelar o modo como o sexual se mascara, se traduz sob outras formas.

Mas, ao mesmo tempo, a questão se inverte. Se "tudo é sexual", a palavra "sexual" vira uma denominação insossa, a libido se torna equivalente a termos mais neutros, como energia, atividade psíquica, etc. Este é um debate que ocupou o mundo intelectual quando das múltiplas resistências à introdução do sexual freudiano. Debate com Jung, mas também, na França, com Claparède, Pichon, Laforgue e muitos outros. Mas essa tentação se mantém sempre atual, mesmo que o aspecto estritamente energético da discussão tenha se tornado obsoleto. O mesmo se dá com a onipresença - atualmente quase admitida sem discussão - da noção sempre mais ou menos dessexualizada de "relação de objeto".

Freud, portanto, luta permanentemente contra o pansexualismo com esta afirmação: "Em psicanálise, o sexual não é tudo". Esta é sua maneira de manter a especificidade do sexual, no sentido próprio. O problema é que aquilo que não é sexual assume duas formas completamente heterogêneas no que se costuma denominar as duas teorias das pulsões:

 

sexualidade - autoconservação;

Eros - pulsão de morte.

 

O próprio Freud descreve muitas vezes essa evolução, localizando entre as duas um momento monista transitório de "aproximação aparente com as concepções de Jung". Um momento no qual a autoconservação é absorvida pela sexualidade (sob a rubrica do investimento sexual do eu - narcisismo), enquanto a pulsão de morte ainda não apareceu.

Além desse resumo bastante esquemático, o que é importante é que estes dois dualismos são muito diferentes no que diz respeito à nossa prática: um não substitui o outro, de forma alguma.

O primeiro estabelece, com a autoconservação, um verdadeiro exterior tanto em relação à sexualidade quanto em relação à situação analítica. O segundo coloca em cena um par muito mais indissociável, pulsões de vida/pulsões de morte, como duas faces da mesma moeda, um par que avança junto na vida, no tratamento e na teoria.

Na teoria, Eros e pulsão de morte se apresentam, antes de tudo, como dois grandes princípios - ligação e desligamento -, portanto como correlatos. Isso se confirma pelo fato de Freud ter recusado atribuir uma energia própria à pulsão de morte, o que sugere que se trata de uma única e mesma libido, ligada ou desligada conforme o caso.

Estou convencido de que a sucessão dos dois dualismos, em Freud, não representa a substituição de um sistema menos válido por outro. Ela tem seu correspondente na realidade do ser humano; a evolução de um para o outro correspondente a uma gênese, à passagem entre dois estados ou posições sucessivas, refletindo talvez o que se chama de passagem da "natureza para a cultura".

Como deve ser assumido o dualismo pulsão de vida/pulsão de morte?

Para começar, é um dualismo interno à própria sexualidade. Insisto nisso há muito tempo: convém falar de "pulsões sexuais de morte". A pulsão de morte recupera para si o que Freud, primeiramente, considerou como o aspecto mais inconciliável da sexualidade: Lúcifer-Amor. Não é por acaso que, nos mesmos momentos da infância, Freud situe o autoerotismo, e Melanie Klein o sadismo em seu ápice. Minha hipótese é de que ambos veem uma única e mesma coisa, sob dois termos diferentes - o caráter indomável e anárquico da sexualidade. A pulsão de vida, por seu lado, corresponde aos aspectos mais ligados do sexual: ligados ao objeto e ao objeto-eu. Sugeri, a propósito dessas formas do sexual, os termos "pulsão de índice" e "pulsão de objeto". Talvez retome isso mais adiante.

A questão poderia, portanto, se colocar da seguinte forma: o tratamento nos leva a rejeitar para fora do enquadre as considerações de oportunidade, de interesse material, e no limite de sobrevivência. Se se trata do atraso de um paciente, ela exclui do seu campo de interpretação os horários das estradas de ferro ou as greves dos ferroviários, exceto quando mediatizados e investidos pelos interesses sexuais ou narcísicos do paciente. No plano teórico, dizemos que Eros, o Eros narcísico, toma a seu cargo os interesses da autoconservação. O paciente se atrasa ou é pontual, enfim, em função do seu investimento sexual de vida ou de morte. Ou, para formular as coisas de modo menos paradoxal, ele somente "associa" a respeito desses fatos na medida em que os investir. Caso contrário, as coisas ficarão fora do enquadre.

Sei que essa leitura é esquemática. Ela me ajuda, contudo, a indagar: o segundo dualismo substituiria mesmo o primeiro? Eros teria colonizado completamente a autoconservação? Esse ponto de vista, que é o do tratamento, seria também transponível para uma consideração metapsicológica geral do ser humano? No homem, Eros se encarregou completamente da autoconservação, assim como que constata na evolução do pensamento freudiano?

E admitindo que tal seja o caso, a própria noção de uma gênese, de um tipo de "pansexualismo em ato", não nos forçaria a supor que esta gênese, esta colonização, também se produz no ser humano? Isso significa dizer que o primeiro dualismo, na realidade da existência humana, preexistiria ao segundo e constituiria seu fundamento.

No ser humano, há no início, e depois subsiste, algo das tendências não sexuais, e - para dizê-lo claramente - do instinto? Sobre essa questão, não tenho certeza, e minha reflexão ainda oscila um pouco; posso dar apenas indicações sobre como venho pensando no assunto.

Em primeiro lugar, seria necessário fazer uma reavaliação completa do termo "autoconservação". Termo abstrato, que supõe um indivíduo sobrevivendo de maneira autônoma frente a um universo inanimado. É o sistema do qual parte o "Projeto de uma
Psicologia Científica", que é válido somente para os organismos inferiores, até os peixes inclusive. Esse tipo de autoconservação homeostásica encontra-se amplamente superado na evolução das espécies. Um grande número delas, e em particular os mamíferos, vê sua subsistência vital integrada numa intercomunicação, em especial entre mãe e filho, a qual desde Bowlby se chama "apego". O retorno atual dessa noção se deve à observação tanto dos animais quanto dos bebês, cujas capacidades precoces de interação haviam sido por muito tempo subestimadas. A existência de relações primárias (ou pelo menos muito precoces) entre o bebê e o ambiente revaloriza a ideia de amor primário de objeto de Bálint, em relação à qual, porém, é preciso assinalar enfaticamente que ele não se situa no plano do sexual.

Mas, a meu ver, é também para melhor situar a noção de mensagem enigmática - ponto de partida da pulsão sexual - que precisamos supor uma comunicação de base, não sexual, entre a mãe e o bebê, um tipo de "onda portadora" não sexual, que seria como que modulada (ou melhor, parasitada) pela intervenção do sexual adulto. Sobre a base de uma comunicação recíproca, algo passa de modo vetorizado, unilateral.

Assim acontece na criança; mas também no adulto é difícil não manter, pelo menos virtualmente, este polo autoconservador original, mesmo que amplamente recoberto e reinvestido pelo narcisismo. Para dar um exemplo que não posso desenvolver, em uma psicologia da agressividade, ao lado da destrutividade sádica e da rivalidade narcísica, não é em absoluto possível negligenciar um terceiro fator, que se pode chamar, com Denise van Caneghem, de "combatividade".

Mais uma vez, essa "ordem vital", esse nível "animal" em sentido estrito permanece no homem como um nível virtual: exatamente da mesma maneira que a primeira teoria das pulsões continua virtualmente presente na segunda.

Tendo apresentado as incertezas e questionamentos abertos pela renovação moderna da teoria do apego, volto ao nosso tema - o de uma mutação possível da pulsão: a "sublimação". Ora, se considerarmos que no ser humano a oposição pulsões sexuais de morte/pulsões sexuais de vida (e, ainda mais precisamente, a oposição desligamento-ligação) vem recobrir o campo de base, animal, chegamos a um estranho paradoxo.

Por assim dizer, Eros retomou em suas mãos - como ligação - a autoconservação. No combate, o ser humano se sustenta não para sobreviver, mas por amor ao seu Eu, ou então por ódio ao Eu do outro. Por outro lado, Tânatos, a pulsão sexual sem amarras, assumiu o polo do inconciliável - o sexual no sentido freudiano originário do termo.

Do ponto de vista da sublimação, essa espécie de reviravolta, essa inversão dos polos e das significações, tem uma consequência mais que inesperada. Se é efetivamente o Eu, agente maior de Eros, que se reencarrega dos interesses vitais, e se sua energia for, como diz Freud, "dessexualizada e sublimada", então a sublimação, a mutação da pulsão quanto às suas metas e seus objetos, vai aparecer na verdade como transferência ou transposição da energia sexual de morte em energia sexual de vida, como a domesticação ou ligação de uma pulsão em suas origens anárquica e destrutiva. Essa concepção, insisto, implica ter compreendido bem que na segunda visão de Freud Eros, esse demiurgo que sempre visa a realizar unidades cada vez maiores, nada mais tem a ver com a sexualidade parcial e parcializante dos Três Ensaios.

Wo Es war soll Ich werden

Se compreendermos bem que o núcleo do Isso é a pulsão sexual de morte, esta fórmula poderia ser transposta da seguinte maneira: lá onde era a pulsão sexual de morte, Eros, a pulsão de vida, deve advir. Freud acrescenta que se trata de um "trabalho cultural, comparável à drenagem do Zuydersee": isso nos indica explicitamente que o conjunto deste processo psíquico, que pode se chamar "ligação", pode ser finalmente assimilado ao campo anteriormente chamado de sublimação. Explico-me, sublinhando alguns pontos de referência.

 

1) A sublimação era classicamente assimilada - por assim dizer - a uma espécie de tratamento dos dejetos pré-genitais da genitalização. Cito algumas linhas de Freud em "As transposições pulsionais":

 

"A questão de saber onde se instalam posteriormente as moções pulsionais eróticas-anais se tornava assim inevitável. Qual foi seu destino após terem perdido sua importância para a vida sexual, após a instauração da organização genital definitiva?"[ii]

 

Sabe-se que Freud afirmou constantemente que o destino sublimatório era, em primeiro lugar, o dos restos não integrados das pulsões pré-genitais.

Mas a partir do momento em que a incluímos nos processos gerais de ligação, a "genitalização" perde seu privilégio, sua situação singular em relação ao movimento geral de aculturação, e, obviamente, também ao de sexualização. Corro o risco de chocar ao manter a afirmação de que "o Édipo" é intrinsecamente não sexual e dessexualizante. A "lenda do conquistador", pela eliminação do pai e pela união com a mãe, relega por completo ao subsolo a sexualidade orgástica que, doravante, se pode apenas suspeitar ter existido no coito com Jocasta e no assassinato gozoso de Laio.

Para falar do cotidiano, refiramo-nos à "relação genital", sob todas as suas formas - do "amor louco" ao casamento que se torna menos "por amor" e mais "por conveniência", das uniões efêmeras ao compromisso no interior de uma existência comum e criadora - da união sem filhos ao destino familiar. As formas são ricas e inumeráveis, mas como afirmar que se trata única - e mesmo principalmente - de formas de "vida sexual"? Os aspectos sexuais em sentido estrito, a sexualidade no sentido dos Três Ensaios, quer seja genital ou paragenital, representam apenas uma pequena parcela quantitativa, e sempre integrada qualitativamente numa relação - tanto faz se social ou associal - que os ultrapassa. Quanto a todas essas formas de genitalidade, pode-se falar com propriedade de modos de sublimação da sexualidade. A "ternura", da qual falávamos há pouco, é apenas um aspecto entre outros desse conjunto.

 

2) Um segundo ponto seria que, em todas essas formas de vida (tomando essa palavra no sentido das pulsões de vida, e de Eros), aquilo que se liga são sempre os múltiplos componentes da pulsão sexual de morte, do sadismo e do masoquismo. Voltarei em seguida à significação central, desse ponto de vista, da analidade. De qualquer forma, não é um acaso que a maioria dos exemplos de sublimação, principalmente profissionais, se refira a uma integração da agressividade. O paradigma do cirurgião permanece central: o manejo do bisturi é dominado, ligado, integrado num cenário, ou melhor, numa multidão de pequenas histórias nas quais a técnica se conjura com a dimensão médica, e até com a "solicitude" pelo caso humano.

 

3) Meu terceiro ponto, enfim, será para observar como o elemento que Freud chamava de "valorização social" muda aqui de aspecto: de fator agregado, com a ideia de processo cultural, ele se torna algo intrínseco ao próprio processo de ligação.

O que não significa, é preciso assinalar, que isso nos coloque na posição de aprovar esta ou aquela cultura, nem, inversamente, que adotemos um relativismo cultural. Mas essa reserva merece uma explicação, que passa por uma breve evocação dos modos de ligação pelo Eu. Pode-se ordenar a ação sintética do Eu segundo dois tipos bem diferentes. Num primeiro modo, que se poderia denominar gestaltista, o Eu impõe uma unidade ao diverso/anárquico da pulsão, por sua própria forma unitária, especular. Essa ligação é eminentemente narcísica, e como tal rudimentar. O Eu unifica o diverso, seja diretamente, seja por simples oposição, termo a termo. Encontramos aqui a formação dos traços de caráter (obstinação, ordem, economia) que Freud destacou de modo privilegiado no erotismo anal. O traço de caráter da obstinação vem diretamente, por bloqueio, continuação e generalização, do conflito anal de oposição. O traço da limpeza e da ordem se apresenta como uma formação reativa, ou seja, como a imagem invertida, por assim dizer em espelho, do interesse pelos excrementos. Quanto à economia, sua derivação remete ao complexo problema da troca, que será retomado por Freud em "Transposições pulsionais". O que quero sublinhar aqui é apenas que as formações características estabelecem um modo de ligação simples, simplista até, narcísica, muito pouco inserido em redes de significações.

O outro modo de ligação, em contrapartida, efetua-se graças a conexões simbólicas. Propus a ideia de que a ligação da mensagem enigmática do outro se efetua segundo o modelo de uma tradução, graças aos códigos - mais ou menos elementares ou elaborados - fornecidos à criança por seu meio. Essa tradução não se deve somente a mensagens primeiras e recalcamentos originários. Durante toda a infância (e igualmente durante todo o tratamento analítico), produzem-se movimentos de destradução e de retradução, regidos pelo processo do a posteriori. À estupidez da ligação narcísico-gestaltista, em que a totalidade unificante se impõe sem mediação, contrapõe-se a complexidade das ligações simbolizantes e dos sistemas simbólicos, nos quais - se quisermos nos remeter a referências filosóficas - o objeto e o conceito são necessariamente correlatos a roteiros, a proposições e a juízos.

Como não tenho tempo para mostrar isso em detalhe, limito-me a indicar que esses dois modos de ligação do Eu são, no entanto, complementares e associados. Assim, os códigos mito-simbólicos podem ser investidos como objetos narcísicos, e inversamente o investimento narcísico de formas distintas faz, por assim dizer, se coagularem objetos ao longo dos roteiros propostos ao sujeito. Para ilustrar esse processo com um exemplo conhecido, não há Aníbal, nem identificação a Aníbal, sem a lenda de Aníbal. Mas não há lenda de Aníbal sem que o Eu consiga, especularmente, destacar o personagem no conjunto da sua história.

 

"Transposições pulsionais, em particular no erotismo anal": eis um texto que já evoquei, e que propõe uma encruzilhada entre o que pertence à simbolização e também à sublimação. Vemos aí mutações da pulsão, do seu objeto, e necessariamente da sua meta, no âmbito do objeto-parcial. Digamos de imediato que, se devêssemos caracterizar esse momento de ligação da pulsão, seria preciso falar de troca, na qual o objeto anal permanece como caso particular, embora essencial. Seria um equívoco considerar a analidade como uma fase, pois ela está presente desde os primeiro dias[iii]. Lembremo-nos, pois, deste extraordinário quadrilátero ou pentágono que Freud desenha em seu artigo, com suas vias de comunicação, e também com suas saídas. Os quatro polos são o excremento, o pênis, a criança e o presente, aos quais se acrescenta o objeto-homem, o que nos indica que, desta vez, Freud centra sua reflexão sobre a pulsão na mulher. É, portanto, um polígono de trocas, baseado em equivalências. Freud teve bastante dificuldade para fundar este valor de troca no plano empírico, procurando o que ele denomina tertium comparationis. É assim que o elemento caracterizado como "o pequeno" não se sustenta quando perguntamos (como se faz desde os socráticos): "pequeno em relação ao quê?". Isso para deixar pressentir que a troca não pode ser facilmente deduzida do empírico, mesmo no caso da troca do presente-excremento pela recompensa parental.

De fato, depois de Marcel e Lévi-Strauss, seríamos levados a considerar a troca como o sistema simbólico que mantém junto o quadrilátero. Mas, principalmente com Marcel Mauss, vem a ideia de que a troca generalizada, recíproca, abstrata, que Freud parece tomar como referência, é somente um código entre outros possíveis. Mauss chama nossa atenção, por exemplo, para os sistemas em que o objeto trocado continua ligado ao doador, eventualmente ao criador. Esse relógio de pêndulo será sempre aquele oferecido por tal amigo, o relógio de Pierre; esse quadro, tendo mudado cem vezes de mãos e de proprietário, continua sendo um quadro de Picasso. Freud, é verdade, parece recusar essa ligação entre a obra e o autor, entre a palavra e aquele que a deu, e até entre o pênis e o homem que o possui. Conhecemos uma frase particularmente violenta nesse texto: "O desejo infantil que visa ao pênis [...] se transforma, então, em desejo que visa ao homem; ele se contenta, pois, com o homem enquanto apêndice do pênis". O homem é a "pequena coisa" do pênis, como o pênis é a "pequena coisa" do homem. Não poderíamos ir mais longe no sistema "de trocas" - quer se entenda este termo no sentido econômico ou sexual.

 Essas poucas reflexões não dão conta da riqueza desse texto, e da encruzilhada que ele representa. Nele se trata do nascimento do objeto parcial[iv].

Outro traço notável desse pentágono: a agressividade está ausente dele, ou, em todo caso, cuidadosamente dominada. Green formulou, a propósito das passagens e mutações entre pulsão de morte e pulsão de vida, a noção de "função objetalizante-função desobjetalizante". Ideia que deveria ser retrabalhada: o termo "função" me parece totalmente injustificado, por sua conotação de funcionalismo. Em contrapartida, nada proíbe reconhecer um movimento objetalizante (em direção ao objeto parcial) e seu inverso desobjetalizante (em direção ao índice inconsciente, ou ao puro significante dessignificado). Desde que, porém, reconheçamos que a "desobjetalização" não é absolutamente um desinvestimento, mas sim um outro investimento, o dos índices como fontes da pulsão; essencialmente, fontes da pulsão de morte, a qual, justamente, reduz o objeto a um puro índice.

Citarei aqui uma pequena anedota. Na época da perda dos dentes de leite, um menino costuma colocar o seu dentinho em uma pequena caixa embaixo do seu travesseiro. O rato virá, durante a noite, trocar o dente por um pequeno presente. Ao despertar, portanto, ei-lo confiante a escorregar a mão sob o travesseiro; apalpa... e percebe um pedacinho de papel. Convencido de que se trata de uma carta dizendo-lhe que fora travesso demais para receber um presente, desata a soluçar. E quando a mãe lhe mostra que é uma nota de dinheiro, isso só o consola em parte.

Por que essa mutação do bom em mau, do presente em punição? Arrisco uma hipótese, sugerida pelo próprio termo: "nota" pode ser um bilhete de reprovação, e também uma cédula. Nos dois polos, enquadrando o objeto parcial do presente, encontramos o significante puro: de um lado o significante inconsciente, sempre ligado a certo ataque interno - e sabemos que, diante do inconsciente, ninguém é inocente; mas, do outro, além do presente pessoal oferecido pelo rato, encontra-se o puro significante, como signo monetário, o objeto-moeda que se torna não objeto (Marx dizia: a mercadoria-moeda é uma não mercadoria). Insisto, pois, nesta passagem do índice ao objeto parcial, e, com Freud, na circulação dos objetos parciais, como determinantes no movimento de simbolização. O fato de a sublimação apresentar as mais íntimas relações com o objeto parcial, de o próprio movimento de simbolização da pulsão de morte se dar por meio de um sistema do qual o pentágono de Freud nos mostra um dos paradigmas, é ainda o que viria atestar certa defasagem terminológica, fazendo com que, desde Klein, talvez se fale mais facilmente de criatividade que de sublimação. O termo criatividade supõe que se situe de saída o objeto parcial em relação ao seu doador, autor ou transmissor. Ele se opõe à ideia muito simplista de uma passagem do objeto parcial para o total por meio de não se sabe qual "totalização". Pois o outro "total", se pudermos manter esta palavra, está presente desde sempre, ou pelo menos desde muito cedo, desde a fundação do aparelho psíquico, ao mesmo tempo como outro da mensagem e outro especular.

Volto mais uma vez a este esquema da produção, do presente e da troca, a este texto sobre as "transposições das pulsões", verdadeira placa giratória da sublimação. Nele, é central a relação com os excrementos enquanto primeira produção do ser humano; mas, em contrapartida, é preciso observar que o sexual, como prazer, passou completamente para o segundo plano. Se quisermos retomar, seguindo Hans Blüher e Lou Andreas-Salomé, a distinção entre o anal e o fecal[v], o erotismo anal é um dos grandes recalcados desse sistema.

A passagem da pulsão sexual desligada para uma ligação sob a égide do objeto parcial é obra do Eu, que opera de acordo com um sistema simbólico-ideológico. Aqui se trata de sistemas bem primordiais, que regulam a troca no nível antropológico. Nada indica que algum desses sistemas detenha a exclusividade. Há pouco mencionei Marcel Mauss, que opõe a troca universal abstrata da economia moderna, na qual tudo tem um preço abstrato (inclusive o tempo, um quadro de Van Gogh, ou o custo dos investimentos sociais necessários para "produzir" um piloto de avião), e modos de troca mais restritos, sobre os quais ele escreve: "As coisas vendidas ainda têm alma, ainda são acompanhadas por seu antigo proprietário, e o seguem"[vi]. Não se trata de optar por uma mitologia em detrimento de outra, por um sistema simbólico em detrimento de outro. Mas não é possível deixar de observar que com a troca abstrata e generalizada se produz uma espécie de regressão do objeto parcial para o índice, da pulsão de vida para a de morte, e junto com ela uma dessublimação. É verdade, aliás, que o objeto parcial, por sua própria parcialidade, contém uma significação de arma e de projétil mortal, que Melanie Klein sempre enfatizou. Já num artigo datado de 1921, Mauss insistia nos dois sentidos da palavra alemã Gift - presente e veneno: "A coisa recebida... vinda de alguém fabricada ou apropriada por ele, sendo dele, confere-lhe poder sobre o outro que a aceita"[vii].

Vamos juntar as coisas. A sublimação, tal como fomos levados a concebê-la, não é de forma nenhuma um processo isolado. É, deveríamos dizer, o processo normal de aculturação, pelo qual o Eu tenta continuamente drenar o Zuydersee do Isso, transpondo em parte as pulsões de morte em pulsões de vida. Um processo no qual estamos hoje enfatizando a função do objeto parcial, objeto de produção mantido como tal. Nesse sentido, pode-se confrontá-lo ao puro "objeto" de consumo, índice de um gozo em que desaparecem qualquer especificidade e qualquer origem. Talvez este movimento - que Freud atribui à fase anal, mas que ultrapassa bastante os contornos temporais dela, e cuja significação para a criatividade é muito importante - venha no a posteriori dos recalcamentos originários e da ligação deles com os índices da oralidade[viii].

Por fim, não quero concluir este desenvolvimento, que trata da sublimação comum no sentido mais amplo possível, sem tomar alguma distância em relação ao privilégio que Freud atribui a este movimento conquistador da pulsão de vida. Por mais necessário que seja o processo de ligação, não se deve esquecer que ela é realizada pelo Eu, sob duas modalidades principais: por um lado, ligação pela imagem narcísica, e por outro ligação pelos sistemas mito-simbólicos. Destes nós aprendemos a desconfiar, e uma análise não pode ocorrer se não aceitarmos que sejam questionados, em sua contingência, em sua historicidade, e mesmo nas suas contradições e absurdos. As diatribes de um Bourdieu contra os "sistemas simbólicos" dominantes não nos devem, a contrario, nos inibir no que deve ser uma atitude analítica a respeito deles.

Notar-se-á também, diferentemente do que postula um certo lacanismo, que tanto o "simbólico" quanto o "imaginário" estão a serviço do Eu, e por isso submetidos a perspectivas quase inevitáveis do fechamento "ptolomaico".

Não vejo como se poderia distinguir da sublimação esta progressão de Eros em cada existência individual, principalmente por meio da simbolização. Ela é a própria sublimação, como integração das metas sexuais anárquicas numa perspectiva "socialmente valorizada".

Pode-se situar este movimento da sublimação entre dois polos: o do sintoma e o do que eu designo como inspiração.

Sobre o primeiro, lembro apenas que ele também marca uma modificação e uma dessexualização parcial das metas. Mas esta se faz sob o modo principal do compromisso, em que alguma simbolização está certamente presente, mas sempre errática em relação ao conjunto do Eu. Em muitas existências, a uma sublimação que efetivamente existe em todo ser humano vem se justapor uma sexualidade neurótica na qual o sexual retorna frequentemente sob as formas mais cruas, seja infiltrando-se nas tarefas materiais cotidianas, abertas à obsessividade e por vezes a uma analidade patente, seja insinuando-se nas relações inter-humanas, com frequência marcadas pelo sadomasoquismo, ou até pelo ódio.

É aqui que a sexualidade dita pré-genital - mas também a genital infantil - recupera a sua preeminência. Talvez não se tenha suficientemente observado que, diferentemente da sexualidade genital adulta, as metas das primeiras são essencialmente fantasmáticas. Assim, as ações descritas por Klein em conexão com a posição paranoide - atacar o interior do outro, cortar, queimar, etc., elas mesmas amplamente tomadas de esquemas da vida cotidiana - se inserem nela com naturalidade, ainda que sob formas mais ou menos disfarçadas.

Ousaria acrescentar que esta sexualização quase aberta talvez simplesmente ajude uma parte da humanidade a viver - certamente aquela que quase não vemos, ou que não vemos em absoluto, a não ser por meio das mídias.

Acho indispensável mencionar este ponto essencial, porque estamos frente a um tema de antropologia psicanalítica - a sublimação - que exige uma colocação em perspectiva ela mesma antropológica. Simplesmente, não nos esqueçamos de que a análise encontra em seu campo de experiência efetiva somente 0,000...% dos indivíduos de cuja existência tomamos conhecimento pela tela da televisão: massacradores e massacrados, assassinos, violadores e violados, deportados, aprisionadores e aprisionados, escravos dos tempos modernos e de todos os tempos. O benefício primário (e principalmente secundário) trazido por uma sexualidade não sublimada não pode ser subestimado. Uma sexualização regida antes de tudo pela pulsão sexual de morte sádica, mas principalmente masoquista; o que, entretanto, de forma alguma implica que a tendência à ligação e à simbolização não continue a operar ao lado dela.

Mas não é um dos menores resultados da abordagem psicanalítica, quando acompanhamos excepcionalmente um caso próximo destes que tenho em mente, poder perceber que as próprias tarefas se diversificam, se desligam e se abrem. Há, por vezes, como se diz, ascensão social, mas não necessariamente. É mais uma espécie de mutação. A sexualização persiste, mas se torna menos rígida, menos grosseira, menos extrínseca, e também menos presa num enfrentamento social sem mediação. A via da simbolização parece se desenhar.

 

Com meu outro polo, o da inspiração, chego agora a águas que pareceriam mais calmas - mas apenas em aparência. Para anunciar as coisas: se a sublimação bem-sucedida sempre se desenha sob a égide do Eu e do fechamento ptolomaico - ou com a bênção de uma "filosofia do sujeito" -, não devemos lembrar aquilo que situamos na origem da pulsão: a relação com a mensagem enigmática do outro? Não devemos conservar alguma reminiscência disso, inclusive de um duplo ponto de vista: na teoria e no próprio ser humano? Pois as reminiscências de uma são também as do outro.

É ainda em Freud que pretendo localizar essa reminiscência, através das suas dificuldades para estruturar a noção de sublimação. É nesse sentido muito preciso que podemos opor aqui duas atitudes teóricas: "situar" a sublimação, e "fazê-la derivar".

Situar a sublimação é ater-se ao jogo das transposições pulsionais conforme o esboçamos, considerando o processo de simbolização como ocorrendo a partir das pulsões já constituídas pelo recalcamento. Fazer derivar a sublimação é tentar seguir a pista de uma gênese que se situa no movimento originário da própria pulsão: no recalcamento originário.

Ora, no mesmo período em que a questão de pansexualismo se tornará urgente, com a absorção da autoconservação em Eros, surge o grande texto de Freud sobre a criatividade científica e artística: "Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância", de 1910. Para o nosso propósito, é importante constatar que este texto fundamental sobre a sublimação - de qualquer forma o mais inspirado - se apresente ao mesmo tempo como uma das principais reaparições da sedução infantil precoce.

Para a nossa finalidade, o mais simples é tomar as páginas sobre a gênese da "pulsão de saber": Wisstrieb ou Forschertrieb. Uma gênese que Freud situa em Leonardo, e talvez em geral, como muito mais originária que as outras sublimações, inclusive as artísticas. No início, Freud localiza duas "pulsões" (diremos: duas "funções") que provêm da autoconservação: uma é o prazer-desejo de ver, Schaulust, a outra é a pulsão de domínio. Essas duas funções, portanto no início não sexuais (poderíamos dizer dois elementos do equipamento psicofisiológico, que nada impede de terem uma força constitucional maior ou menor), são muito precocemente captadas no processo sexual cuja iniciativa pertence ao adulto. Em outras palavras, essas funções constituem o lugar, o próprio espaço da sedução. Sigamos novamente Freud. A investigação, doravante sexual, pode conhecer três "destinos", todos precedidos por - e ligados a - um recalcamento qualificado enfaticamente de "enérgico".

 

1) A inibição intelectual. Vitória do recalcamento (com frequência apoiado pela religião).

2) A obsessivação do pensamento. O sexual invade a defesa via formação reativa: "investigar torna-se aqui atividade sexual, uma atividade com frequência exclusiva [...] mas o caráter sem conclusão possível da pesquisa infantil se repete no fato de que essa ruminação não termina nunca".

3) ... mas, antes de passar para o terceiro tipo, é preciso assinalar que esses três modos não são exclusivos entre si. O caso "mais raro e mais perfeito" (o terceiro) pode coexistir ou se alternar com momentos de inibição e ruminação. É o caso de Leonardo. Também pode ser visto em Giacometti, cuja figura evoco aqui pela primeira vez.

Com efeito, esse terceiro tipo nos deixa, no texto de Freud, com sublimes aberturas - e também com uma insatisfação. Há recalcamento, mas não de um determinado componente, o ligado à pesquisa sexual. Mas há, no entanto, recalcamento... já que a pesquisa evitaria os "temas sexuais". O que é de certa forma falso, justamente em Leonardo.

As palavras mais sugestivas de Freud são as que expressam a ideia de uma sublimação "desde o início" (von Anfang an):

 

A libido se subtrai ao destino do recalcamento, sublimando-se desde o início em desejo de saber e se colocando como um reforço ao lado da vigorosa pulsão de pesquisa[ix].

 

Essa não é a única passagem: "A sublimação original é preparada no momento do primeiro recalcamento".

 

Isso nos incentiva a passar do nível dos recalcamentos secundários (com as pulsões já constituídas) para o do recalcamento originário. Em outras palavras, este início da sublimação nos remete ao início da pulsão sexual.

Não se pode negligenciar aqui que o "Leonardo" marca o ressurgimento, temporário em Freud, da sedução, sob a rubrica dos efeitos da sedução materna. Certamente, a teoria da sedução não reaparece como tal. Cabe-nos convocá-la. Mais precisamente, por trás da vetorização secundária, pulsional, convém buscar uma vetorização mais primitiva, que talvez não ocorra entre forças intrapsíquicas, mas sim na relação interindividual. A partir de uma relação original recíproca, dá-se algo que também é originário: o caráter unilateral do que entra na comunicação adulta como sexual, como compromisso sexual.

A mensagem enigmática é o que assinala a dimensão irredutível da alteridade. Não em virtude de alguma alquimia ou metafísica, mas por trazer em si o traço irredutível e ilegível do inconsciente sexual do outro, do outro adulto. A vetorização da mensagem enigmática é "copernicana": inscreve-se sobre o fundo de uma vetorização interpessoal, a saber a do apego não sexual.

A mensagem enigmática se inscreve na criança como mensagem. Como "significando para", e não como traço ou representação: uma metapsicologia do traço ou da representação permaneceria irredutivelmente solipsista.

A partir de então, o que a criança pode fazer com essa mensagem? Seus destinos são múltiplos.

 

   1) A mensagem pode ficar não traduzida, forcluída. Temos então a mensagem persecutória, e sua prima, a mensagem superegoica.

   2) A mensagem pode ser tratada, ou seja, traduzida, aparentemente sem resto. "Aparentemente", pois o resto não traduzido é recalcado, e portanto, para o Eu é como um nada. O Eu é sempre quem, parafraseando O. Mannoni, diz: "Eu sei", ou seja, englobo em uma tradução. E sobre o resto: "não quero saber nada dele".

Esse é justamente o recalcamento que Freud define constantemente como um não-querer-saber.

   3) Seria possível agora imaginar o terceiro "tratamento" do qual Freud fala nesta passagem sobre a sublimação desde a origem? Um relacionamento, mas mantendo o aguilhão do enigma? Algo como: "eu sei; e do que não sei, nada quero saber sobre o seu conteúdo; mas, mesmo assim, pressinto - para sempre - que não sei". É essa manutenção da dimensão do enigma, a despeito dos avatares do recalcamento, que segundo penso Freud tenta nos mostrar em Leonardo. Ele opõe constantemente duas sublimações: a pictural, mais tardia, ligada à "alegria de viver"; e a sublimação intelectual - originária - que vem animar, mas também paralisar a criação artística.

Cabe aqui mencionar novamente este autêntico irmão de Leonardo: Giacometti. Ao lado do Leonardo de Freud, o Giacometti que Bonnefoy acompanhou durante um ano de trabalho coletivo.

Em Giacometti, a diferença seria que a pesquisa - a investigação - anima diretamente a pintura ou a escultura. Mas quando a olhamos de perto, ela praticamente desaparece. Evoco as páginas conhecidas em que Freud retoma a grande oposição entre por um lado conhecer e por outro amar e odiar. Amar, odiar, estão do lado da pintura; o conhecer se coloca inicialmente como auxiliar indispensável da arte, mas às vezes pode se tornar inimigo dela:

 

Não se pode amar ou odiar nada que não se conheça. Mas, finalmente, a pesquisa se impõe, e pode chegar a paralisar a criação[x].

 

O artista tomara antigamente a seu serviço, como auxiliar, o investigador; e eis que o servidor se tornou mais forte, reprimindo o senhor[xi].

 

E em Giacometti:

 

A arte me interessa muito, mas a verdade me interessa infinitamente mais"[xii]. "Nem fazer belas esculturas, nem me expressar: é o tema que importa". A ponto de frequentemente afirmar que jogaria fora a escultura, como a concha vazia, quando estivesse terminada: "de certa forma, isso ainda não começou.

       Faço esculturas para me livrar delas.

       É para as deixar de lado". (Entrevista em "Les heures chaudes de Montparnasse").

 

Em Giacometti, o aspecto da sexualidade que chamo secundário não está por certo ausente. Freud também observa em Leonardo esta intricação de diferentes níveis: "É assim que recalcamento, fixação e sublimação repartem entre si as contribuições que a pulsão sexual oferece à vida psíquica de Leonardo"[xiii].

Em Giacometti, isso acontece com a participação de componentes - principalmente sádico-anais - extremamente próximos ao Leonardo. Anais - quero dizer desde que, muito pequeno, lambuzou com excrementos uma tela do seu pai - até esses gessos pintados, lambuzados igualmente de forma quase sacrílega.

E, em Leonardo, todas as palhaçadas escatológicas que conhecemos.

A prática da escultura, de modo mais imediato que a pintura - quero dizer a modelagem - está diretamente ligada, é claro, à analidade, e Giacometti (que conhece Freud) sabe bem disso: "É uma mania como outras de remexer a terra, a pretexto de trabalhar".

Quanto ao sadismo e à morte...

Antes de dizer uma palavra sobre eles, porém, gostaria de reunir alguns pontos em Giacometti e em Leonardo.

 

A criação, em Leonardo e principalmente em Giacometti, está como que transfixada pelo vetor da "investigação", ou, melhor dizendo, da "busca". Mas em que sentido orientar este vetor? Sem dúvida, a investigação e a criação vêm do indivíduo, e neste sentido é centrífuga. Mas o que a convoca e a orienta é um vetor que provém do outro. Para Leonardo, "o olho é a janela da alma", o que assinala uma abertura, e mesmo uma exposição, da alma ao trauma do outro.

Em Giacometti, é o olhar do outro que deve ser restituído. Não é um "tema" qualquer, é a figura humana, e sobretudo, o olhar. Não um determinado olhar pessoal, nem um olhar abstrato, mas o que é o olhar do outro como enigma. Segundo Yves Bonnefoy: "Fazer parecido, para Giacometti, foi compreender a expressar a tensão que faz que este ser de dentro, esta "alma", para arriscar um nome, se apodere dos olhos, da boca, da fronte, para os retirar do espaço"[xiv].

Isso, que é tão manifesto em Giacometti, encontra-se em Leonardo com o sorriso - o sorriso que é ele próprio um "dirigir-se a" - para sempre indecifrável. E isso apesar de todos os sarcasmos de Dali ao rabiscar La Gioconda.

Utilizei o termo "transfixar" para caracterizar o vetor dito da investigação. Mas é preciso sublinhar que não se trata de um vetor centrífugo, dirigindo por assim dizer o sujeito para o seu objeto. É um vetor centrípeto, vindo do outro. E tudo o que o sujeito pode fazer é ficar aberto ao trauma e pelo trauma.

Esse trauma do enigma não é adquirido nem aberto de uma vez por todas: ocorre por eclipses. A abertura é justamente a disponibilidade para o outro que virá me surpreender.

Pareço empregar um tom um pouco místico. No entanto é assim, maravilhado, que Freud fala do envelhecimento de Leonardo e do seu encontro com a Joconda:

 

Ao atingir o ápice de sua vida, quando entrava na casa dos cinquenta [...], é assaltado por uma nova transformação. Camadas ainda mais profundas do seu conteúdo psíquico voltam a se ativar; mas essa nova regressão beneficia sua arte, que estava se ressecando. Encontra a mulher, que desperta nele a lembrança do sorriso feliz e sensual fascinado da sua mãe... Pinta a Mona Lisa, a Santa Ana como terceira, e a série de retratos misteriosos caracterizados pelo sorriso enigmático...[xv]

 

Obviamente, não temos fotos de Leonardo criança. De Giacometti, porém, há um extraordinário retrato de família, com uma troca de olhares impossível de descrever: nele se confrontam o sorriso verdadeiramente leonardesco da mãe e o olho perscrutador, duro como pedra, de Alberto[xvi].

Um olhar perscrutador que se imagina também ser o de Leonardo quando acompanhava os condenados à forca para captar o enigma último.

Longe de mim a ideia de que o enigma do outro seja sempre, como quer Lévinas, mediatizado, vetorizado pelo olhar. Mas, em contrapartida, estou convencido de que é o enigma do outro - do outro humano adulto - que veicula outros enigmas considerados primeiros.

Em Giacometti, os encontros com o rosto, com o olhar do outro, vêm pontuar, relançar a investigação. Ele possui alguns modelos privilegiados, que precisa literalmente esgotar. Há o olhar do outro morrendo, em dois episódios famosos e com frequência relatados (Morte de Van M., Morte de T.). Repetirei aqui a meditação profunda de Freud: o enigma da morte pessoal, da nossa própria morte, é mediatizado pela morte da pessoa próxima; o "homem não mais podia manter a morte à distância, já que a havia experimentado na dor sentida pelo defunto"[xvii].

O mesmo acontece, a meu ver, no que diz respeito ao que designo, não sem reservas, como o enigma do ser, para o qual generalizaria a fórmula de Bonnefoy sobre Giacometti: "Há pensamento do ser somente no encontro dos seres"[xviii].

É portanto aqui que tento reintroduzir o velho termo de inspiração, usado antigamente pelos românticos, mas sobre o qual é preciso dizer que a explicação, mesmo nos românticos alemães, não nos conduz muito longe.

Por que colocar esse termo como alternativo, ou talvez mesmo como mais adequado que essa forma de sublimação originária da qual fala Freud?

 

É que, com efeito, não se trata de um mecanismo substituindo outro. Um mecanismo se conjuga sempre em Eu, ou em sujeito. Ora, a inspiração se conjuga em outro. Seu sujeito não é "o" sujeito, mas o outro, assim como para a sedução, a perseguição ou a revelação. Em ressonância com o outro adulto originário, esse outro, em momentos privilegiados, vem reabrir a ferida do inesperado, do enigma.

Sem referência a um conteúdo particular, aberto a múltiplas traduções, o sorriso do São João Batista suscita para sempre a perturbação:

 

Esses quadros respiram uma mística cujo segredo ninguém ousa penetrar... Essas figuras são novamente andrógenas, mas não mais no sentido da fantasia do abutre. São jovens lindos, de uma delicadeza feminina e com formas afeminadas; não baixam os olhos, mas têm um olhar misteriosamente triunfante, como se conhecessem uma grande felicidade que convém calar. O familiar sorriso enfeitiçador nos faz pressentir que é um segredo de amor[xix].

 

Os próprios termos de Freud estão aí para dizer que a explicação em primeira pessoa é sem dúvida possível, mas insuficiente: "uma mística cujo segredo ninguém ousa penetrar", "uma grande felicidade que convém calar", "um segredo de amor", "a criança perturbada pela mãe". São termos impregnados de respeito, num personagem tão pouco respeitoso quanto o inventor da Psicanálise.

A inspiração, por certo, nunca é pura, nem sempre totalmente irredutível ao olhar analítico. A interferência com elementos neuróticos, e mais ainda psicóticos, é muitas vezes patente. Mas a psicose não é também uma reminiscência da primazia do outro?

Antes de deixar aquele que chamamos de criador, tratemos de um último paradoxo. Além do outro cuja ação traumática tentamos desvendar, outro do encontro, e também, trazidos por ele, o outro da Morte e até da Natureza, o poeta ou criador em geral está exposto a um outro apelo: o do público.

Existe, claro, o público determinado sobre o qual se deseja produzir certo efeito, por meios apropriados e calculados. Pode-se definir esse público como sendo objeto de uma pragmática, e mesmo de uma técnica, num movimento cuja meta é sempre ptolomaica. Mas além deste há o outro indeterminado, ao qual se dirige uma mensagem infinita e sem recurso, o outro do século por vir, para parafrasear Stendhal.

Não creio que se possa reduzir esse momento do "dirigir-se a" aos seus aspectos narcísicos, como parece fazer Freud em "O poeta e a fantasia", um movimento que vai do criador que se "expressa" ao público "receptor", do qual se espera, como resposta, algum benefício. O movimento ptolomaico-narcísico da criação é inegável. Mas, além dele, e justamente com ele, produz-se uma inversão: é a espera do público, ela mesma enigmática, que é o agente provocador do trabalho da obra.

Há então abertura, no duplo sentido de ser aberto por e estar aberto para: abertura pelo encontro, que renova o traumatismo dos enigmas originários, abertura para, e, pelo público indeterminado, disperso no futuro.

Do artigo de Daniel Lagache "A psicanálise como sublimação"[xx], destaco o questionamento ligado ao título. E, para mudar de barco, diria: "A Psicanálise como sublimação e/ou como inspiração". Pois apenas podemos nos manter nesta prática - a menos que a consideremos um instrumento profissional entre outros - se estivermos intimamente convencidos de que tem algo a ver com o originário do ser humano. A situação analítica reitera o questionamento frente ao enigma do outro. Restaura e mantém com firmeza a abertura dele. Seu oposto inevitável e indispensável é o movimento psicoterápico, interno à própria análise, mas que constitui claramente o seu polo egoico, correspondente à incessante tendência ao fechamento.

Na situação que a presença do analista cria para o analisante, se reencontrariam as duas alteridades que caracterizam o que chamei de inspiração. Por um lado, o que quer para mim esse analista, emissor enigmático, portador de um desejo que ele próprio ignora; por outro o que quer de mim essa espécie de "público", de destinatário cuja espera está para sempre suspensa, feita para não ser preenchida.

Freud chegou a comparar a análise a uma operação cirúrgica. "Você não vai", diz ele ao paciente, "deixar as coisas desse jeito e pular, com a barriga aberta da mesa de operação!" Comparação pertinente, pois a análise é antes de tudo um trabalho de desligamento. Poder-se-ia dizer que é uma prática controlada de retirar as amarras, até da pulsão sexual de morte.

Análises que fecham as feridas: o que pode haver de mais legítimo? Análises que se fecham, às vezes, sobre as feridas. Não levemos tão longe a comparação. Aliás, é pouco comum que a decisão de "fechar" venha de nós.

Mas o que acredito saber é que há um tipo de abertura que a análise às vezes mantém: justamente a que é sua marca de origem, sua marca pela origem. E que esta pode ser mantida, transportada para fora, em direção a outros campos de alteridade e inspiração. É algo que devemos realmente chamar de "transferência de transferência". Transferência da transferência em oco, evidentemente, ou seja, transferência da relação com o enigma enquanto tal.

Sem dúvida, pensamos sobretudo na passagem à prática analítica, que implica, não um "desser" qualquer, mas a possibilidade de ser surpreendido, atravessado pelo questionamento sem fundo daquele que vem ao nosso encontro. Mas há com certeza muitos outros campos de inspiração sobre os quais se abre o despossuimento, o luto que marca o término de uma análise. Formulei a hipótese de que o essencial desse despossuimento não era a perda de um objeto, mas a irreparável constatação de que a fala do outro - do defunto - ficaria para sempre inacabada.

É esse mesmo inacabamento que marca a fala do analista, tanto nos últimos minutos como ao longo de toda a análise. Um inacabamento que compete ao analisante transportar para outro lugar. E neste sentido é bem vão o temor, muitas vezes formulado, de que a análise corra o risco de fazer secar a inspiração.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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