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AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
55
Tempo, Narração e Política
ano XXVIII - Dezembro de 2015
151 páginas
capa: Marcelo Cipis
  
 

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Resumo
Resenha de Olga B. Ruiz Correa (org.), Os avatares da transmissão psíquica geracional, São Paulo, Escuta, 2000, 100 p. Ilustrada pelo filme Ida de Pawel Pawlikowski, 2013 .


Autor(es)
Ilana Safro Berenstein
é psicóloga e psicanalista, membro da Rede de Atendimento Psicanalítico e aspirante a membro no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Mayra de Castro Laurino Laurino
é socióloga e psicanalista, aspirante a membro no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e integrante da Equipe Nós de Acompanhamento Terapêutico.


Notas

1.        Direção: Pawel Pawlikowski; elenco: Agata Kulesza, Agata Trzebuchowska, Dawid Ogrodnik e participação especial de Joanna Kulig; roteiro: Pawel Pawlikowski e Rebecca Lenkiewicz; produção: Eric Abraham, Piotr Dzieciol, Ewa Puszczynska; diretor de fotografia: Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski; edição: Jaroslaw Kaminski; título original: Ida; duração: 80min. (http://www.zetafilmes.com.br/2015/filme.php?id=8)

2.        S. Freud, Totem e tabu (1913), Obras completas, ed. Imago, vol. xiii, p. 188.

3.     T. Mazzarela, Fazer-se herdeiro: a transmissão psíquica entre gerações. São Paulo, Escuta. 2006, p. 102.

4.     N. Abraham e M. Torok, A casca e o núcleo. Trad. Maria José R. F. Coracini. São Paulo, Escuta, 1995, p. 238. 


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 LEITURA

Palavras sepultadas sobre um morto-vivo sobreviverão trans-criptas [Os avatares da transmissão psíquica geracional]

Words buried in a zombie will survive trans-cripted
Ilana Safro Berenstein
Mayra de Castro Laurino Laurino

O livro Os avatares da transmissão psíquica geracional, organizado por Olga B. Ruiz Correa, nasceu de uma edição da revista Pulsional (outubro de 1998) sobre o trabalho psíquico intra e intersubjetivo no processo da transmissão geracional em que há situações traumáticas e lutos não elaborados.

 

A edição esgotou-se assim que saiu, o que revelou o crescente interesse e a importância de dar seguimento à pesquisa sobre o tema da transmissão psíquica. Transformada em livro, recebeu um artigo especial dedicado a resumir o Colóquio realizado no ano 2000, em Paris, em que Abraham e Torok, autores de A Casca e o Núcleo, foram homenageados por essa obra de valor nodal sobre o assunto. O artigo reuniu grandes nomes da Psicanálise para apresentações e debates sobre a polaridade negativa da transmissão e suas novas leituras clínicas.

 

A partir da análise do legado dos autores húngaros, foram traçados cinco principais eixos para a construção de Os avatares da transmissão psíquica geracional: os efeitos dos segredos de família, a clínica do fantasma ou assombração, o luto impossível, a identificação secreta com um outro (fantasma de incorporação) e o enterro intrapsíquico de uma vivência vergonhosa e indizível (cripta). Cada eixo foi contemplado por um autor, e o resultado: cinco artigos, com diferentes recortes que contemplam os cinco eixos, e ampliam ainda mais o terreno do trabalho com traumas, catástrofes, guerras e genocídio e o da clínica em geral.

 

Ao retomar as palavras de Goethe: "Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu"[1], Freud se referia ao trabalho psíquico de posicionamento frente ao legado. Cabe a cada um, de forma singular, apropriar-se do que lhe foi transferido. Frente à dificuldade nessa empreitada, a psicanálise se propõe a ajudar. O trabalho visa inscrever os conteúdos errantes no psiquismo do sujeito, evitando a compulsão à repetição e transformando-os na citada herança. Trata-se da passagem de passivo, daquele que recebe, para ativo, daquele que conquista.

 

Em Avatares, esse processo é abordado por Evelyn Granjon, baseado em sua experiência na condução de grupos de TFA (terapia familiar analítica), um dispositivo clínico que demanda um cuidado especial pela complexidade da tarefa. Presta-se a tratar das fusões e confusões dos espaços psíquicos em relações fusionais ou em casos de perturbação grave na cadeia associativa familiar, proveniente de rupturas que causaram a perda da memória e da história.  É um recurso para acessar o negativo da transmissão e, sobretudo, criar um lugar de continência e metabolização, de repetição e elaboração, de confronto com as alianças inconscientes do grupo familiar. A ideia é proporcionar que cada um seja sujeito no grupo e do grupo no processo de diferenciação e subjetivação.

 

Esse processo revela a via de mão dupla da transmissão, pois é fundamental para que o sujeito pertença e se enlace numa cadeia significante e, ao mesmo tempo, apresenta-se obscura, repleta de conteúdos inconscientes, contendo não ditos e lacunas não simbolizadas. São marcas que atravessam gerações por vias não verbais e escapam à revelação, à significação e à simbolização. Ocultam acontecimentos que foram silenciados por serem traumáticos, resultados de morte, violência, crime, omissões, incesto, migrações e humilhações. Verdadeiros arquivos de família fadados à procuração para seus sucessores.

 

René Kaës apresenta um caso clínico de resistência ao luto. O autor conta os efeitos da morte de uma criança que ficou sem sepultura psíquica na família, desde os irmãos, propagando-se para a descendência dessa. Levanta uma gama de indagações a respeito do duplo narcísico, da rivalidade e da agressividade, da culpa e das relações ambivalentes dos sobreviventes com o filho/irmão morto, sobretudo pelo lugar que ocupava para a mãe.

 

A paciente em questão tem uma mãe que perdera o irmão, e ela, por sua vez, também perdeu uma irmã e mais tarde perde uma de suas filhas, todos em tempos de infância.  Essa sucessão de tragédias ocorre de tal forma que ninguém é capaz de se confrontar com o luto. Os mortos vão sendo substituídos pelos vivos. O impossível luto materno lhe traz um impasse, como na questão feita por Antígona: "Morrendo você me tomou a vida?" (p. 48). 

 

Já Olga B. Ruiz Correa reúne várias referências sobre a transmissão psíquica. Resgata-as de Freud em Totem e tabu (1913) e Introdução ao narcisismo (1914) e dá um salto para as novas conceituações de autores contemporâneos como Faimberg, sobre a telescopagem que consiste na falta de espaço e discriminação entre as gerações. Esse último usa a imagem das Matrioskas em que a criança se esconde e se aliena no narcisismo dos pais, sem diferenciação e sem lugar psíquico. São patologias que eclodem na segunda ou na terceira geração e configuram, por vezes, psicoses.

 

No fronte da clínica e no trabalho com migrantes provindos de guerra em situações limites, Olga lida com essas questões e tem como preocupação maior os traumatismos acumulativos causadores da patologia transgeracional. Seja na violência intrafamiliar ou político-social, o silêncio decorrente de um trauma não possível de ser metabolizado se acumula causando uma desordem psíquica, cria sintomas defensivos que transformam seu conteúdo em impensável.

 

Pierre Benghozi vê a vergonha como a maior causa desse silêncio. Sua hipótese é que essa seja a organizadora do negativo na transmissão transgeracional. O silêncio buscaria ocultar a humilhação de um ataque à dignidade humana.

 

Benghozi discorre sobre os traumatismos precoces, a vulnerabilidade de bebês e crianças na decorrência de catástrofes em comunidades inteiras. Alerta para a importância da intervenção precoce e dos continentes genealógicos comunitários para a reestruturação do sujeito. Os trabalhos jurídico e social tornam-se imprescindíveis e devem ser feitos em comunhão com o psicoterapêutico, uma vez que atingem uma dimensão imaginária cultural na qual os crimes contra a humanidade possam ser julgados.

 

Uma paciente conta que suas ideias suicidas tinham um fim de que sua morte, em sacrifício, ofereceria um lugar para o choro e, seu próprio jazigo, um lugar para os familiares mortos que foram silenciados na Shoah.

 

Outro traumatismo precoce pode ser suposto nos filhos de estupro sucessivos em mulheres na Bósnia. Olhar o bebê era defrontar-se com a violência da concepção, o que Benghozi chamou de genocídio por ataque à filiação e à contaminação. "A intrusão do corpo das mulheres corresponde à destruição dos lugares de memória" (p. 94), a implosão traumática do corpo grupal.

 

Por fim, Janine Puget enfatiza a subjetividade vincular. A autora afirma que a realidade (a memória) é sempre construída na presença do outro. Desse modo, questiona a identidade e exalta o imprevisível de cada novo encontro. A memória traumática, por estar inacessível à linguagem e, portanto, fixa, pode privar o sujeito desses novos intercâmbios e significações.

 

Assim, na transgeracionalidade psíquica, o silenciado carrega em si uma espécie de sepultura viva, que Abraham e Torök denominaram cripta, que é um lugar fundado pela vergonha e, portanto, pelo silêncio, onde habitam conteúdos carregados do indizível, uma vez que não adquiriram significação porque não foram transformados em linguagem.

 

A aquisição da cripta é denominada incorporação. Diz respeito a uma operação inconsciente em que o ego incorpora um objeto/conteúdo, que é engolido para escamotear a perda e, consequentemente, o trabalho de luto. Revela a impossibilidade da introjeção, em que haveria a inclusão do vivido e um alargamento do eu. Quando o processo de luto se realiza, a introjeção ocorre. A libido recolhe-se ao eu para ficar, posteriormente, disponível para novos investimentos[2].

 

Na incorporação, a fantasia substitui as palavras que atestam o vivido e a memória. A impossibilidade de simbolizar a morte, por exemplo, faz com que ela seja engolida num invólucro com as lembranças num mesmo sarcófago. A perda inconfessável fica na cripta, uma espécie de inconsciente artificial, que se encontra entre o inconsciente e o eu. A palavra é sepultada junto ao morto e ludibria-se de que tudo está como era antes através de uma ilusão. Ledo engano, já que esse morto permanece tóxico e indigesto.

 

Nas tragédias familiares que se mostraram traumáticas, além da vergonha e do segredo para a constituição da cripta, tem-se também a participação do seu "criptóforo"[3], o protagonista do velado, e do descendente depositário, que será assombrado pelo fantasma do morto sem sepultura.

 

A pessoa do criptóforo funciona como um túmulo e tem como incumbência esconder, ser o guardião da espessura da parede da cripta na qual é mantido o segredo, velado, ininteligível. Sua função é manter enclausuradas as palavras, imagens e, eventualmente, até a existência de pessoas que representam um perigo desconhecido. Por isso, fazem-se pactos inconscientes intersubjetivos, relacionados àquilo que é negado para manter o morto-vivo camuflado, em nome de uma complementaridade de interesses de família ou de grupo.

 

O transmitido oculto sobrevive na tentativa de apagar a história, é constituído por defesas que minimizam ou eliminam o elemento traumático. A natureza intraduzível desses restos traumáticos pode cobrar o preço de ter sua importância potencializada na vida daqueles que os recebem. Seus efeitos podem ser sintomas, estados patológicos de luto, traumatismos diversos, sofrimentos narcisistas extremos e expressões perversas.

 

O silêncio dos fatos referentes a um grupo, como um país ou uma comunidade, implica a mais devastadora violência, já que impede o luto compartilhado no suporte do vínculo social, que, com seus instrumentos simbólicos, é a maneira mais eficaz de aplacar a dor e conseguir atravessá-lo.

 

Considera-se essencial apostar na possibilidade de revelação da origem da fantasia, mesmo que gradual e parcial; deixar ecoar a palavra e rastrear os significantes perdidos e os símbolos que rodeiam a cripta, nas frestas e falhas do processo de simbolização. Ou seja, dar lugar aos afetos e vivências outrora inacessíveis, pelo poder das palavras, sobretudo no trabalho com as reminiscências.

 

A ideia é criar a chance de transbordar, ou, no caso, des-bordar, como se estivesse puxando o fio e desfiando as linhas de uma trama enovelada e mal acabada. Buscar a chance de bordar, com a mesma linha, um novo tear. É preciso um movimento de recriação que pondere o que seguirá adiante e o que se romperá, numa relação de comprometimento e criatividade com a própria história.

 

As entrelinhas de um filme que esteve em cartaz, há pouco tempo, nos fizeram pensar nessas questões. E seguindo as reflexões de Os Avatares... apresentamos, a seguir, um breve relato do filme Ida, de Pawel Pawlikowski, como aporte ilustrativo.

 

Com olhar sensível e nostálgico, Pawel conquistou o primeiro Oscar da Polônia, ao capturar a atmosfera socialista do pós-guerra, dura e decadente, como cenário de uma comovente história de silêncio.

 

Ana é uma moça que fora criada em um convento de freiras. Às vésperas de fazer seus votos para tornar-se uma delas, a madre superiora, que parece saber algo importante de sua história, lhe dá uma ordem. Mesmo contra sua vontade, Ana deveria conviver algum tempo com sua tia, única parente viva, que nunca lhe havia procurado. O imperativo fique o tempo que for necessário indicava um objetivo implícito: desvendar sua origem.

 

De pronto, vê-se o choque. A recatada noviça encontra uma mulher erotizada, fumante, alcoolista. Apesar das diferenças, inevitavelmente revela-se o que tinham em comum: o passado que lhes levara a ser quem eram.

 

A história que as une tem como contexto a Segunda Guerra Mundial. A tia, Wanda, assim como os pais de Ana, eram de uma família judaica acometida por um crime terrível. Os pais de Ana e o filho de Wanda foram escondidos por vizinhos que, temendo por suas próprias vidas, acabaram executando-os. Wanda lutava na Resistência e estava distante no momento do crime. Ana, ainda bebê, foi poupada da morte por ser muito nova e não levar em seu corpo marcas da judeidade. Foi entregue à Igreja. Os pais de Ana e o filho de Wanda, circuncisado, foram mortos e enterrados em local desconhecido.

 

Revelada a tragédia, nota-se o percurso libidinal da vida de Wanda, que, apesar de devastada emocionalmente, conseguira construir uma notável trajetória profissional, como juíza. No campo pessoal, sob pressão de um sofrimento terrível, entregou-se aos prazeres e castigos do sexo descompromissado, do álcool e do tabaco. O sofrimento, a indignação e, principalmente, o vazio dessa personagem ficam evidentes desde a relação, no início, fria com a sobrinha até sua última e derradeira cena de insuportabilidade.

 

Wanda parece levar uma vida separada do segredo, de maneira que os mortos de sua história estariam enterrados em local inacessível tanto física quanto psiquicamente. Parece usar a bebida por seu efeito anestésico que engana e entorpece a dor, recobre o impensável e assim cria um caminho possível para o desejo em desordem que parasitava sua vida pulsional.

 

Já Ana, que se descobre Ida, vive outro processo. O filme sugere que, conscientemente, Ana não sabia de nada e viveu a realidade em que fora posta: as rezas, a devoção, a simplicidade, os valores cristãos. Fora adotada pela Igreja, lá teve suas madres. Ali criou o espaço para se fazer sujeito do grupo no laço social fraterno, sustentado pela própria estrutura, a instituição da igreja católica.

 

A posição da Igreja na sua vida pode ser vista com uma delicada ambiguidade. Ela deve a essa instituição o amparo, o cuidado da criação, as relações afetivas, o pertencimento e uma gama de significados e recursos culturais que lhe foram estruturantes. Por outro lado, recebeu também a clausura e o pacto de silêncio sobre seu passado até o momento da insistência na busca pela tia, que indicava não apenas o saber velado, mas também a quebra de tal pacto.

 

A mudança de nome evidenciou o peso do que lhe acontecia e simbolizou essa ambiguidade. O que não pôde ser nomeado ganhou um novo nome no batismo, o sacramento e a comunhão entre os cristãos. Por um lado, esse ato pôde ser entendido como sendo protetor em alguma medida, mas, por outro, era um nome próprio que não era seu próprio nome e escondia sua ascendência. Revelou-se, com a missão, o impacto de encontrar um nome que, apesar de verdadeiro, não lhe foi pronunciado durante a vida. Um nome judaico.

 

Ana lida de forma intrigante com a dor e a solidão. São poucas as palavras proferidas, e mínimas as lágrimas derramadas. Sua postura, séria e aparentemente inerte, expressa o embate da indestrutibilidade da sua fé com o desvelar de uma realidade, não sabida de si, que implicou novas convocações identificatórias.

 

A relevante omissão na vida de Ana levou-a à indagação sobre como lidara com sua origem, questão primordial e estruturante para o sujeito, que situa sua existência e seu lugar no mundo. O filme não traz evidências de angústia antes de sua saída do convento, ao contrário, induz a crer que Ana vivia na sua condição em harmonia. Na hipótese de que as freiras não lhe forneciam informações sobre sua origem, e a tivessem tratado como tabu, teria ela reprimido este questionamento e a possibilidade de pesquisar sobre seu passado? Se o fizesse, teria intuído o sofrimento por trás de sua história? Criaria fantasias compensatórias?

 

Dos registros do tempo em que esteve com os pais, sobrou alguma inscrição? O que restou dessa separação? Os não ditos configuraram a negatividade da transmissão em sua vida. Poderíamos então supor que a morte dos pais, nessas circunstâncias, pode ter sido um fato enterrado intrapsiquicamente como um morto-vivo, incorporado como uma cripta?

 

Quando Wanda mostrou uma foto de Ida bebê, contou também a história omitida. A habilidade manual artística e as semelhanças físicas eram os traços identificatórios entre ela e sua mãe que, ao serem revelados pelas fotos e pela tia, confirmavam que aquela história era sua.

 

Ida perguntara a respeito dos irmãos e essa questão lhe remeteu a outro não dito, no qual Wanda é a protagonista do segredo. Embora Ida fosse filha única, havia algo mais a ser revelado que fazia a tia tragar o vinho e aumentar o volume da música. Talvez para encobrir o que ela não aguentava pensar.

 

Foi instantâneo o desejo de Ida de visitar as tumbas de seus pais. Wanda alertou sua sobrinha que fora preservada confinada em relação à história dos judeus e à ausência de jazigos. Wanda decidiu então que iriam buscar juntas o passado.

 

Ida perguntou o que aconteceria quando encontrassem o homem envolvido com os assassinatos, e escuta: Ele vai dizer como seus pais morreram e onde estão enterrados; não é isso que você quer? Isso respondia por que sua tia nunca a procurara. Wanda sabia que não poderia seguir vivendo sem se apropriar do passado na presença de Ida, que representava a memória viva de sua família.

 

Na cidade, parecia que todos compactuavam com o silêncio. Wanda seguiu determinada e agressiva, apesar dos obstáculos. Por onde passavam, Ida ficava constrangida com os interrogatórios e a violência da tia na busca de informações. Ida nunca tirava o hábito religioso, ajoelhava-se frente à cruz e dava bênçãos. Ao padre fazia algumas perguntas para descobrir sobre os judeus, e então ele lhe perguntou se ela teria relação com isso. Ela mentiu frente a uma omissão que remetia indubitavelmente à sua história.

 

O filho do homem que seria o assassino de seus pais vai ao encontro de Ida, com o intuito de propor que ela renunciasse à propriedade da casa em troca da revelação de onde estavam enterrados seus familiares. Ida aceitou. Ele fez questão de chama-la de irmã, tratando-a como cristã, como ele.

 

Na floresta, o homem sem nome cava. Os ruídos e gestos se assemelhavam aos de quem mata com um machado. No fundo do buraco, exausto de angústia e cansaço, ele chorou. Wanda via o crânio do filho e, com seu próprio lenço o embrulhou e o abraçou. Ida perguntou ao homem por que ela também não estava ali.

 

Junto ao alívio, havia a culpa de ter sobrevivido a um genocídio. Ela sobreviveu pela falta de evidência de que pertencia àquele grupo de condenados. Ela deixou de ser uma ameaça justamente quando a ligação com seus parentes foi interrompida e a transmissão identificatória, impossibilitada. O segredo era a condição para sua sobrevivência.

 

Finalmente o homem confessa seu pecado, conta que fora ele, e não seu pai, quem os executou. Aquele que matou sua família é, ao mesmo tempo, aquele que a salvou do mesmo destino.

 

As duas foram ao encontro do jazigo da família, enterrar juntas. A cena do abrir da vala também a remeteu a outro assassinato, como se algo precisasse morrer antes de ser enterrado. Vê-se o lenço de Wanda sendo enterrado junto aos restos mortais do filho. O processo de desenterrar e enterrar em outro lugar aconteceu.

 

Após essas cenas angustiantes, Ida retornou ao convento para enfim fazer seus votos, mas recuou afirmando não estar pronta.

 

Suas vidas foram alteradas. Com o retorno de Ida, Wanda abriu a cripta e se lançou. Pôs-se em contato com a saudade, o remorso, a raiva. Ela deixara seu filho com a irmã, que não pôde protegê-lo. A impossibilidade de estar com ele antecede a sua morte. O sobrevivente não foi ele, e sim a filha da irmã. Teria esse fato levado Wanda a ter certo ódio de Ida?  Ela também havia deixado a filha da irmã com as irmãs religiosas.

 

Após a partida de Ida, de início Wanda resgatara seus vícios e excessos. Homens, bebida e cigarros pareciam não ser suficientes. Em uma manhã fria, Wanda comeu pão com manteiga e açúcar, colocou um disco, tomou um banho de banheira, trocou de casaco, apagou o cigarro e de repente saiu pela janela, como se fosse buscar algo lá embaixo e já fosse voltar. A música continuou, a Sinfonia 41 de Mozart, mas Wanda se suicidou.

 

Wanda tinha um túmulo em homenagem ao Partido Comunista. A carreira e o partido lhe trouxeram um invólucro, um contorno, um reconhecimento, um lugar.

 

Ida voltou então para a casa da tia morta e tentou experimentar sua vida. Escutou o mesmo disco, limpou a mesa, recolheu as garrafas, dormiu em sua cama. Vestiu suas roupas, seu sapato de salto, fumou, bebeu, se enrolou na cortina e rodopiou até cair. Caiu para dentro e não pra fora. Sobreviveu. Saiu com o rapaz músico, dançou, beijou, transou. Ele propôs a ela irem à praia. Perguntou a ela se já estivera em alguma praia antes, e sua resposta foi: Eu nunca estive em lugar nenhum.

 

O desenlace sugere que Ida não passará adiante essa transmissão, ao menos transgeracionalmente, pois escolheu o celibato e sua geração, com ela, morreria.  Isso não significa que não se deixou tocar pelo que era antes intocável. Além disso, ninguém poderia afirmar ser impossível que seus pais, tendo vivido num tempo em que ser judeu era uma condenação, tivessem desejado que ela escapasse desse destino.

 

Amanheceu, Ida estava na casa da tia com o rapaz. E ela não se reconhecia naquela vida. A proposta dele não se enlaçava na sua fantasia. Vestiu-se de noviça, pegou a mala e saiu. Na estrada em direção ao convento, o plano de câmera é, curiosamente, a contramão, e sua música não é Mozart, é Bach, o prelúdio Ich ruf ‘ zu dir, Herr Jesu Christ  (Eu chamo a Ti, Senhor Jesus Cristo).


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