EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
55
Tempo, Narração e Política
ano XXVIII - Dezembro de 2015
151 páginas
capa: Marcelo Cipis
  
 

voltar
voltar ao sumário

Autor(es)
Ana Claudia Patitucci

Bela M. Sister
é psicanalista, integrante do grupo de Entrevistas da revista Percurso, coautora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Escuta, 1996).

Cristina Parada Franch Franch

Danielle Melanie Breyton
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo O feminino no imaginário cultural contemporâneo, co-organizadora do livro Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (Escuta).

Deborah Joan de Cardoso

voltar ao sumário
 ENTREVISTA

René Kaës - Um porta-grupos para a psicanálise

René Kaës - A "groups-case" for Psychoanalysis
Ana Claudia Patitucci
Bela M. Sister
Cristina Parada Franch Franch
Danielle Melanie Breyton
Deborah Joan de Cardoso

A escrita exigente e por vezes profundamente teórica de René Kaës pode provocar no leitor um movimento de resistência; entretanto, a percepção de que na raiz dessa exigência encontra-se a persistência generosa de quem busca a formulação de uma nova concepção do aparelho psíquico e do campo da intersubjetividade nos leva a um acompanhamento curioso daquilo que amplia a teoria psicanalítica.

 

Seguindo a ideia freudiana de que a pesquisa é uma resposta às exigências da vida, Kaës, primogênito de uma fratria numerosa, inicia, em 1955, seus estudos de psicologia na Universidade de Estrasburgo. Buscava o entendimento de que eram feitos a rivalidade, o amor e a inveja no Complexo Fraterno, do que viviam os pais com a chegada dos novos filhos e de como os grupos de pertinência na vida podiam dar novas formas às experiências infantis.

 

No contexto psicanalítico dos anos 1960, Kaës mergulha no estudo da psicanálise e em sua análise pessoal. Faz uma descoberta perturbadora: encontra uma separação radical entre o campo intrapsíquico e o campo intersubjetivo no pensamento teórico psicanalítico da época. A pesquisa sobre grupos estava, com frequência, excluída ou era inaceitável nas instituições psicanalíticas.

 

Essa descoberta o move, em aliança com Didier Anzieu (que já vinha estudando as formações grupais), a começar sua produção metapsicológica do campo da inter e da plurisubjetividade que hoje ganha relevância na discussão psicanalítica, especialmente para a compreensão das psicopatologias contemporâneas.

 

Na entrevista, o leitor poderá acompanhar a densidade de sua produção teórica que passa pela conceitualização de um aparelho psíquico grupal, da transmissão psíquica entre as gerações, da polifonia dos sonhos, da realidade e do sofrimento psíquico nas instituições, entre outros. A problematização sobre o mal-estar contemporâneo e seus reflexos na constituição das membranas individuais, grupais e institucionais será também matéria de conversa.

 

Foi no decorrer dessa conversa que nos vimos tomados de assalto pelos atentados em Paris (nov. 2015). Assim, formulamos uma última questão a Kaës em que o leitor poderá encontrar uma resposta contundente que trata dos efeitos da violência mortífera naqueles que são atingidos coletivamente pelo terrorismo. Tema de seu último livro sobre as ideologias radicais.

 

Encontramos em René Kaës um interlocutor generoso que, mesmo na comunicação via e-mail, abraçou nossas questões calorosamente.

 

percurso Gostaríamos que o senhor nos contasse sobre o seu percurso intelectual e como se direcionou para a psicanálise.

rené kaës Comecei meus estudos de psicologia na Universidade de Estrasburgo em 1955. Meu professor era Didier Anzieu, que ensinava psicologia geral, psicopatologia e psicologia social, principalmente a de grupos de orientação lewiniana e o psicodrama moreniano. Mas, nessa época, ele começava a esboçar o que poderia ser uma abordagem psicanalítica do grupo e do psicodrama. Essa abertura me interessava particularmente. Durante esse período, eu também acompanhava os cursos de filosofia de Paul Ricoeur e os de um sociólogo que se interessava de perto pelas utopias, Georges Duveau. Mais tarde, me inscrevi numa licenciatura em sociologia. Devo muito a essa formação multidisciplinar. Posteriormente, obtive um diploma de estudos superiores em psicologia e um diploma de estudos superiores especializados em psicopatologia.

Comecei minha carreira universitária na Universidade de Estrasburgo, onde, em 1958, fui contratado como assistente no Institut National du Travail, que acabara de ser fundado pelo professor Marcel David. Esse Instituto, que fazia parte da Faculdade de Direito e Ciências Econômicas, foi criado para assegurar a formação universitária para os cargos superiores nos sindicatos de operários. Tinha também uma missão de pesquisa. Eu dava aulas de psicologia social e era encarregado de uma pesquisa, a longo prazo, sobre as representações da cultura, da escola e do lazer junto aos operários franceses. A partir desses trabalhos, defendi minha tese em psicologia sob a orientação conjunta de Serge Moscovici (que na época trabalhava sobre as representações sociais) e Didier Anzieu (que me introduziu na psicologia grupal, e através de quem eu adquiria a exigência de um debate entre a abordagem psicossociológica do grupo e as hipóteses nascentes sobre a psicanálise grupal). Nessa época, retornei à psicologia e à psicopatologia clínica. Saí do Institut du Travail, em 1963, para ocupar um cargo na psicologia na Universidade de Aix en Provence e fundar ali o Laboratório de Psicologia e Psicopatologia Clínicas.

Comecei então uma análise, por razões evidentemente pessoais, mas também intelectuais. Reunia-me com Didier Anzieu, que acabara de fundar o Cercle d'Etudes Françaises pour la Formation et la Recherche: Approche Psychanalytique du Groupe, du Psychodrame, de l'Institution (­ceffrap). Desenvolvi com Anzieu, em 1965 e 1966, um dispositivo de trabalho psicanalítico grupal e comecei a organizar minhas pesquisas sobre o que viria a ser o modelo teórico-prático do aparelho psíquico grupal.

Redigi minha tese de doutorado em Letras e Ciências Humanas sobre esse modelo, que incluía estudos sobre as representações do grupo como objeto de investimentos pulsionais e de representações inconscientes (eu testava uma ideia de J.B. Pontalis), a noção de grupos internos, o conceito de aparelhagem psíquica entre os organizadores inconscientes do grupo nos integrantes de um grupo (os grupos internos) e a construção de realidade psíquica própria ao grupo, os conceitos de posições ideológica, utópica e mitopoiética. O que se tornaria a descoberta da existência de três espaços psíquicos nos conjuntos plurissubjetivos data dessa época, ou seja, do final dos anos 1960.

Saí da Universidade de Provence e fui para a de Lyon em 1981, onde prossegui minhas pesquisas, orientando-as na direção dos processos de transmissão da vida e da morte psíquica, a grupalidade psíquica, as funções fóricas (porta-palavra[1], porta-ideal, porta-sintoma), a polifonia do sonho e dos espaços oníricos comuns e compartilhados, o trabalho psíquico da intersubjetividade, os processos e cadeias associativas grupais, as alianças inconscientes, a realidade psíquica e o sofrimento psíquico nas instituições etc.

 

percurso Em relação à psicanálise de grupo: o que mobilizou seu interesse por esse campo específico? Como foi o seu processo de elaboração de um pensamento clínico e teórico? Quais foram e quem são seus principais interlocutores?

kaës Penso que meu interesse por esse campo específico está enraizado em diversas questões. Freud diz que a pesquisa é uma resposta às exigências da vida. Ele pensava na curiosidade sexual das crianças. Fomos todos um dia criança, e é preciso buscar na infância o estímulo inicial. O fato de ser o primogênito de uma fratria numerosa certamente influenciou no meu desejo de saber do que são feitas a rivalidade, a inveja e o amor no complexo fraterno. A mudança de posição do filho único, quando irmãos e irmãs vêm perturbar sua posição. O que vivenciam os pais concebendo filhos, os cuidados que lhes oferecem e os que recebem deles, os conflitos e as alianças que se estabelecem e deixam de se estabelecer. Todas essas questões estavam presentes, mas não formuladas.

Muito cedo, desde a adolescência, fiz parte de grupos, depois de associações, saindo do meu grupo familiar. E deslocava para esses grupos problemas, dos quais alguns certamente estavam ligados à minha posição no grupo familiar. Eu também podia viver experiências novas nesses grupos, que não se pode viver na família. Fiz parte de movimentos de juventude muito livres: jovem adulto, participei de movimentos de educação popular e mais tarde me engajei de forma razoavelmente importante no movimento estudantil, no momento da guerra da Argélia (1953-1962).

Em seguida, aconteceu o encontro com a psicologia social de grupos, o início das questões que me suscitavam as instituições e os sistemas de pensamento que as sustentam: ideologias, utopias, mitos. Houve, sobretudo, meu encontro com Didier Anzieu e o que minha análise me trouxe. Minha análise pessoal e, mais tarde, minha prática da análise e do trabalho psicanalítico com os grupos me conduziram à descoberta perturbadora de que esses dois campos, nos quais se manifesta o inconsciente, estavam radicalmente separados no pensamento teórico da psicanálise, excluídos de seu campo, com frequência, e inaceitáveis nas instituições psicanalíticas.

No que diz respeito ao grupo, tal como ele era pensado e praticado, desde os primeiros usos de uma referência psicanalítica, Pichon Rivière, Foulkes, Bion e, nessa época dos anos 1960-70, com Corrao e Anzieu, a concepção do grupo como entidade global ("o grupo como totalidade é um sistema que pensa que, experimenta que...") não me satisfazia. Eu compreendia bem que essa restrição do campo de análise permitia centrar a atenção sobre as formações e os processos da realidade psíquica inconsciente própria ao grupo: fora uma passagem necessária, um passo fundador, mas eu não aceitava que é preciso fazer desaparecer do campo de análise o sujeito singular no grupo, os laços que ele estabelece com os outros sujeitos e com o grupo como conjunto. Eis o que estimulava meu interesse pela pesquisa.

O trabalho de elaboração clínica e de construção dos conceitos é, em parte, um trabalho solitário. Mas ele só se produz nas trocas com um grupo e com um interlocutor privilegiado. Realizei muitas trocas com Anzieu e com meus colegas do ceffrap. Também realizei, conjuntamente e durante muitos anos, o trabalho como psicanalista nas análises individuais e o trabalho com a clínica psicanalítica de grupos.

Durante quase cinquenta anos, o grupo do ceffrap foi meu "elaboratório", isto é, o dispositivo de elaboração permanente da nossa implicação pessoal e coletiva nos grupos dos quais éramos encarregados. Nós sempre discutíamos a partir de nossas experiências clínicas: das dimensões transferenciais-contratransferenciais e intertransferenciais, nas quais surgiam os processos psíquicos, problemas de metodologia, de enquadre e metaenquadre, processos associativos, conceitos que utilizávamos e também aqueles que eram propostos por pessoas de fora de nosso grupo. Falávamos segundo o modelo da associação livre, particularmente quando falávamos dos sonhos que nos ocorriam durante um grupo ou, então, antes e depois de uma de nossas reuniões. Evidentemente, também tínhamos discussões organizadas, frequentemente preparadas a partir de nossas anotações. Líamos os artigos que desejávamos submeter às revistas, certos temas eram aprofundados em jornadas de estudos que organizávamos anualmente e às quais eram convidados colegas de outras orientações e outras disciplinas. Nós propúnhamos às revistas conjuntos de textos organizados. No início dos anos 1970, Anzieu e eu fundamos duas coleções na editora Dunod, uma dedicada a obras individuais (Psychismes, dirigida por Anzieu) e outra a obras coletivas (Inconscient et Culture, dirigida por mim e por Anzieu).

Didier Anzieu e o grupo do ceffrap foram meus principais interlocutores na pesquisa psicanalítica sobre os grupos, essencialmente e, sobretudo, no início da minha formação e das minhas atividades de pesquisa. Vários analistas que eram membros do ceffrap, companheiros de equipe com os quais eu efetuava trocas e que foram importantes nas minhas pesquisas: J.-B. Pontalis, A. Missenard, A. Bejarano, P. Dubuisson, B. Gibello, G. Testemale, J.-J. Baranes, C. Desvignes. Também encontrei, durante meu percurso, outros interlocutores de fora do CEFFRAP, em instituições psicanalíticas e na universidade. Na França, J.-C. Rouchy, O. Avron, M. Enriquez, N. Zaltzman, J. Guillaumin, R. Roussillon, C. Vacheret, B. Duez; em outros países, M. Bernard, J. Puget, C. Neri.

 

percurso O senhor poderia nos contar um pouco mais sobre o ceffrap e sobre a importância dele em sua trajetória? Ainda no quadro do ceffrap, abordagem psicanalítica de grupo, do psicodrama, da instituição, como se articulam esses diferentes campos?

kaës O ceffrap foi fundado, em 1962, por Didier Anzieu e alguns colegas em sua maioria psicanalistas, além de psicólogos e psicossociólogos. Ele originou-se da separação de outra associação, de orientação psicossociológica e essencialmente centrada no método do Training Group, usado por Kurt Lewin no National Training Laboratories, nos Estados Unidos.

O projeto de Anzieu era conceber um método psicanalítico para conhecer através da experiência, compreender e colocar em prática as bases de um trabalho psicanalítico segundo um dispositivo grupal. Durante alguns anos, os dispositivos experimentados foram uma espécie de estrutura composta. Uma formação de compromisso, sem dúvida, entre as técnicas herdadas da dinâmica de grupos e das referências à metapsicologia, oriunda da análise e dos textos de psicanálise aplicada. Em 1965-66, depois de demarcar uma linha de ruptura epistemológica entre a abordagem psicossociológica e o que seria uma abordagem psicanalítica, Anzieu me convidou para pensar e realizar com ele dois grupos. Estes seriam organizados com as regras do método psicanalítico, e seus processos e formações seriam analisados e interpretados como "fenômenos de grupo", o grupo sendo considerado como uma totalidade. Dentre os resultados dessas primeiras pesquisas, pode-se citar o conceito de ilusão grupal (Anzieu), a concepção dos quatro objetos da transferência nos grupos (A. Bejarano), os conceitos de organizador psíquico e de grupo interno e o modelo de aparelho psíquico grupal (R. Kaës).

O ceffrap foi, e continuou sendo durante os cinquenta anos de sua existência, um pequeno grupo com uma dúzia de membros, cuja renovação acontecia quando um de nós saía da instituição. Nós éramos, de certa maneira, um grupo que trabalhava sobre os grupos, permanecendo à escuta de seu próprio funcionamento grupal.

Anzieu enunciou o princípio desse funcionamento, dizendo que "somente um grupo pode analisar um grupo". A fórmula significava que, para escutar os processos e formações psíquicas de um grupo, era preciso que os analistas, quer trabalhando sozinhos, em dupla ou em vários, como era o caso com os grandes grupos, estivessem sempre imersos num grupo para trabalhar de maneira permanente seu próprio espaço psíquico grupal. Era uma dupla ideia: por um lado, o funcionamento do grupo ceffrap produzia efeitos nos grupos dos quais éramos responsáveis, efeitos de transferência e de resistências; por outro lado, produziam-se rastros do material psíquico, depositado em cada um dos analistas, nos grupos conduzidos por eles, e esse material entrava em ressonância com nosso próprio grupo. O que era protegido, alojado, depositado em nosso próprio grupo abria vias para os afetos e representações utilizáveis na interpretação nos grupos dos quais éramos os analistas.

Eu descobria assim, concomitantemente no CEFFRAP e nos grupos que conduzíamos, que num grupo coexistem e interferem vários espaços de realidade psíquica. O grupo é o lugar da conjunção de três espaços da realidade psíquica: o do sujeito singular, na medida em que é inicialmente constituído como sujeito do grupo e membro de um grupo, o do grupo enquanto totalidade, formando uma entidade específica, e o dos laços intersubjetivos que nele se formam. Na realidade cotidiana, esses três espaços estão intrincados e frequentemente sua existência e suas relações escapam à nossa consciência. É apenas quando se coloca em prática um dispositivo de trabalho psicanalítico grupal apropriado que se pode distingui-los, desatá-los, analisá-los e conhecê-los em sua consistência e em suas interferências.

O psicodrama foi, desde o início, um método de trabalho psicanalítico com os grupos. Ele foi utilizado, inicialmente, em sessões centradas no psicodrama, alternadas com sessões nas quais a palavra era o principal meio de acesso às representações recalcadas e ao tornar-se consciente. Nos seminários intensivos de vários dias, tínhamos três tipos de grupos: os pequenos grupos de conversa alternados com os grupos psicodramáticos, e os grandes grupos. Nestes últimos, todos os participantes (60-70) se reuniam numa grande sessão com o conjunto dos psicanalistas que coordenavam os pequenos grupos. O psicodrama era utilizado como dispositivo de trabalho: sua característica essencial é possibilitar uma figuração dinâmica aos objetos de angústias arcaicas que paralisam o pensamento numa situação onde a perda de limites e de conteúdos do pensamento é recorrente. Além disso, a figuração através do jogo implica o corpo, e a dramatização mobiliza o trabalho do pré-consciente. Dessa forma, é possível "fazer" sem se confrontar a um acting, os distúrbios da simbolização são cuidados através da sutileza do jogo e da palavra, e por suas associações.

Enfim, uma vez que o psicodrama de grupo requer que o grupo seja conduzido por dois psicanalistas psicodramatistas, um acesso à análise da intertransferência é indispensável e possível.

Como já disse, nosso próprio grupo se inscreve permanentemente na instituição ceffrap. Nós somos constantemente reconduzidos à nossa posição pessoal no grupo ceffrap e na instituição ceffrap, isto é, no campo do metaenquadre institucional, às funções de responsáveis pelo processo psicanalítico nos grupos que conduzimos. A imersão nesse tipo de análise levou-nos a propor intervenções em instituições em crise. E nestas, ou em componentes destas, num serviço, numa equipe cuidadora, podemos, em certas condições, utilizar o psicodrama.

 

percurso Ao longo de sua trajetória com grupos, como o senhor vê a aceitação ou a objeção desse trabalho nos meios psicanalíticos?

kaës Eu preciso referir essa questão a um problema mais amplo: o da extensão do campo das práticas, das acomodações do dispositivo psicanalítico e dos modelos de inteligibilidade dos processos e das formações psíquicas. A teoria psicanalítica e a metapsicologia do aparelho psíquico os descrevem. Teoria e metapsicologia foram inicialmente fundamentadas na prática da cura de adultos neuróticos, oriundos da burguesia da "Mitteleuropa" (Europa Central).

No livro L'extension de la psychanalyse. Pour une métapsychologie de troisième tipe (2015), escrevi que é preciso considerar a extensão das práticas da psicanálise como uma constante vital e, portanto, conflitante de sua história. A extensão dos campos práticos da psicanálise tem como consequência a transformação de seus objetos teóricos e dos modelos de inteligibilidade que ela constrói; ele também incide sobre a formação dos psicanalistas.

A extensão da psicanálise é condição de seu desenvolvimento, mas ela cria problemas, cria debates, por vezes polêmicos, pois questiona o saber estabelecido na base de seu método inaugural. Essas transformações podem desencadear angústias catastróficas quando tocam o núcleo fundador de sua identidade. Entretanto, não existe nada tão estranho nisso, todos os saberes constituídos estão expostos a essas transformações e à extensão de sua prática.

A extensão sobre a qual eu gostaria de lhes falar é de fato inédita: trata-se de uma extensão fora da cura individual. Ela tem por base dispositivos que reúnem diversos sujeitos, e um ou diversos psicanalistas, numa experiência do Inconsciente inacessível de outra maneira e num objetivo de trabalho psicanalítico do tipo terapêutico ou de formação. Esses dispositivos aplicam-se em grupos de não familiares, em casais e em famílias, ou ainda em equipes de trabalho no seio das instituições.

Concebemos que as implicações e consequências desses dispositivos afetam o pedestal epistemológico da psicanálise, seu método e sua metapsicologia. A extensão a que me refiro se distingue do dispositivo fundador, mas mantém os princípios essenciais de seu método, os questiona e os recompõe para ajustá-los a esses novos dispositivos. Portanto, estamos às voltas com um problema de envergadura.

Compreenderemos que movimentos violentos contra esse tipo de trabalho psicanalítico, portador de tantas questões, tenham produzido recusas sem debate e rejeições peremptórias. E não apenas às novas proposições, mas também às pessoas que os sustentavam. Parece-me que, a despeito das vias abertas por Freud sobre a existência de uma psique de grupo, as resistências epistemológicas apoiaram-se em resistências institucionais. O trabalho de análise de grupos e instituições de fato desvela os fundamentos inconscientes dos grupos e das instituições. A instituição psicanalítica não é uma exceção aos riscos desse desvelamento e às alianças defensivas que poupam a atualização de conflitos inaugurais do movimento psicanalítico: a identificação e a adesão a um chefe carismático, a exclusão dos rivais e dos desviantes, a submissão ao Ideal fetichizado e constrangedor, ao pensamento transformado em visão de mundo, às derivações sectárias, aos desvios incestuosos na formação e nos processos de habilitação, a constituição de inimigos exteriores para reforçar a coesão interna e servir às defesas através da clivagem etc.

Nessas condições, o establishment reage produzindo sólidos mecanismos de defesa. Mas também existem aberturas que, uma vez produzidas, desenvolvem uma profunda atenção ao que podem aportar a prática e a teoria psicanalíticas do grupo na escuta do paciente na cura, na análise das alianças inconscientes na cura, nas supervisões e na instituição psicanalítica, no trabalho dos seminários e grupos de estudo. Algumas delas integram a experiência da participação num grupo no percurso da formação de psicanalistas. Outras organizam espaços de pesquisa sobre o grupo, a família e o casal na sua instituição. Uma mudança que abre e aprofunda o potencial de criação psicanalítica está em curso.

 

percurso No livro As teorias psicanalíticas do grupo o senhor se refere à "invenção psicanalítica do grupo" e considera que ela testemunhou grandes rupturas da modernidade. Quais foram essas rupturas e o que caracterizou essa invenção?

kaës Eu proponho considerar dois níveis de análise para tratar essa questão. O primeiro diz respeito às grandes rupturas constitutivas da modernidade; o segundo é mais especificamente centrado na emergência da invenção psicanalítica do grupo, neste ou naquele rumo cultural do mundo.

No que diz respeito ao primeiro ponto, penso que é preciso recolocar o interesse pelo grupo e pela instituição no contexto das grandes transformações que sobrevieram nas sociedades modernas, entre as duas grandes guerras mundiais. As sociedades foram então confrontadas a revoluções técnicas de grande envergadura, às contínuas migrações do campo para as cidades, ao aumento da urbanização e da industrialização. O efeito disso foram transformações, por vezes brutais, nos metaenquadres da vida social e da vida psíquica. Elas se traduzem por um deslocamento dos laços intersubjetivos, familiares e sociais, desorientações em relação ao enquadre da vida cotidiana. É nesse contexto, de grandes transtornos da modernidade, que começa a invenção psicanalítica do grupo. As circunstâncias são diversas, segundo as sociedades e as culturas.

Na América Latina, por exemplo, a iniciativa de Pichon-Rivière nasce na urgência de renovar as modalidades de cuidado em hospitais psiquiátricos ultrapassados, inadaptados à sua tarefa. Uma característica da modernidade será começar a conceber a instituição como portadora de uma potência terapêutica e a considerar o doente mental, e todo ser sofredor de transtornos psíquicos, como pessoas que precisam ser cuidados pela sociedade. Essa corrente encontra no pensamento de etnólogos, filósofos e sociólogos, mas também de psiquiatras e psicanalistas, pontos de apoios para restituir à instituição hospitalar sua função cuidadora, principalmente através dos laços entre os cuidadores e entre os cuidadores e os pacientes. Esses esboços só tomarão forma, em sua maioria, após a segunda guerra mundial.

Mas, por que o grupo nessas condições? E, mais precisamente, por que o grupo na instituição psiquiátrica?

Dentre as novas concepções do grupo e da instituição, várias delas surgiram nos Estados Unidos - jovens psicossociólogos, dos quais alguns emigraram da Alemanha nazista para a América do Norte e eram formados na Escola de Frankfurt, onde o pensamento estrutural tornou-se uma referência dominante. As pesquisas de Kurt Lewin influenciaram o pensamento de Pichon-Rivière, assim como a teoria sistêmica e as pesquisas de antropologia cultural. Bleger formou-se no pensamento do materialismo dialético.

A Segunda Guerra Mundial e os grandes sismos culturais que a precederam e que ela estenderá conduziram psiquiatras e alguns psicanalistas a tratar em urgência os soldados e os oficiais traumatizados de guerra. É a partir desse contexto que Bion começa em Londres suas "pesquisas sobre os pequenos grupos". S.H. Foulkes chegará, através de outro movimento, a conclusões convergentes sobre esse ponto: o dispositivo grupal permite tratar sofrimentos oriundos de transtornos psicóticos, onde o campo transferencial-contratransferencial, no dispositivo da cura, está saturado, dada a violência dos afetos e a intensidade das cargas econômicas (arcaicas) da transferência sobre o analista. O grupo será pensado como uma totalidade e como o lugar onde se desenvolve e se manifesta uma realidade psíquica inconsciente específica.

Depois da Segunda Guerra Mundial, a prática grupal instaurada por psicanalistas terá outra fonte de determinação: na França, a implementação do Seguro Social conduzirá os psicanalistas a permitirem o acesso ao cuidado ao máximo de pessoas reunidas num dispositivo de grupo, no intuito de realizar várias psicoterapias individuais.

Observa-se, a partir desses exemplos, que o contexto social e cultural da invenção psicanalítica grupal infletiu a orientação metodológica e os modelos teóricos grupais. As iniciativas de E. Pichon-Rivière e de J. Bleger, na Argentina, se inscrevem no contexto de uma sociedade fundamentalmente constituída por imigrantes europeus, para os quais os laços grupais são particularmente importantes por serem espaços de encontro, de identificação e de manutenção das singularidades culturais. E as tentativas de constituir uma nação são particularmente importantes nesse país, assim como em outros na América Latina. Os trabalhos de Pichon-Rivière e Bleger encontram rapidamente um lugar na jovem Sociedade de Psicanálise (A.P.A.) que eles ajudam a criar, uma Sociedade aberta às extensões do campo de aplicação da psicanálise. Existirão evidentemente controvérsias e debates, mas a iniciativa deles não será fundamentalmente rejeitada.

Algo diferente aconteceu na Europa. Melanie Klein intimou Bion a abandonar sua prática de grupo, se quisesse tornar-se psicanalista. Na França, o contexto de cisões que sobreveio nas sociedades psicanalíticas na virada dos anos será também o momento da emergência de uma abordagem psicanalítica grupal. Algumas sociedades se oporão frontalmente a essa abordagem, e a maior parte delas a ignorará, ainda que estejam vivendo uma experiência de crise e de cisão em suas instituições, e que os "efeitos grupais" se manifestem com violência e paixão. Dentre os psicanalistas implicados diretamente nessas cisões, vários deles fundarão associações para conhecer, na prática, os processos psíquicos que se formam eletivamente nos grupos, descobrindo assim o que Freud nomeava por "psique de grupo". É nesse contexto que Anzieu fundará o CEFFRAP, em 1962.

 

percurso No livro A palavra e o vínculo, o senhor desenvolve o conceito de cadeia associativa grupal. Qual a importância desse conceito na construção de um dispositivo clínico psicanalítico de grupo?

kaës Eu propus o conceito de aparelho psíquico grupal para dar conta do processo de aparelhagem dos espaços psíquicos de sujeitos que constituem um grupo e que forma, por esse meio, os três espaços que interferem num grupo.

O processo de aparelhagem psíquica grupal tem por efeito a criação de continente e conteúdo psíquicos originais, apoiados sobre certas estruturas organizadoras da psique individual, estruturas que eu denominei grupos internos: esses grupos internos (fantasmas originários, imagem do corpo, imagos, rede de identificações, complexos edípicos e fraternos, estruturas das instâncias) cumprem uma função de organizadores da aparelhagem. Desse ponto de vista, o aparelho psíquico é, primeiro, um aparelho construído para produzir, conter, ligar, transformar e tratar a realidade própria do grupo; segundo, um aparelho de formação, de transformação e de ligação da realidade psíquica nos sujeitos que constituem o grupo.

Esse modelo foi generalizado e ganhou especificidade ao ser aplicado a outras configurações de laço: casal, família, equipe de trabalho, instituição.

Pode-se considerar o interesse clínico desse conceito: ele permite observar como a realidade psíquica se constrói conjuntamente no grupo, em cada sujeito no grupo e nos laços intersubjetivos que se estabelecem entre eles. Por exemplo, o grupo se organiza de modo que os espaços psíquicos coincidam: os sujeitos não diferenciam seu próprio espaço e o do grupo. A aparelhagem se estabelece de maneira metonímica ou isomórfica: tudo o que é vivido no grupo é vivido como idêntico ao que sobrevém no espaço interno, os dois espaços coincidem, um mesmo envelope os contém, como em grupos psicóticos ou funcionando de um modo psicótico. Um outro modo de aparelhagem, que chamei de homomórfico, se organiza sobre a diferenciação e a distinção entre os espaços da realidade psíquica. A partir daí, pode-se interrogar o tipo de identificação ou de aliança inconsciente predominante em cada um desses dois modos de aparelhagem. Clinicamente, estaremos atentos à função de organizador dos grupos internos. Efetuei uma análise clínica aprofundada desse funcionamento em uma obra[2].

O acesso a esse funcionamento da realidade psíquica inconsciente se faz no campo transferencial-contratransferencial, na escuta dos movimentos que aí se produzem e na escuta da dupla cadeia associativa.

Proponho distinguir o processo associativo e a cadeia associativa correspondente de cada sujeito no grupo, o processo associativo que se desenvolve no grupo e a cadeia associativa grupal resultante. Os dois processos e os dois tipos de cadeia são interdependentes e interferentes, cada um tem sua especificidade. E é através delas, e na transferência, que advêm os significantes que emanam do inconsciente e fabricam a consistência psíquica de cada espaço. Dou muita importância, e meu ponto de vista difere do de Pichon-Rivière (porta-voz), à função de porta-voz (porte-parole), insistindo sobre o que conduz o sujeito a ocupar essa função, assim como sua função na tópica, na economia e na dinâmica do grupo.

 

percurso Levando em consideração as psicopatologias que ganham predominância no mundo contemporâneo, ou seja, as perturbações da continuidade e das fronteiras do si mesmo, que carecem das funções intermediárias, como o senhor tem observado o uso que esses pacientes fazem dos grupos terapêuticos? Essas patologias requerem a criação de novos dispositivos específicos para seu atendimento?

kaës Para responder à questão de vocês, falarei primeiramente sobre os grupos conduzidos por psicanalistas formados no trabalho de análise e de psicoterapia de grupo. Para cumprir esse trabalho, é preciso adquirir uma representação dos processos e das formações psíquicas que são mobilizados no dispositivo grupal. Trata-se de uma representação muito complexa, pois o grupo nos confronta a pelo menos três espaços de realidade psíquica: o do grupo enquanto conjunto, o dos laços intersubjetivos no grupo e o do sujeito no grupo. Não posso desenvolver mais do que isso aqui, sou obrigado a me dirigir ao que me parece essencial.

Os psicanalistas que trabalham com um dispositivo de grupo colocam em funcionamento os principais elementos do método psicanalítico: eles definem um setting do qual são os responsáveis ao enunciarem a regra fundamental. Assim eles estabelecem uma função de enquadre, um campo transferencial-contratransferencial e processos associativos que se organizarão em uma dupla cadeia associativa, a de cada sujeito no grupo e a do grupo enquanto conjunto.

A tripla atenção dada à psique do grupo, aos laços entre os membros do grupo, a cada sujeito no grupo, e a partir daí às interferências e às ressonâncias entre esses três espaços permite o acesso ao conhecimento das formas, dos conteúdos e dos processos da realidade psíquica inconsciente que se desenvolvem nos grupos. Pode-se então pensar que, desse ponto de vista, a experiência psíquica do grupo, no grupo, é essencialmente os movimentos das pulsões, dos desejos, dos afetos, dos fantasmas e dos mecanismos de defesa que emergem no contato do inconsciente de outro e de mais do que um outro. É sobre essa base que, do meu lado, concebi a eficácia do modelo de aparelho psíquico grupal, a importância das alianças inconscientes, assim como das funções fóricas, da grupalidade psíquica etc.

Retomando a questão de vocês, as psicopatologias que predominam no mundo contemporâneo, as perturbações da continuidade e das fronteiras de Si onde as funções intermediárias são falhas, eu as concebo a partir do que emerge na clínica dos conjuntos plurisubjetivos, nos grupos e nas instituições, essa é a base principal da minha experiência com a cura individual.

São psicopatologias dos limites e vocês têm razão ao falarem em fronteiras entre os espaços de dentro - de fora. Essas patologias repousam sobre falhas nos envelopes individuais e grupais, segundo o conceito proposto por Didier Anzieu. São patologias que se manifestam no fracasso das alianças inconscientes estruturantes: as sintonizações primárias, o contrato narcísico, o pacto com a função paterna e a aliança dos irmãos, o pacto de renúncia mútua da realização dos objetivos pulsionais destrutivos, portanto a capacidade de simbolizar e de integrar o trabalho de cultura (Freud: die Kulturarbeit). Essas patologias dependem em parte de sua dupla origem, individuais, idiossincrática e social. Por exemplo, na falta ou ausência de garantidores das alianças estruturantes, ou na evanescência de "responsáveis" pelas necessidades e questões da criança, do adolescente e do adulto em relação às questões relevantes de seu desenvolvimento psíquico, à sua necessidade de saber e à sua segurança de base.

Penso que essas patologias suscitaram a criação de novos dispositivos de tratamento. Foi nesse contexto que nasceram as psicoterapias dos conjuntos plurissubjetivos. Algumas são organizadas em torno da palavra e somente dela; outras recorreram ao psicodrama psicanalítico; outras, a dispositivos de mediação.

Os pacientes que se beneficiam de um trabalho psíquico num dispositivo de grupo terapêutico experimentam um enquadre assegurador para abordar, com outros, o que faltou ou o que se organizou de uma tal maneira que um intenso sofrimento psíquico os impediu de estabelecer laços com outrem, de amar, trabalhar e jogar. Eles estão num dispositivo em que experimentam a formação e o uso de seus sintomas e podem estabelecer novas ligações entre seu mundo interno e o dos outros, do grupo, do casal, da família. Eles se "reaparelham" sobre novas bases. Eles encontram representações e afetos aos quais não tinham acesso, que lhes chegam pelas transferências e através da cadeia associativa grupal. Esse acesso sustenta seu trabalho de pensamento.

 

percurso O senhor confere grande importância à transmissão psíquica entre as gerações. Em algumas famílias, esta seria responsável por lacunas representacionais importantes em seus membros. Como o senhor observa isso na clínica? De que forma as terapias de família poderiam transformar essas lacunas?

kaës Sim, pois, na evolução das pesquisas psicanalíticas sobre o geracional, as transformações dos dispositivos da psicanálise tiveram um papel considerável, devido às novas patologias das psicoses, aos estados limite, aos transtornos narcísicos, à simbolização primária. Novos conceitos teóricos precisaram ser construídos para dar conta e, para além desses conceitos, se perfilam questões mais amplas.

Penso que o desenvolvimento das pesquisas sobre a transmissão psíquica a partir de novos dispositivos psicanalíticos implica um novo modelo de inteligibilidade da formação dos aparelhos psíquicos e de sua articulação entre os sujeitos do inconsciente. Essas pesquisas criticam as concepções estritamente intradeterministas das formações do aparelho psíquico e as representações solipsistas do sujeito. Elas nos encorajam, ao contrário, a integrar no campo da psicanálise todas as decorrências teórico-metodológicas que derivam de se levar em conta a exigência de trabalho psíquico que impõe à psique sua inscrição no geracional e na intersubjetividade.

Em minhas pesquisas, trabalhei principalmente sobre dois processos da transmissão da vida psíquica entre gerações: as identificações e as alianças inconscientes.

A identificação ao objeto do desejo e ao fantasma inconsciente do outro é uma passagem obrigatória para ocupar um lugar nos laços entre gerações. As identificações são matéria-prima do laço. Elas se organizam numa grande diversidade de formas. Maria Torok e Nicolas Abraham evidenciaram a necessidade de metabolizar a perda para que o processo de introjeção se conclua: quando esse processo malogra, a desmetaforização e a objetivação petrificam o objeto muito perto da coisa corporal e impedem o reconhecimento da experiência subjetiva da perda. A introjeção é substituída pelo mecanismo alucinatório da incorporação que "realiza" no corpo ou petrifica na subjetividade o que não pode ser elaborado psiquicamente.

A transmissão psíquica entre as gerações e entre os membros de um grupo se efetua através de alianças inconscientes. É o segundo processo que gostaria de evidenciar. Para construir o conceito de alianças inconscientes, tomei por base o pacto denegativo. Entendo por isso as diversas operações (recalque, denegação, recusa, repúdio, negação ou enquistamento) que, em todo laço intersubjetivo, são solicitadas ao sujeito para que este possa se constituir e se manter. Tal acordo inconsciente sobre o inconsciente é imposto ou concluído mutuamente para que o laço se organize e se mantenha em sua complementariedade de interesses, para que se assegure a continuidade dos investimentos e dos benefícios ligados à subsistência da função dos Ideais, do contrato ou do pacto narcisista. Cada laço se organiza assim positivamente sobre investimentos mútuos, sobre identificações comuns, sobre uma comunidade de ideais e de crenças, sobre modalidades toleráveis de realização de desejos. Cada laço e cada conjunto se organiza também negativamente sobre uma comunidade de renúncias e de sacrifícios, sobre apagamentos, recusas e recalques, sobre um "deixar de lado" e sobre restos.

Vou dar um exemplo. Mostramos, com D. Anzieu e A. Missenard, que, num grupo conduzido por diversos analistas, o que está recalcado ou negado nestes últimos se transmite e se representa no grupo de participantes e o organiza simetricamente. Aqui se verifica que o que se mantém denegado ou recalcado pelos analistas e forma a base de sua aliança inconsciente funciona como o recalque originário dos participantes em situação de grupo. Penso que se abrem então perspectivas sobre a formação e a transmissão do originário e dos significantes enigmáticos (ou arcaicos).

O conceito de transmissão é pertinente quando é preciso compreender a realidade psíquica que se transporta, se desloca ou se transfere de um sujeito a outro, entre eles ou através deles, ou nos laços de um conjunto; que o material psíquico transmitido se transforma ou se mantém idêntico nessa passagem.

Distingui duas modalidades principais de transmissão psíquica. Uma primeira modalidade descreve o processo e os conteúdos da transmissão psíquica considerada como passagem direta de formações psíquicas de um sujeito a um outro, sem operação de transformação dos processos ou dos conteúdos transmitidos. As pesquisas de N. Abraham e M. Torok sobre o luto, a incorporação, a cripta e o fantasma tiveram um papel decisivo na renovação das perspectivas dessa pesquisa. Destacou-se então a deficiência do simbólico e da introjeção no processo da transmissão, e a prevalência dos incorporados. Entretanto, as interferências entre os espaços psíquicos - por exemplo, o que foi nomeado como interfantasmatização ou intersubjetividade - não abolem as determinações intrapsíquicas: as projetam num espaço mais complexo.

Aprendi a partir de diversas curas individuais, como quando se produz em várias gerações uma sucessão de morte de crianças e de lutos não realizados, que alguns de nossos pacientes ficam "impedidos" de fazer o luto, e como esse impedimento, excluindo-os da elaboração, sustenta neles uma compulsão suicida até a terceira geração. Esses lutos impossíveis são frequentemente associados à depressão materna e à ausência do pai, daí o lugar importante, invasivo, cruel e endividante, que, ao lado da imago da mãe morta, adquire a imago do irmão morto. Nos lutos difíceis ou patológicos da criança, o impacto de lutos permanecidos impossíveis pela geração precedente fixa, na repetição do retorno do morto, a relação a um duplo não enterrado. Introduzi a noção de fantasma de transmissão para especificar uma segunda modalidade da transmissão que legitima as transformações infletidas pela vida fantasmática na relação com os objetos e os processos da transmissão.

Penso ser necessário destacar a construção, pelos sujeitos, da transmissão de cenas e cenários inconscientes nos quais se representam os objetos, os processos e os sujeitos da transmissão. Essa atividade fantasmática está diretamente relacionada com a representação da origem da vida psíquica e, conjuntamente, com a da origem do sujeito na cena sexual das origens. Pode-se pensar que tais cenários estão, também, no coração da vida intersubjetiva.

Essas distinções fazem a diferença entre a transmissão-repetição e a transmissão transicional. No primeiro caso, a transmissão é direta, passa sem transformação de um sujeito para um outro ou a mais do que um outro. A transmissão-repetição pode ser qualificada de traumática porque, não transformada, está fadada à repetição do mesmo através das gerações ou entre contemporâneos. A repetição do mesmo é a dos objetos psíquicos que não passaram pela função simbolizante do pré-consciente na geração precedente. De maneira mais geral, eu adiantaria que a patologia da transmissão poderia ser definida pelos transtornos do pré-consciente ou pelos defeitos de constituição do pré-consciente, ou seja, pelos transtornos que Freud nomeia der Apparat zu deuten, ou seja, "o aparelho de significar/interpretar".

No segundo caso, o jogo de transicionalidade torna possível um trabalho do Eu onde os elementos da história do sujeito, elementos que recebe sem saber, são reinventados, reencontrados e criados por ele. É por poder se constituir como sujeito que ele se torna o pensador e que ele pode compartilhar o que foi transmitido e as representações de transmissão.

Retornemos à última questão de vocês: a psicoterapia de família psicanalítica tem por objetivo tratar o que está em sofrimento no laço geracional. A maioria das patologias familiares tem sua origem nas dificuldades graves em formar as condições do "melhor dos recalques", em assegurar a individuação de seus membros, colocar em funcionamento um sistema narcísico trófico, capaz de sustentar a continuidade das ligações intrapsíquicas e dos laços intersubjetivos. Daí a importância da problemática intergeracional familiar, do incestuoso (P.-C. Racamier), dos segredos familiares (S. Tisseron), dos objetos brutos (E. Granjon), e das falhas narcísicas graves (A. Eiguer).

 

percurso Alguns de nós trabalham em uma instituição (de base psicanalítica) para tratamento de jovens e adultos psicóticos. Os pacientes participam de quatro grupos semanais com três horas de duração. Recentemente, nos surpreendemos com a produção de uma sequência de sonhos ao longo de alguns meses. Sonhos esses sonhados por alguns integrantes do grupo, mas principalmente por um deles. Levando em consideração a teorização desenvolvida em seu livro A polifonia dos sonhos, algumas questões nos surgiram: Como pensar essa produção onírica em psiquismos em que o recalcamento, a princípio, não teria se estabelecido? Os sonhos de um sujeito singular no grupo são também os sonhos do grupo para os sujeitos singulares? Como isso se daria? A construção onírica dentro do grupo facilitaria a reconstituição do tecido representacional e da capacidade simbólica do sujeito singular? A experiência grupal foi a condição para que essa cadeia de sonhos se produzisse?

kaës Para tentar pensar essa produção onírica nos psiquismos onde o recalque não estaria estabelecido, seria preciso compreender duas coisas, a partir da clínica: como acontecem esses sonhos no processo psíquico do sonhador que sonhou a maioria dos sonhos e como eles se produzem no curso do processo grupal. Quero apenas lembrar que a questão da relação entre o sonho e a psicose foi tratada de várias maneiras, por exemplo, pelos psiquiatras do século XIX e ainda pelos do século XX, depois por Freud, quando ele escreve que o sonho é uma psicose de curta duração, portanto reversível. Nesse caso, que não é o da alucinação psicótica e nem o do delírio, o Eu do sonhador efetua o trabalho de transformação que investe e integra a percepção no mundo interno. S. Resnik, em La mise em scène du rêve, pensa que o psicótico encena sua própria "verdade delirante" com os personagens do seu sonho.

A questão que vocês colocam situa o sonho em relação ao delírio e à alucinação. H. Ey sustentou constantemente a necessidade de o psicótico contar seu delírio. Uma vez que o delírio não é dirigido a um outro, o sonho permite encenar o delírio e efetuar uma narrativa que, na transferência, está endereçada. A propósito de um de seus pacientes psicóticos, um de meus colegas, O. Douville, propõe a ideia de que o sonho é um delírio endereçado a alguém. Ele diz que o psicótico pode sonhar quando pode suportar ser escutado. É provavelmente o que acontece com esse sonhador.

Eu não posso responder à questão de saber se os sonhos do sujeito singular no grupo são também sonhos do grupo para os sujeitos singulares. Seria preciso partir da clínica dos sonhos desse sonhador "porta-sonhos", dos sonhos que ele fez e dos quais ele faz uma narrativa; seria preciso também ter acesso ao que nessa sequência de sonhos está ancorado na realidade psíquica do grupo. Não tenho esses elementos. O que, entretanto, pode-se supor, é que os sonhos se formam e se "comunicam" nos grupos quando os laços não são mais persecutórios, intrusivos, invasivos, e quando a percepção do entorno real começa a se diferenciar da percepção do espaço interno e de seus objetos. Dito de outra maneira, quando as representações de coisa se tornam possíveis. Pode-se dizer também, seguindo o pensamento de Bion, que os elementos beta encontram continente de transformação, ou seja, quando os conteúdos não são mais destruídos. E, claro, quando os sonhos são endereçados.

Nessas condições, estou de acordo com vocês no pensamento de que, de fato, a produção onírica no grupo favorece a constituição do tecido representacional e o acesso a formas primárias de simbolização nos sujeitos.

Não penso que a experiência grupal tenha sido a condição de produção dessa série de sonhos. Um trabalho desses também pode se realizar num dispositivo de trabalho psicanalítico onde se encontram um analisando e um psicanalista. Não obstante, penso que o grupo é um dispositivo particularmente eficaz para possibilitar esse advento do sonho à medida que, dada sua morfologia, o grupo é composto por partes destacáveis e unificáveis e porque, isso posto, ele é composto por diversos espaços psíquicos capazes de serem depositários de objetos parciais ou fragmentados. Essa especificidade morfológica do grupo, com suas implicações sobre os espaços psíquicos, constitui uma potencialidade original na economia das transferências, nas atualizações dos mecanismos de defesa de clivagem e na experiência que os outros, e mais do que um outro, sejam capazes, ou não, de receber fragmentos de objetos psíquicos, de contê-los e de transformá-los graças ao processo associativo. Isso pressupõe que o analista (ou os analistas) tenha à sua disposição uma representação dos processos que atravessam o campo transferencial-contratransferencial.

 

percurso Em seu texto Rupturas catastróficas e trabalho da memória. Notas para uma investigação, o senhor aborda os fenômenos das catástrofes sociais e seu desdobramento em catástrofes psíquicas nas quais ocorreria uma desintegração do enquadre metapsíquico. Como podemos identificar as rupturas catastróficas? As ditaduras e o problema dos refugiados seriam exemplos delas? Qual a importância do trabalho com a memória na elaboração desses eventos? O trabalho em grupo é especialmente indicado?

kaës O texto ao qual vocês se referem é um capítulo de uma obra coletiva que dirigi com Janine Puget, sobre a violência de Estado e a psicanálise. Tratava-se de reunir trabalhos de colegas que viveram na Argentina e no Uruguai os efeitos patógenos da ditadura, tal como se manifestaram na análise. Eu tive a oportunidade de trabalhar com a técnica de psicodrama de grupo, organizada para elaborar traumatismos coletivos, principalmente aqueles oriundos da violência de Estado, dos genocídios e da guerra civil.

Uma das questões à qual fui confrontado era caracterizar a especificidade psíquica dos traumas provocados pela violência coletiva. Esses traumas não têm nada a ver, em sua gênese, com os traumas psicogênicos ou aqueles sofridos por um sujeito pelo efeito da violência de outro sujeito. Não podemos assimilar no mesmo conceito violências que assolam uma periferia vulnerável, um atentado terrorista, a violência organizada pelo Estado sobre seus cidadãos e um genocídio. São certamente violências "coletivas", mas essa noção é muito nebulosa, tal como aquela da violência de massa.

A violência de Estado situa-se no ponto de intersecção de dois desastres: o do Estado de direito e o do sujeito confrontado a incorporar à força uma ruptura traumática, cuja gênese pertence a uma ordem distinta desta da determinação intrapsíquica - a ordem da política.

Nessa situação, o psicanalista é convocado aos possíveis impasses de sua função quando encontra sujeitos traumatizados pela violência de Estado. Os efeitos da violência de Estado, a tortura e o assassinato, as recusas coletivas e a violência arcaica que eles selam confrontam o psicanalista aos confins do real e do fantasmático. Como pensar e tratar, de maneira psicanalítica, os problemas psíquicos cuja origem se situa na violência de origem social quando, como escreve Claude Janin, "o espaço psíquico e o espaço externo comunicam-se de tal maneira que o aparelho psíquico não pode mais cumprir seu papel de continente do mundo interno: há uma sideração psíquica que invalida, geradora de uma perda do sentido de realidade".

Eu insisto neste ponto: tratar os traumas resultantes das catástrofes sociais oferecendo-lhes uma causalidade puramente psíquica seria espoliar novamente o sujeito da sua relação histórica e real com o acontecimento. As violências, e especialmente as torturas, o ejetam da condição humana comum, elas não o identificam mais como um ser humano dotado de subjetividade e história, elas reduzem o sujeito ao status de um indivíduo anônimo, intercambiável, um dentre uma massa a ser dizimada.

Trata-se então, para este sujeito e para o psicanalista que o escuta, de situar a experiência traumática no espaço e no tempo social e político, restituir-lhe a seu contexto, na tentativa de significá-la ao mesmo tempo na sua história e na História. No caso de um trauma provocado pela violência de Estado, o impacto singular do trauma se potencializa com a carga de ruptura própria ao trauma coletivo: ele é também uma ruptura num espaço psíquico comum e compartilhado.

A partir daí, pode-se definir o que é uma catástrofe social. A experiência de desmoronamento é central: o que desmorona é o laço no espaço interno, e entre este e o espaço psíquico comum e compartilhado, o que eu chamo de espaço comum da humanidade.

A noção winnicotiana de breakdown descreve bem o desmoronamento de estruturas inteiras da organização psíquica: um desfalecimento súbito de uma função ou de um processo, uma zona de destruição no corpo, uma desorganização dos laços e das comunicações, uma ruptura na capacidade de pensar, uma perda de controle, um desligamento dos mecanismos de defesa. As vivências correlatas de angústia pura e de pânico, de desmantelamento e de medo da loucura e da morte que caracterizam a experiência psicótica estão igualmente presentes nas experiências traumáticas coletivas suscitadas pelas guerras e pela violência de Estado. Mas estas não são assimiláveis a "algo que aconteceu, mas que não pôde ser experimentado". A não integração é o efeito do que precisamente ainda não aconteceu. É por isso que os sujeitos não podem elaborar esse trauma, transformá-lo e apropriar-se dele subjetivamente nas mesmas condições que o sujeito que o recebe no curso de sua história comum.

O trabalho da memória encontra-se diretamente afetado. Nas catástrofes sociais, a violência do trauma tem outra causa. Ela está ligada à ausência de nomeação e de reconhecimento da catástrofe em si. Essa violência do não reconhecimento da violência é destrutiva e autodestrutiva por ser uma resposta à ausência de resposta, à incapacidade de reconhecer e de nomear a violência, à ausência de palavra que dá sentido ou razão ao dano sofrido, a esse exílio de si para fora da humanidade comum. O abandono, a experiência de estar sem socorro e sem recurso, corresponde ao que Freud nomeia Hiflosigkeit.

Na língua alemã, Hiflosigkeit designa um estado, este do sujeito desprovido de ajuda ou de socorro, o que implica uma experiência de fraqueza e de miséria, um sentimento de desrazão, de abandono e de abandono frente à impossibilidade de ultrapassar o problema sozinho. Esses estados tornam necessário um pedido de ajuda. Um pedido a um outro, frente a uma ameaça vital. Encontramo-nos na articulação entre os espaços psíquicos subjetivos, intersubjetivos e coletivos. Esse pedido de ajuda dirige-se a um responsável que não pode ser encontrado.

Sim, as ditaduras, os atentados em massa, as migrações em massa e o problema dos refugiados são exemplos de catástrofes sociais.

Vocês me pedem para precisar a importância do trabalho de memória na elaboração desses acontecimentos, isto é, "do que aconteceu". O trabalho de memória, é preciso lembrar, é um trabalho psíquico. Ele transforma a experiência traumática, reestabelecendo os laços entre o que foi colocado para fora do tempo e da palavra, entre os afetos e as representações. Ele se estabelece quando o que foi recalcado ou clivado ou rejeitado pode, sem prejuízo para o sujeito, ser retomado no après-coup, ou seja, num reconhecimento dos acontecimentos e na sua ressignificação. Mas esse trabalho não pode ser feito sem a ajuda de um outro, de mais do que um outro, de um coletivo. Por quê? Porque "isso" que aconteceu na psique aconteceu a partir de um coletivo. E esse coletivo também precisa ser identificado para que a questão da causa "disso" não fique escondida na solidão e na culpabilidade do sujeito.

É por isso que o trabalho em grupo é particularmente indicado. Porque o grupo, através das identificações e dos relatos que põe em jogo, oferece uma variedade de versões "disso" que aconteceu a cada um segundo sua singularidade, distintamente, mas no espaço da humanidade comum. Os enunciados até então indisponíveis para um sujeito tornam-se apropriáveis graças às propriedades do trabalho associativo grupal, graças às emoções e às representações inconscientes que se encontram reativadas e tornam-se pensáveis.

 

percurso Considerando os atentados que ocorreram em Paris no decorrer de 2015, gostaríamos de saber o que o senhor pensa sobre o terror e a ideologia que o sustenta, assim como suas repercussões no psiquismo dos sujeitos.

kaës Os atentados que abalaram a França em janeiro e novembro de 2015 são ataques destrutivos, mortíferos, contra a liberdade de pensamento, contra a comunidade judaica, contra os jovens e a música e, finalmente, contra a vida e os valores das sociedades fundadas sobre a diferença e a alteridade. Dentre as nações visadas pelo terrorismo do Estado Islâmico (E.I.), assim como pela Al Qaeda e suas filiais, a França representa, pela sua história e por suas posições políticas, tudo o que as organizações terroristas radicais odeiam. Mas outras nações também são, por essas e outras razões, alvo de suas ações.

Eu acabo de entregar ao meu editor um livro sobre uma aproximação/compreensão psicanalítica das ideologias e principalmente das ideologias radicais.

As ideologias radicais legitimam a violência destrutiva da vida humana, a violência do ato associado à Ideia toda poderosa, ao Ideal tirânico, ao Ídolo inatingível: essas são três características que reconheço em todos os sistemas ideológicos. Eles geram uma violência organizada, sistemática, cujos objetivos são diversos, mas que tem em comum a constância desses traços.

Nas ideologias radicais afirma-se a necessidade de destruir o mundo antigo para originar um outro, mais justo, mais puro, no qual o Ideal, o Ídolo e a Ideia onipotente terão o pé no real. Os ideólogos radicais destroem os homens que, segundo eles, pervertem o mundo, reduzem a migalhas os monumentos e as instituições das culturas que os precederam. A ideologia radical faz da violência destrutiva sua lei e sua justificativa.

Quando o Estado Islâmico massacra os sírios e explode o templo de Baal, em Palmira, assim como outros monumentos antigos em excelente estado de conservação, ele destrói o que é anterior ao Islã, o que lhe é estrangeiro, e que consequentemente cria obstáculos a seu projeto de supremacia. Vocês se lembram que alguns anos atrás, em 2001, o regime dos talibãs pulverizou os Budas gigantes de Bamiyan, esculpidos 1500 anos antes e julgados "anti-islâmicos". O mesmo em Tombuctu. Mas não devemos esquecer que aconteceu a mesma coisa nas Guerras Santas que devastaram a Europa nos séculos 16 e 17. Aconteceu o mesmo no tempo da Revolução Francesa com a mutilação de abadias e catedrais; assim como a destruição dos templos "pagãos" pelas conquistas coloniais cristãs. Nas ideologias radicais os Ideais e as Ideias da ideologia são pobres e repetitivos, se constroem contra os processos de simbolização, transformam essa cruel pobreza em um Ídolo que nunca falhará, que terá todo o poder de destruir o que quer que seja, ou quem quer que seja, se o Ideal, a Ideia e o Ídolo forem atacados pela dúvida. Seja ela radical ou banal, a ideologia se funda sobre a perseguição.

Seu poder está em afirmar e impor a causa absoluta, única, indiscutível. Ele exclui o herético, enuncia a pureza, condena o pensamento dissidente, exige um pensamento único.

É preciso refletir novamente sobre o que é o terror. O terror ao qual devemos fazer frente possui essa sinistra característica de ser provocado por humanos sobre outros humanos, e por meios que não são regulamentados pelas convenções de guerra. Imprevisível, a despeito das medidas de segurança e de prevenção dos atos terroristas, o terror apavora os que não são vítimas diretas, cria movimentos emocionais poderosos e identificações maciças, abala a confiança nas instituições, cinde aqueles que estão fora da humanidade daqueles que se fazem seus guardiões: são os resultados esperados do terror.

Será necessário daqui para frente desenvolver e manter a capacidade de pensar frente ao terror: de pensar seus laços com a ideologia radical que o sustenta e que o justifica; de compreender os determinantes e os processos psíquicos do terrorismo; de se representar como, frente ao terror, o inconsciente reage, age, e quais defesas suscita.

Essas questões são difíceis, surgem de fontes diversas e são complexas. Para os psicanalistas, os principais elementos que poderiam servir para articular respostas a elas são os que nos vêm das elaborações produzidas a partir da cura individual, especialmente a dos psicóticos e a das crianças pequenas, os infans, que ainda não dispõem da palavra. Os saberes que se constroem sobre essas bases nos falam coisas importantes a respeito da experiência do terror quando ele surge nas organizações primitivas da psique. Dentre esses conceitos, aqueles de Bion (o terror sem nome) e de Winnicott (as agonias primitivas) nos são muito preciosos.

Todavia, nós precisamos interrogar sua pertinência quando o trauma causado pelo terror advém tardiamente numa organização mais complexa da psique e nas pessoas que não sofrem de psicose, como é o caso da maioria das pessoas atingidas coletivamente pela violência mortífera do terrorismo. Mas as crianças também são vítimas. Depois dos atentados de Paris, os porta-vozes do Estado Islâmico declararam que eles atacariam escolas.

Frente ao terror, frente ao massacre terrorista que o suscita, quando os objetos internos e as estruturas fundamentais de que é constituída a psique são desintegradas, assim como a função alfa, tudo se passa como se todas as construções defensivas e elaborativas se despedaçassem brutalmente. O terror surge, imprevisível. Ele congela o tempo no horror, deixa o sujeito no desligamento, no vazio, no abandono, na ausência de responsável.

O sujeito não tem como enfrentar essas experiências extremas sem o auxílio do outro. É, portanto, também na intersubjetividade que a contenção e a transformação da experiência do terror se inscreve de imediato. E é por isso, também, que os dispositivos plurissubjetivos de elaboração da experiência do terror são apropriados, desde que realizados com tato.

Frente ao terror: hospedar, nomear, pensar.

Frente ao terror, nomeá-lo. E com ele aquilo que o causa, aquilo que E. Kant, H. Arendt e Paul Ricoeur designaram como o mal radical, a destruição da humanidade em cada ser humano, pelo massacre cego ou organizado, no intuito de assegurar a supremacia da Ideia toda poderosa, o Ideal cruel, o Ídolo religioso.      

Frente ao terror, pensar o que o causa, como ele assegura o poder absoluto daqueles que o provocam, o que ele destrói, o medo que ele propaga e que faz de todos um inimigo em potencial. O terror se descarrega no ódio indistinto por tudo o que possa representar uma figura dos terroristas. E os terroristas de hoje em dia sabem justificar seus atos pelo ódio que eles induzem em suas vítimas: ciclo perverso, infernal.

Frente ao terror que desintegra as psiques e os laços, frente à negação maciça, vital e inassimilável do que aconteceu, precisamos inventar os continentes e as peles psíquicas onde ele possa ser hospedado, as palavras que rearticulem os humanos vivos no mundo.


topovoltar ao topovoltar ao sumáriotopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados