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Resumo
Este artigo discute um caso clínico em que há controvérsia em torno do diagnóstico de neurose ou psicose. Com base na transferência estabelecida, contudo, o autor decide apostar em um quadro de loucura histérica. Esta escolha servirá como orientador para a condução e compreensão do caso como um todo. A partir dessa experiência, o autor pretende contribuir para a teoria da loucura histérica e sugerir princípios para o seu manejo.


Palavras-chave
loucura histérica; manejo; borderline; passagem ao ato; culpa; transferência.


Autor(es)
Daniel Lirio Lirio
é psicanalista, psicólogo e mestre em Psicologia Social pela usp; membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae; autor de diversos artigos sobre psicanálise e cultura e do livro Suspensão corporal, novas facetas da alteridade na cultura contemporânea


Notas

1.        Esta análise transcorreu em um Centro de Atenção Psicossocial (caps), durante dois anos, com frequência de duas a três vezes por semana.

2.        Evangelho de Lucas.

3.        Essa articulação entre a submissão absoluta ao Outro e o imperativo de gozo do superego tirânico também nos permite compreender o porquê de atos extremos se constituírem como estruturais em qualquer forma de fundamentalismo religioso. Aqui, os homens-bomba são os exemplos por excelência.

4.        Para mais considerações sobre o tema, ver D.R. Lirio, "O manejo clínico na psicose: estratégias para o fortalecimento da identidade".

5.        J. Lacan, O seminário. Livro 10: a angústia, p. 135.

6.        Apud L.S. Alonso; M.P. Fuks, Histeria, p. 196.

7.        J. Lacan, op. cit., p. 134.

8.        J. Lacan, O seminário. Livro 5: as formações do inconsciente.

9.        J. Lacan, op. cit.

10.     S. Freud, A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher.

11.     J. Lacan, "O simbólico, o imaginário e o real", in Nomes-do-Pai, p. 33.

12.     J. Lacan, op. cit., p. 33.

13.     Entendemos assim o porquê de alguns analisandos sentirem como uma punição injusta quando são instados a pagar por uma falta pela qual não seriam culpados.



Referências bibliográficas

Alonso L.S.; Fuks M.P. (2004). Histeria. São Paulo: Casa do Psicólogo. (Coleção Clínica Psicanalítica. Dir. Flávio Carvalho Ferraz)

Freud S. (1911/1976). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia paranoides). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 12. 

____. (1920/1974). A psicogênese de um caso de homossexualismo numa mulher. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 18.

____. (1923 [1922]/1976). Uma neurose demoníaca do século xvii. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 19.

____. (1923/1976). A organização genital infantil; uma interpolação na teoria da sexualidade. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 19.

____. (1924a/1976). A perda da realidade na neurose e na psicose. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 19. 

____. (1924b/1976). A dissolução do complexo de Édipo. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. 19.

Lacan J. (1953/2005). O simbólico o imaginário e o real. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

____. (1957/1999). O seminário. Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

____. (1962/2005). O seminário. Livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lirio D.R. (2014). O manejo clínico na psicose: estratégias para o fortalecimento da identidade. Percurso: Revista de Psicanálise. São Paulo, Instituto Sedes Sapientiae, ano xxvii, n. 53.

Maleval J.C. (1987). El delírio histérico no es um delírio disociado. Locuras histéricas y psicosisdisociativas. Buenos Aires: Paidós.





Abstract
This article discusses a case in which a controversy surrounds the diagnosis of neurosis or psychosis. Based on the established transference, however, the author decides to invest in a hypothesis of hysterical madness. This choice will serve as a guide for conducting and understanding the case as a whole. From this experience the author intends to contribute to the theory of hysterical madness and suggest principles for its management.


Keywords
hysterical madness; management; borderline; passage to the act; guilt; transference.

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 TEXTO

O manejo clínico na loucura histérica

Clinical management in hysterical madness
Daniel Lirio Lirio

Compreender é sempre avançar capengando no mal-entendido

Jacques Lacan

 

Estória

A união de Oswaldo e Eulália foi atribulada. Enquanto ele era um homem feito, ela estava com apenas treze anos, e sua família foi contra o casamento. Eles tiveram duas filhas: Mara e Sandra - nossa protagonista [1]. Eulália tinha muitas dificuldades em assumir o lugar de mãe e dividia seu tempo entre cuidar da casa e tentar impedir a infidelidade do marido. Certa feita, ao saber de uma traição, ela corta os pulsos. Oswaldo se desespera e promete que se ela não morrer entrarão todos para a Igreja. Dito e feito, entram para uma Igreja Evangélica - mas Sandra se revolta por ter de se batizar, uma vez que não teria pecado.

 

Sandra casou-se e teve uma filha e, alguns anos depois, um filho. Eulália falece ainda jovem e Sandra herda os ciúmes da mãe em relação aos casos amorosos do pai. Quando este começa um caso com uma mulher casada, Sandra sentencia: "Isso não se faz! É pecado! Vai acontecer com você o mesmo que aconteceu com São João Batista!".

 

Conforme o novo testamento[2], São João Batista foi um pregador de muito prestígio na corte de Herodes, mas que teria sido preso por denunciar o comportamento moralmente escandaloso das pessoas da corte e, especialmente, por condenar o casamento do próprio Herodes com a mulher do irmão. Salomé, enteada de Herodes, dança para o padrasto e pede a cabeça de João Batista em uma bandeja de prata. Curiosamente, Sandra confere ao pai esse duplo lugar: ele é quem comete os atos escandalosos e quem recebe a punição. Nessa condensação, ele é punido por sua imoralidade. Contudo, é Sandra quem denuncia a imoralidade e, portanto, seguindo a lógica bíblica, é ela quem deveria sofrer as punições.

 

Sandra está brigada com o pai e não o convida para a festa de aniversário da filha. No dia seguinte ele morre em um acidente de automóvel, confirmando sua profecia: Sandra diz ter "jogado o pai no inferno". A partir daí, surge a ideia de que seu filho também deverá ir para o inferno, caso ela não o mate ainda bebê. Vale lembrar que João Batista é o precursor do Messias, Jesus Cristo, o mártir maior da cristandade. O único jeito de salvar sua alma é matá-lo ainda bebê. Tal como Édipo, tal como Cristo, esta criança não pode crescer. Sandra luta contra essa ideia. Horrorizada, ela quer evadir-se, sofre de crises nervosas e é internada algumas vezes. O conflito entre o Bem e o Mal continua a obsedá-la até o momento da batalha final: o marido sai para trabalhar, o filho dorme no berço ao lado; com as mãos, ela o enforca até a morte.

 

Tal como João Batista, ela teve de pagar caro por suas denúncias, tal como Deus, ela teve de sacrificar o filho. Para Sandra, este foi um sofrimento que só Deus conheceu, ninguém mais conseguiria imaginar o quanto ela sofria. Ela passa a década seguinte alternando entre internações de dois a três meses e breves períodos com familiares. O marido pede o divórcio, fica com a guarda da filha e impede qualquer contato de Sandra com ela. Os familiares não conseguem conter suas crises, suas tentativas de suicídio por ingestão excessiva de medicamentos. Quando iniciou o tratamento no CAPS ela morava com a irmã e o cunhado, com quem tinha muitos conflitos. Em uma das crises, ela deixou o gás do fogão ligado para explodir a casa toda.

 

Os primeiros atendimentos

Logo nas primeiras semanas na instituição, enquanto participava apenas de grupos terapêuticos e oficinas, Sandra tem uma forte crise: descontrola-se ferozmente, é contida e medicada. Vou vê-la na enfermaria, ela se acalma, conversamos e começamos a construir um vocabulário próprio, que permite uma aproximação. Sandra lê sobre linhas terapêuticas e me pergunta se quero ser o seu analista. Além de narrar uma história de sofrimentos, Sandra passa a se interrogar sobre quem é essa pessoa que tem essa história, e o processo analítico engata.

 

O seu discurso oscila entre narrativas autobiográficas e delirantes. Quanto à sua história pessoal, destacam-se os apetites sexuais do pai que, inclusive, tentara abusar dela e da irmã, pois queria ser o "primeiro marido das filhas". Mas há também um mito pessoal sobre a criação do universo: no início era o Só, que queria ficar só, mas criou Lúcifer e Deus, que criou Jesus. O Só é bissexual e poderia ter sido a mulher de Deus, mas "preferiu ficar só" e tornou-se mau. Entre os humanos, Sandra é a primeira mulher criada por Deus, eu sou o primeiro homem, a filha dela está destinada a ser minha mulher. Assim, ela me coloca na série Deus, Adão, pai.

 

Apesar da sintomatologia delirante, com fragmentação e desorganização psíquicas, a transferência experimentada no setting analítico sugere uma estrutura neurótica, mais precisamente uma loucura histérica. Sandra se sente envolvida eroticamente por seu analista, com quem repete um sentimento nutrido pelo advogado que a defendera na justiça e também a tratava com atenção. Ela inicialmente demanda afeto, quer sessões fora do horário, chega atrasada propositalmente, questiona diversas vezes a importância do atendimento, apenas para reafirmá-la em seguida.

 

Nos primeiros meses, o manejo foi muito próximo do que seria feito em caso de psicose, com ênfase no vínculo, na compreensão do repertório fantasmático, na construção de um vocabulário comum e no fortalecimento da ideia de si. Única ressalva: não respondi à demanda afetiva subjacente às atuações em relação ao horário e frequência dos atendimentos. Diante de uma sintomatologia psicótica apoiada em uma estrutura histérica eu me via em um dilema: amarrar as pontas de um fio narrativo entrecortado ou ajudá-la a ver que essas rupturas eram causadas por tensões internas a ela mesma e que seus sintomas e atuações eram um posicionamento frente àquilo que lhe angustiava?

 

Ela narra uma história de sofrimento extremo e se interessa em saber como eu lido com tamanha tristeza, supondo que estou com vontade de chorar de pena. Ela diz que os médicos querem matá-la como vingança pelo que fez com o filho e eventualmente reclama que não a trato devidamente. Ou seja, é como se o analista tivesse de escolher entre simpatizar com ela, penalizado pelo seu sofrimento, ou ser frio, vingativo, ficar com raiva e rejeitá-la. Assim, há uma demanda pelo amor do analista como único modo de salvá-la.

 

A não resposta a essa demanda é tomada como fonte extra de frustração e sofrimento. Ela passa a questionar o lugar da análise e pede para diminuir a frequência ou mudar de terapeuta, diante do que eu respondo: "você teve tantas perdas e quando tem um espaço seu você quer abrir mão?". Outras vezes, ela me pede ajuda para "sufocar o sentimento", ou seja, o analista também é demandado no lugar de cúmplice do sufocamento. A ausência de livre-arbítrio reaparece, portanto, na passividade diante da paixão pelo analista, involuntária, impossível e dolorosa. Desse modo, parte do trabalho consiste em sustentar a importância dos atendimentos com o grau de frustração da demanda erótica que eles implicam, sem me tornar o demandante da continuidade do processo.

 

Quando Sandra conta dos abusos e tiranias do pai, utilizo objetos na mesa para figurabilizar seu discurso: quem é o maldito, o filho, o pai. Ela esboça a compreensão de que entre a narrativa da origem do universo e a sua própria vida pode haver uma analogia, ou seja, os delírios encenavam a sua história.

 

Em suma, o delírio religioso permite a manutenção de uma identidade, uma narrativa e um sentido para a sua história, mas, ao mesmo tempo, dá consistência a uma fantasia que a aliena de sua história e de si mesma. Por meio do trabalho na transferência, Sandra se embate com a impossibilidade de realizar o desejo em relação ao analista, o que a mantém como desejante. O analista está no lugar de objeto causa do desejo, é inacessível, mas fomenta a manutenção de uma relação em que ela está barrada: a paciente cria uma ilusão de satisfação incestuosa com o analista e se frustra com a desilusão. Assim, por trás de uma sintomatologia tão exuberante podemos encontrar um caso clássico em que o amor de transferência permitirá a reedição de uma narrativa biográfica impregnada pelo mundo fantasmático.

 

Culpa e salvação

Quando chega ao CAPS, o diagnóstico psiquiátrico de Sandra é de psicose; depois de um tempo de tratamento, muda para bipolar e, posteriormente, para transtorno de personalidade. Embora a instituição tenha recebido pouca informação sobre o processo judicial, é possível supor que um quadro neurótico seria passível de culpabilização. Assim, embora a paciente não enuncie claramente, subentende-se que a loucura tenha sua conveniência tanto no plano jurídico quanto no subjetivo. Fazer-se e acreditar-se louca a protege do contato com os conteúdos terríveis de sua biografia, ao mesmo tempo que frequentar um serviço de saúde mental é sentido por ela como uma espécie de álibi. Por outro lado, quanto mais se trata, mais transparece sua estrutura neurótica, o que fomenta a capacidade de se reconhecer no enunciado de seus delírios e fantasias e a torna responsável por seus atos e palavras - aumentando a resistência ao tratamento.

 

Enfim, o analista é colocado em mais um dilema porque o alívio do sofrimento está associado ao fortalecimento do delírio como algo que justifique o seu ato. Nesse caso, ela se sentiria momentaneamente melhor, mas continuaria presa à necessidade de rejeitar seu ato (verwerfen). Ao contrário, se o analista faz qualquer movimento para que ela se implique no ato, pode ocupar o lugar de superego perseguidor e forçá-la ainda mais a uma fuga delirante, além de colocar em risco a continuidade do processo analítico. Limito-me a perguntar como ela se sente em relação ao acontecido.

 

 - Deixa eu procurar uma palavra.... (alguns minutos de silêncio) ...só tem uma palavra: inocente.

 

Ao longo de todo o processo analítico, Sandra se coloca como inocente e, mais ainda, como mártir. Ela afirma não ter livre-arbítrio, é Deus quem decide sobre seus atos e, portanto, é ele o grande responsável. Dessa forma, a figura de um Deus bom e misericordioso será desdobrada em seus duplos malignos, o Diabo e o Só. Esta dupla faceta do Divino nos remete ao paradoxo do superego: ao mesmo tempo que nos mantém na linha, conformes a um ideal, preservando os traços identitários com os pais, ele também se torna tirânico, perseguidor, e nos impele a cometer os atos mais extremos com vistas a um gozo impossível. Ou, para dizer de outro modo, oferecer-se como mártir para Deus é oferecer-se e oferecer o que tem de mais valoroso para satisfazer a demanda do Outro. O assassinato do filho de Sandra resulta do imperativo superegoico de gozo sem limites - pois é para atender à demanda divina que ela o mata, salvando-o do inferno. Em sua duplicidade, o superego impele à lei, à submissão à castração e, ao mesmo tempo, em sua face tirânica, ordena ao gozo regressivo dual, de submissão ao Outro[3]. Contudo, por tratar-se de uma neurose, o gozo absoluto é impossível e termina sempre por se chocar contra a rocha da castração.

 

Ao longo do processo, ela consegue se apropriar de sua participação - ainda que sem a culpa - na morte do filho, e reconhece ter havido uma injustiça, pois ele nada teria a ver com a morte do pai. Enquanto no início ela dizia que seu ato era resultado de um conflito entre Deus e o Só, o processo analítico permitiu que os delírios fossem trabalhados e "enxugados". O conflito entre Deus e o Só pôde ser interiorizado como um evento ocorrido dentro dela, o Só começou a perder força e morreu oficialmente em um dia 7 de setembro, ainda que reaparecesse eventualmente nas narrativas. Este falecimento foi relatado como o dia mais feliz da vida de Sandra, e a data sugere que ela conseguiu um pouco de independência frente aos delírios. Começa a haver uma melhor discriminação entre loucura e lucidez, passividade e livre-arbítrio, resignação e revolta, e ela percebe que alguns sentimentos e lembranças são tão doídos que ela prefere renegá-los. Para dar conta de seus paradoxos, ela fala da existência de "duas Sandras".

 

Assim, o que antes se apresentava como uma cisão entre o Eu e a realidade começa a dar lugar a uma cisão egoica, o discurso psicótico pode se integrar a uma estrutura neurótica e começam a surgir atos falhos dentro do seu delírio! Em associação livre, ela troca "filho" por "pai", no sentido de ter matado o pai. Diante da troca ela associa a morte do filho à redenção do pai, que estaria às portas do inferno. Ao contar da ameaça que fizera ao pai, diz "a história de João Batista, que teria avisado Pilatos para não se casar com Herodes". Eu indago sobre ter falado "Pilatos" no lugar de "Herodíade", mas ela diz ter sido um mero equívoco. Eu insisto, ela pergunta:

 

 - Herodes era homem ou mulher?

 

Devolvo a pergunta, ela continua, conta a história de Pilatos, que deu ao povo o poder de escolher entre Jesus e Barrabás e, diante da escolha pelo último, proferiu a frase "eu lavo minhas mãos, e o sangue recairá sobre vocês".

 

- E nessa sua história, tem alguém que lava as mãos?

- Nããããão....

 

Encerro a sessão.

 

As trocas de "filho" por "pai" e de "Herodíade" por "Pilatos" nos levam a especulações bastante interessantes. Do ponto de vista formal, trata-se de atos falhos dentro do delírio! Ora, um ato falho só pode ser compreendido articulado à repressão, isto é, ao campo da neurose. Vemos assim como um mecanismo neurótico pode governar um delírio, se a censura egoica bloqueia a emergência do conteúdo latente. Isso seria algo típico da loucura histérica. Para nossas considerações sobre o manejo, vale enfatizar que essas associações surgiram quando o analista insistiu para a analisanda falar mais sobre pontos nos quais não gostaria de se aprofundar. Esta é uma postura comum à clínica das neuroses. Assim, enquanto na psicose o manejo clínico baseia-se no acolhimento do discurso e no apoio para a constituição de alguma consistência nas narrativas do sujeito[4], no atendimento da loucura histérica pode-se pedir mais associações e focalizar atos falhos para permitir a emergência de conteúdos recalcados, além de se privilegiar intervenções que levem o analisando a se posicionar frente ao seu discurso e a seus atos.

 

Do ponto de vista do conteúdo, essas trocas sugerem que a figura do pai interfere na relação com o filho e que há uma tentativa de mudança quanto à responsabilização sobre o ato, de cumplicidade (Herodíade) para uma falsa inocência (Pilatos). Então, no conjunto da narrativa, o sujeito se posiciona de três formas diferentes. Na forma manifesta, Sandra ocupa o lugar de João Batista, que denuncia a relação indevida do pai/Herodes com a amante/Herodíade. Em outros momentos, Sandra se identifica com Herodíade, cúmplice da morte de João Batista. Para escapar desta dicotomia entre ser a culpada ou a vítima, é possível lançar mão da figura de Pilatos, o qual lava as mãos diante da morte do mártir, pois o assassinato teria ocorrido em nome da vontade de terceiros.

 

Além disso, a troca de Herodíade, uma mulher, por Pilatos, um homem, seguida da pergunta sobre o gênero de Herodes, também indica a retomada de um tema inicialmente exposto pela caracterização do Só como bissexual e hermafrodita, qual seja, suas indagações latentes quanto à diferença sexual e a escolha objetal.

 

Quando comparamos a biografia de Sandra com suas associações e com sua mitologia delirante, observamos um padrão de triangulações. Há um triângulo originário entre o pai de Sandra, sua mãe e as amantes. Na cena bíblica há um conluio entre Herodes, Herodíade e Salomé. No seu delírio predomina a tríade Deus, Só e Diabo. Na transferência, a cena amorosa é constituída pelo analista, a analisanda e sua filha. Enfim, em todas essas tríades, os segundos e terceiros termos funcionam como duplos. Sandra deseja o analista, mas é sua filha quem está prometida a ele. O Só é ora o próprio Diabo, ora seu genitor. Herodes satisfaz o desejo de Herodíade por estar fascinado pela dança de Salomé. Em seus relatos, Sandra ocupa ora o lugar da mãe, traída e ciumenta, ora o lugar de amante do pai, em uma relação incestuosa. Como ocupa os dois lugares, estes se condensam para originar uma relação dual entre uma mulher e um pai muito mal.

 

Na psicose, o conflito fundamental reside na separação Eu-Outro. A relação dual é instável, pode colapsar a qualquer momento e deixar o sujeito na iminência de re-fusão com o Outro. Ameaçado, o sujeito delira para criar uma narrativa que organize a separação. Em análise, tenta-se constituir uma metáfora delirante para estabilizar a separação. Já na neurose, há três elementos na cena, normalmente bem estabilizados. Se ocorrem fantasias incestuosas, dramas edípicos e imagens de parricídio, elas são combatidas violentamente pela culpa e produzem inibição. Há uma angústia vinculada ao medo de cair do lugar de sujeito desejante, de perder a configuração triangular. Contudo, a própria culpa é garantia dessa condição, pois indica a força do superego que, como sabemos, é herdeiro do complexo de Édipo. Em suma, os três atores estão presentes na cena e a ameaça de colapso é imaginária.

 

A partir dos modelos da psicose e da neurose, chegamos a uma hipótese sobre o drama que caracteriza a loucura histérica. Por tratar-se de uma estrutura neurótica, os três elementos também estão presentes, como observamos pelas fantasias de Sandra. Contudo, esses elementos são mais instáveis, e um pode assumir o lugar de duplo do outro, confundir-se com o Outro. Mais especificamente, mãe e filha podem confundir-se: Sandra se confunde ora com a sua mãe, ora com a sua filha, assim como se confundem os lugares de Salomé e Herodíade. Desta forma, podemos pensar que o enfraquecimento da configuração triangular solapa a diferenciação Eu-Outro e, portanto, desestabiliza a Identidade do Sujeito. Ou, ainda, nas palavras de Lacan[5]: "Quando a relação que se estabelece com a imagem especular é tal que o sujeito fica demasiadamente cativo da imagem para que esse movimento seja possível, é porque a relação dual pura o despoja de sua relação com o grande Outro". Em outras palavras, a constituição da identidade, que permite a estabilidade do ego, depende de a relação especular ser posta em perspectiva pela relação com o grande Outro. Essa noção é retomada por Maleval[6], ao preferir o termo "desidentificação" para falar de loucura histérica. Mais uma vez, está em questão a perda dos limites do Eu, remetendo-nos a um problema com a imagem especular em que o conjunto das referências imaginárias se desestrutura.

 

Voltamos, portanto, à cena fundamental, constituída por Oswaldo, Eulália e Sandra, reeditada com a substituição de Eulália pela amante. Enquanto Oswaldo fica com a esposa ou com a amante, Sandra fica excluída, completamente desamparada, não há função materna, ninguém cuida dela. Por outro lado, quando Oswaldo está com Sandra, é sob a iminência do abuso, submetida aos excessos do Outro - não há interdição, função paterna capaz de barrar o gozo do Outro. Portanto, a posição subjetiva de Sandra é marcada pelo desamparo frente a um Outro que oscila entre ausente e abusador.

 

Passagem ao ato

Enquanto exposto a um Outro que oscila entre ausente e abusador, a condição de sujeito fica ameaçada, isto é, a própria identidade e o movimento do desejo tornam-se instáveis. Conforme a apreensão lacaniana, "a despersonalização começa pelo não reconhecimento da imagem especular" e, logo adiante, "é ao não se encontrar no espelho [...] que o sujeito começa a ser tomado pela vacilação despersonalizante", ou ainda "se o que é visto no espelho é angustiante, é por não ser passível de ser proposto ao reconhecimento do Outro"[7]. Em outras palavras, é tarefa das funções materna e paterna possibilitar um investimento de desejo e de significantes capaz de estabilizar um aglomerado de sensações em uma unidade, uma identidade por meio da qual haja um sujeito que possa falar de si. Ou seja, essas funções permitem que um sujeito se reconheça e fale de si.

 

A despersonalização tem uma raiz, portanto, no campo das falhas das funções materna e paterna, responsáveis pela nomeação, continência, reconhecimento, contorno e amparo narcísico ao sujeito. Houve uma perturbação no modo como a criança pôde se constituir narcisicamente, ser investida no lugar de falo e depois não perder essa condição de forma demasiadamente violenta. As falhas determinam a precariedade com que o sujeito vai lidar com os dramas edípicos. Este sujeito não vai adquirir sua condição neurótica pela superação/dissolução do complexo de Édipo, ele vai ser atropelado pelo Édipo e pela castração, e isso determina a sua conduta impulsiva posterior. Para utilizar as coordenadas lacanianas, diríamos que houve problemas excessivos no primeiro e segundo tempos do Édipo, ainda que o terceiro tempo tenha sido conquistado[8].

 

Lacan[9] retoma o caso da jovem homossexual[10] para dizer que, na impossibilidade de esperar um filho do pai ou de efetuar um acting out, tornando-se imaginariamente o cavalheiro de uma Dama, só resta à jovem cair literalmente da cena, jogando-se no trilho do trem. Em nosso esforço especulativo, podemos supor que, para Sandra, tirar o filho de cena, isto é, ela mesma cair da cena, tornou-se o único modo de lidar com a angústia, pois, apagando um índice da relação incestuosa com o pai ela reinstaura a condição de falta. Nesse sentido, o filicídio seria uma defesa frente a angústia, que teria dado ensejo a um modo singular de existência, obsedada pelos conflitos entre o bem e o mal.

 

Vai te custar os olhos da cara

É comum aos pacientes muito graves a não utilização do divã, pois o contato visual fomenta a estabilidade egoica. Contudo, neste caso, como o olhar está ligado à sedução e à vitimização, a satisfação escópica pode funcionar como resistência ao processo analítico e prejudicar a elaboração dos conteúdos recalcados. Assim, eu me mantive boa parte do tempo com os olhos desviados para incentivar a associação, mas retornava o olhar periodicamente para ajudar Sandra a se manter minimamente integrada. Geralmente, ela atingia essa integração quando se colocava como sofredora, mártir submetida aos desígnios divinos. Em contraposição a este lugar de objeto submetido ao Outro, é preciso pavimentar um caminho simbólico para ela vislumbrar sua atividade. Desta forma, passamos do registro dual, marcado pelo imaginário, pela imagem e, por conseguinte, pela pulsionalidade escópica, para o campo do ternário, marcado pelo simbólico, pela linguagem, enfim, por um erotismo mediado pela escuta. Cito Lacan:

 

Já vimos isso na própria estrutura da fala: o que é realizável libidinalmente entre este e aquele sujeito exige mediação. É o que dá seu valor a esse fato, afirmado pela doutrina e demonstrado pela experiência, de que nada se interpreta finalmente [...] senão por intermédio da realização edipiana. Isso quer dizer que toda relação a dois é sempre mais ou menos marcada pelo estilo do imaginário. Para que uma relação assuma seu valor simbólico é preciso haver a mediação de um terceiro personagem que realize, em relação ao sujeito, o elemento transcendente graças ao qual sua relação com o objeto pode ser sustentada a certa distância[11].

 

O trânsito da dualidade para a triangulação terá seu correspondente na alternância entre os campos da angústia e da culpa:

 

Entre a relação imaginária e a relação simbólica, há toda a distância que há na culpa. É por isso, como a experiência mostra a vocês, que a culpa é sempre preferida à angústia.

 

Sabemos que, pelos progressos da doutrina e da teoria de Freud, a angústia está sempre ligada a uma perda, isto é, a uma transformação do eu, isto é, a uma relação a dois a ponto de se esvair e à qual deve suceder outra coisa, que o sujeito não pode abordar sem certa vertigem. É isso que é o registro e a natureza da angústia. A partir do momento em que se introduz o terceiro, que ele entra na relação narcísica, abre-se a possibilidade de uma mediação real por intermédio essencialmente do personagem que, em relação ao sujeito, representa um personagem transcendente, em outras palavras uma imagem de domínio por meio da qual seu desejo e sua realização podem se dar simbolicamente. Nesse momento, intervém outro registro, que é ou o da lei, ou o da culpa, segundo o registro em que ele é vivido[12].

 

Portanto, a relação transferencial fundada na linguagem poderia operar a passagem da angústia à lei. Contudo, neste caso, o campo da lei está atrelado inexoravelmente a uma culpa terrível, muito mais assustadora do que a angústia. No caso de Sandra, ao contrário do que afirma Lacan, haverá um esforço constante para regredir a uma situação dual fundamentada no olhar, vivenciada como angústia. Tal caráter de escolha pela angústia como oposição ao campo da culpa/dívida/lei será explicitado quando seu diagnóstico psiquiátrico muda de esquizofrenia para transtorno bipolar e ela perde o direito ao bilhete especial, que lhe concedia gratuidade no uso do transporte público. Ela fica furiosa e ameaça abandonar o tratamento. Algumas semanas depois deste episódio ela diz não poder fazer as coisas sozinha por ter necessidade de "cuidados especiais". Remeto à perda do "bilhete especial":

 

 - É! É isso mesmo, eu fiquei muito brava porque tiraram o meu bilhete especial!

 

Meses depois, ela deixa de comparecer ao serviço por algumas semanas e o tema retorna:

 

- A psiquiatra falou que vai fazer um laudo e eu vou poder tirar o bilhete especial, aí vai ficar mais fácil de eu poder vir, não vou mais precisar faltar...

- Mas não foi por isso que você andou faltando...

- É um conjunto de coisas né, Daniel, mas se eu não precisar pagar é mais fácil. Eu não posso trabalhar, porque senão eu perco o benefício.

 

A perda dos benefícios sociais atrelados ao grave diagnóstico inicial torna-se especialmente doída, pois é índice da possibilidade de perder a loucura como proteção à angústia e à culpa. Aqui vemos como aquela configuração psicótica desembocou em um típico drama neurótico, em que há forte resistência a pagar o preço pela liberdade. Quando eu paro de trabalhar no CAPS, proponho continuarmos o processo em meu consultório por um preço possível. Inicialmente ela aceita, mas não vem à sessão. Faço contato telefônico em que reafirmo a possibilidade de negociarmos um valor, ela aceita, mas falta novamente. Portanto, há algo inconciliável. Quando ela tem de pagar, enfrentar a ideia de realmente pagar pelo seu sintoma, pagar pelo seu transporte, pagar pelo seu tratamento ou mesmo pagar a pena por ter matado o filho, qualquer valor é recusado. Não está em questão se o valor é alto ou baixo, qualquer valor é demasiado para quem se coloca como credor, como quem tem de receber uma compensação pelo sofrimento. Enquanto neurótica, torna-se injustificável a morte do filho.

 

Quando começou o processo comigo, ela atuava de forma extrema, como na situação já mencionada acima, em que deixou o gás ligado para explodir a casa onde morava com a família da irmã. Aos poucos, as atuações ficaram menos perigosas e as internações tornaram-se desnecessárias. Mesmo assim, em alguns embates com a irmã, esta ameaçava interná-la. Novamente, caso se tratasse de uma psicótica, teria sido importante a intervenção junto à irmã para evitar medidas extremas. Por vezes, parecia que Sandra queria isso de mim. Contudo, eu considerava importante abordar o motivo de ela se fazer internar e trabalhar a sustentação de sua lucidez como a única forma de garantir sua liberdade. De fato, um ano antes desses últimos acontecimentos ela se encontrava em aparente mania, mas se recusava a tomar as medicações e a equipe cogitou se deveria forçá-la. Neste momento, ela colocou-se como uma pessoa lúcida, que escolhia não tomar as medicações naquele momento, mas que se dispunha a continuar o processo terapêutico. A equipe acolheu seu posicionamento e ela ficou um bom tempo sem as medicações e sem crises.

 

Culpa e responsabilidade

A discussão deste caso põe em relevo a passagem do paradigma da culpa para o paradigma da responsabilidade. O termo alemão para "culpa", Schuld, também significa "dívida", isto é, quem tem culpa tem uma dívida e, portanto, precisa "pagar uma pena", sofrer punição. Obviamente, toda culpa é terrível, pois o neurótico carrega o sentimento de ter cometido uma falta, no sentido de transgressão, fundada nos desejos incestuosos[13]. No caminho da análise, é possível deixar de ser culpado para tornar-se responsável (verantwortlich), isto é, pode-se responder (antworten) pelos atos cometidos, no sentido de posicionar-se em relação ao próprio desejo, à solução que inventa para lidar com o fato de que, em cada um, algo falta. Isso só é possível porque habitamos o mundo da linguagem, das palavras (Worte). Ou seja, o processo psicanalítico favorece a passagem de um estado em que faltas imaginárias, tomadas como transgressões reais, geram sentimento de culpa e a necessidade de punição, para um estado em que a falta seja simbolicamente reconhecida como decorrente deste vazio, desta lacuna que causa o desejo, desejo pelo qual somos responsáveis.

 

Contudo, ainda que inicialmente Sandra fosse perseguida por uma culpa inconsciente, intensificada pelo abuso paterno, a partir do momento em que ela mata o filho, comete um ato pelo qual é muito difícil se responsabilizar, responder com palavras. Ela tentava se colocar como vítima, inocente, mas quando alguém a atacava pelo crime ela permanecia em silêncio. Por outro lado, em sua última internação, a psiquiatra de plantão a culpou pelo ato, e Sandra conseguiu responder que só o fez devido a uma crise de loucura. No entanto, esta resposta é ainda insuficiente para ressignificar o ato a ponto de permitir o trânsito pela vida de forma mais livre. Para ela, uma tentativa de resposta era ter um outro filho - plano impossibilitado pela necessidade de manter as medicações. Provavelmente, supomos, esta resposta também seria insuficiente.

 

Fica, assim, aberta a questão: haveria a possibilidade de inventar uma resposta para esta morte? Uma resposta capaz de desembaraçar a falta simbólica, condição do desejo, da falta imaginária, culpa pelo incesto, e da falta real, perda irreparável do filho? Anos depois de encerrado esse atendimento, eu me dou conta de que o nome do menino jamais surgiu nas sessões, nem em qualquer documento da instituição. Sua ausência permanece sem nome e sem resposta.

 

Vida que segue...

 

Alguns anos depois de finalizar o processo analítico, converso com a psiquiatra que atendia Sandra. Após minha saída, ela manteve-se bem, continuou seu namoro, estreitou os laços com a filha e com parentes de quem se distanciara. Sandra planejava ter mais um filho e, devido aos riscos que ofereceriam à gravidez, ela para de tomar os medicamentos. Passam algumas semanas e ela tem uma forte crise "maniforme", fica bastante acelerada, sente-se perseguida e briga com muitas pessoas, inclusive com familiares e técnicos do CAPS. Sandra é internada novamente por um breve período. Ela volta a tomar a medicação e, em cerca de duas semanas, restabelece-se completamente. Após a crise, Sandra desiste da ideia de ter outro filho e segue bem o tratamento no serviço por mais um ano até receber alta. Apesar do bom vínculo com a médica e demais técnicos, a exuberância dos delírios que me relatava nas sessões jamais reaparece nos outros espaços. Ou seja, eles só poderiam se manifestar em uma relação transferencial tão intensa como aquela que caracterizou a sua análise.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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