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Resumo
A autobiografia de Dawn Prince-Hughes é exemplar da função psíquica do espelho-duplo, em seu caso representado por um gorila, que serve como alicerce para sua identificação imaginária com um outro não-humano, o que evidencia a relevância da invenção de um estofo imaginário como apoio para a imagem de si próprio e para o desenvolvimento de uma ilha de competência no autismo.


Palavras-chave
psicanálise; autismo; duplo; interesse; Asperger.


Autor(es)
Mariana Bialer Bialer
é psicanalista, Master em Lettres, Langues, Sciences Humaines et Sociales pela Université Paris 7 Denis Diderot, doutora em Psicologia Clínica pela usp e em Recherches en Psychopathologie et Psychanalyse pela Université Paris 7 Denis Diderot, com pós-doutoramento pelo lepsi/feusp.


Notas

1.     J.-C. Pomeroy, "Subtyping pervasive developmental disorder: issues of validity and implications for child psychiatric diagnosis".

2.     R. Lefort e R. Lefort, La naissance de l'autre: deux psychanalyses, Nadia, treize mois, Marie-Françoise, trente mois.

3.     J.-C. Maleval, L'autiste et sa voix.

4.     D. Prince-Hughes, Songs of the gorila nation: my journey through autism, p. 20.

5.     D. Prince-Hughes, op. cit., p. 93.

6.     D. Prince-Hughes, op. cit., p. 92.

7.     P. Salem, "Imitação e intersubjetividade: modalidades de defesa e prazer".

8.     M.-C. Laznik, Vers la parole. Trois enfants autistes en psychanalyse.



Referências bibliográficas

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Lefort R.; Lefort R. (2008). La naissance de l'autre: deux psychanalyses, Nadia, treize mois, Marie-Françoise, trente mois. Paris: Éditions du Seuil.

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Salem P. (2012). Imitação e intersubjetividade: modalidades de defesa e prazer. In: Coelho Júnior N.; Salem P.; Klautau P. (orgs.). Dimensões da intersubjetividade. São Paulo: Fapesp/Escuta, p. 183-200.





Abstract
The autobiography of Dawn Prince-Hughes exemplifies the psychic function of a mirror-double, in her case a gorilla, which sets the foundation for her imaginary identification with another non-human, hence stressing the relevance of the invention of an imaginary padding in autism in supporting a self-image and the development of an island of competence in autism.


Keywords
psychoanalysis; autism; double; interest; Asperger.

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 TEXTO

A importância clínica do duplo autístico e das ilhas de competência no (auto)tratamento no espectro autístico

The clinical importance of the autistic double and of competency cores in (self)treatment of the autistic spectrum
Mariana Bialer Bialer

Introdução

Atualmente, a clínica do autismo está deparando com as autobiografias escritas por autistas sobre o autismo; são textos redigidos por autistas falantes designados de alto funcionamento, mas também autistas não falantes designados não verbais ou autistas de baixo funcionamento, com quadros de autismo severo ou quadros mistos. Além de os textos escritos serem uma porta de entrada para a clínica dos autistas em severo encapsulamento, podemos evidenciar em diversos textos autobiográficos o fato de que diversos autistas que se tornaram autistas falantes quando adultos manifestavam na infância um quadro de autismo clássico. Essa evolução dentro do espectro autístico presente na literatura de autistas corrobora com a migração possível dentro do espectro do autismo evidenciada nos estudos de Pomeroy[1], que observou a evolução de crianças com autismo clássico para adultos com autismo de alto funcionamento ou síndrome de Asperger. A presença na infância da sintomatologia severa em ambos os casos sinaliza tanto para uma evolução possível em todo o espectro quanto para o fato de que há aspectos estruturais comuns a todo o espectro. Atualmente, o autismo é categorizado como um espectro autístico, o que permite abarcar as manifestações mais extremas e as mais nuançadas do autismo, englobando um percurso possível do baixo funcionamento para o alto funcionamento ou de uma manifestação kanneriana com um quadro mais severo para soluções mais complexas e elaboradas, além de abarcar quadros mistos como autistas em mutismo total, mas que podem se expressar fluentemente pela escrita, manifestando inteligência elevada concomitante aos comportamentos manifestos típicos do autismo kanneriano.

 

O presente texto analisa a importância dos duplos autísticos e dos centros de interesse para a escritora, PhD em antropologia, Dawn Prince-Hughes, autista aspergeriana que escreveu seu livro autobiográfico no qual aborda a importância dos gorilas-duplos para sua vida e em torno dos quais criou seu centro de interesse, que desembocou em sua ilha de competência acadêmica profissional e lhe possibilitou evoluir para um quadro de alto funcionamento no espectro do autismo.

 

Os duplos autísticos estão presentes nos relatos clínicos e autobiografias de autistas, tendo sido inicialmente valorizados pelos Lefort[2], que os consideravam como extremamente importantes para o autista, mas avaliavam que a relação do autista com o duplo seria intrinsecamente destrutiva. Já o psicanalista Maleval[3] foi um importante propulsor do estudo e valorização do duplo como terapêutico para o desenvolvimento do autista, alicerçando-se no fato de que o recurso ao duplo autístico é descrito na literatura dos autistas como auxiliar para a extensão dos pseudópodes do autista, sendo benéfico para a criação dos laços sociais e afetivos no campo do autismo.

 

O uso do duplo é um apoio autoinventado que operacionaliza uma estratégia de (auto)tratamento pelo uso de referências imaginárias para compensar falhas simbólicas no autismo. O outro-duplo pode ser refletido ou copiado como um espelho que, para além da reflexão de comportamentos, reflete vivências psíquicas. Há um contato com o afeto espelhado no outro, o que viabiliza uma dinamização subjetiva, assim como o favorecimento da aquisição e desenvolvimento de funções psíquicas.

 

Já os centros de interesse foram abordados desde os estudos príncipes do autismo de Kanner, Asperger e Bettelheim, e todos os autores enfocavam a importância desse centro como benéfico, alicerçando uma via possível para o autista potencializar um interesse obsessivo em torno do qual pode encontrar uma ocupação profissional e um lugar social. Os conhecimentos localizados em um centro de interesse são tentativas de suplência à falta estrutural do simbólico, do significante-mestre como organizador do mundo. É nesse sentido que Maleval ressalta a importância para muitos autistas de um esforço de categorização, de colocar ordem no mundo, descobrir pontos fixos nas variações e estabelecer constâncias em um mundo caótico sem a organização do significante-mestre. Tais aquisições de conhecimentos, mesmo que possam em alguns casos apresentar uma faceta compulsiva quase estereotipada, são importantes para o autista assegurar que seu mundo não seja demasiadamente caótico e desembocar em uma ilha de competência. Nesse âmbito, dedico o presente texto à análise, na autobiografia de Dawn Prince-Hughes, do lugar terapêutico do duplo autístico e do centro de interesse, questão de relevância dada a importante função que esses elementos exercem na clínica do autismo.

 

Objetos e imutabilidade

Quando criança, Dawn vivenciava diariamente invasões sensoriais frequentes que produziam caos em sua mente, que era invadida por sons, cheiros, cores, sentimentos, e que reverberavam produzindo o caos também no seu corpo. Tais vivências cotidianas exigiam que ela tivesse que sobreviver ao mundo e às pessoas, restringindo muitas vezes sua vida a um registro de invenção de estratégias para lidar com essas situações ameaçadoras. Ela precisava cheirar tudo, fixar o olhar em simetrias, comer sempre a mesma comida e ter à disposição objetos com os quais tivesse uma relação muito especial que promovesse tranquilidade.

 

Havia para Dawn a necessidade vital de imutabilidade, o que era assegurado pela repetição das suas atividades e dos percursos diários. Os objetos pertencentes à repetição tinham que ser mantidos exatamente iguais para que ela tivesse a sensação de segurança e tranquilidade. A repetição envolvida na imutabilidade era de uma exigência existencial para Dawn e qualquer alteração desta envolvia a ameaça de morte. Tais alterações das repetições rompiam o sentimento de familiaridade e segurança e tinham efeitos psíquicos avassaladores, exigindo um intenso esforço para que ela se recuperasse dessas mudanças que equivaliam a um "assassinato"[4].

 

Outra importante estratégia que Dawn inventou na infância para evitar o sentimento de caos era a realização de sobreposições entre a natureza e suas construções de design que remetiam a civilizações passadas e tribos ancestrais. Perto de sua casa, Dawn explorava as profundezas de um túnel subterrâneo e de uma floresta na qual podia concretizar suas construções que remetiam à história de apropriação da natureza pelo homem em culturas passadas diversas. Era a maneira de Dawn se criar um lugar próprio no mundo onde pudesse viver em paz mesmo que somente algumas horas por dia. As árvores, a grama, a terra, todos esses vários elementos da natureza tinham uma personalidade mais apreensível do que a personalidade humana. Além de alicerçar o esboço de uma compreensão dos sentimentos humanos, é na relação com a natureza que Dawn pôde estudar a marcação simbólica da natureza pela humanidade. Nas suas brincadeiras na floresta e nos subterrâneos, Dawn operacionalizava uma marcação pessoal da natureza bruta pelo traço humano ao realizar as suas construções arquitetônicas e inventar seus percursos subterrâneos. O interesse pela natureza também alicerçou o interesse de Dawn em estudar avidamente a National Geographic, procurando nessa revista uma civilização onde se encaixasse e na qual fosse possível encontrar um lugar de paz em um ambiente mais imutável. Essa busca de outra civilização humana da qual pudesse se sentir pertencente impulsionou seu interesse na Antropologia e sua posterior inserção no campo de pesquisa dos gorilas.

 

Incorporando a atitude antropológica, Dawn explorou na sua escola o estudo do comportamento humano e a busca dos traços ancestrais dos primeiros humanos que exploraram o mundo e marcaram-no com seus traços. Nos recreios escolares ela brincava de enterrar as crianças e procurar seus corpos na areia, ou mais precisamente, os representantes dos restos mortais de civilizações passadas. Outra atividade originada da sua atitude antropológica era questionar outras crianças sobre seus comportamentos e seus modos de pensar e sentir a vida. Desse modo, inventou-se um esboço de método para explorar o comportamento humano e tentar compreender a humanidade, e esse método foi aperfeiçoado no seu estudo dos gorilas, em um prolongamento do que já encontramos esboçado nos seus centros de interesse na infância.

 

O duplo-gorila

Quando Dawn começou a frequentar o zoológico, ainda como visitante, ficou particularmente atraída pelos gorilas. Na primeira vez que viu os gorilas, foi tomada por um sentimento de paz, sentou-se perto deles com a divisória de vidro separando-os, não olhou para eles e ficou em uma presença silenciosa: um sabendo que o outro estava lá, mas não falando nada e nem se entreolhando. Os gorilas ficavam próximos uns dos outros, sem precisar verbalizar ou se olhar nos olhos, e a não demanda de ter que responder a algo permitiu-lhe sentir uma tranquila proximidade em companhia dos gorilas. Para além de sentir que estava descobrindo os gorilas, teve o sentimento de que, pela primeira vez na vida, pôde efetivamente colocar seu olhar em um outro ser. Nas interações cotidianas com as pessoas, Dawn ficava tão ansiosa, principalmente em situações que envolviam a dimensão da demanda, como uma conversa da qual se espera que o interlocutor fale com o outro, que ela via as faces das pessoas se fragmentarem e não podia apreendê-las como totalidades. Da mesma maneira, Dawn podia se relacionar com os grunhidos e ruídos vocais dos gorilas, alguns destes dirigidos à comunicação com os outros, enquanto tinha imensa dificuldade com a comunicação oral com as pessoas.

 

Ao contrário do desconforto opressor que vivia na relação com outros humanos, com os gorilas Dawn podia estar na presença deles sem se sentir invadida ou ameaçada. Além da ausência da demanda e da linguagem verbal-oral, Dawn descrevia a importância que tinha para ela a delicadeza dos gorilas - com seus "corpos poéticos"[5] - e com características que remetiam ao fato de eles serem seres ancestrais. O encontro com os gorilas e com a natureza alicerçou a experiência de Dawn estar vivendo a vida esteticamente, equivalente a estar escrevendo poesia através da sua vida. Desse modo, a paz e a calma que podia nutrir dentro de si no contato com seus duplos-gorilas permitiam-lhe encontrar uma fonte de vitalidade na vida que promovia bem-estar e o sentimento estético de beleza.

 

O início da convivência de Dawn com os gorilas lhe viabilizou o sentimento de liberação, de encontrar um espaço de tranquilidade e segurança protegido do perigo e do caos das relações humanas. Tal liberdade, que pode ser remetida à saída da escuridão do isolamento autístico solitário, foi propiciada pela convivência com os gorilas do zoológico, que, ao contrário dos humanos vividos como ameaçadores e imprevisíveis, eram vivenciados como seres sensíveis, delicados, não ameaçadores e previsíveis, o que lhe possibilita alicerçar com eles laços de amizade e amor.

 

A imersão na vida dos gorilas implicou a tomada de uma decisão subjetiva: trabalhar no zoológico e realizar sua formação profissional em comportamento animal e em antropologia é, para Dawn, um ato que a transforma, criando um ponto de mutação marcando um antes-e-depois nesse ato que alterou "a forma e estrutura e espírito"[6] da sua vida. Nesse âmbito, é interessante assinalarmos que o laço de amor pelos gorilas abre para Dawn o caminho para o laço de amor com os humanos.

 

A convivência com os gorilas nutriu em Dawn a possibilidade de adquirir um novo equilíbrio energético e obter um estado de calma e segurança que, embora precários, permitiam-lhe enfrentar seus medos do ambiente escolar e batalhar para voltar a estudar de uma maneira que respeitasse as singularidades do seu funcionamento psíquico. O centro de interesse, além de se desdobrar em um alicerce motivacional em torno do qual Dawn construiu sua vida social e profissional, foi o ponto de apoio para que ela revisitasse sua própria história. Após a construção do seu saber sobre os gorilas, Dawn começou a tentar relembrar sua vida, ao mesmo tempo que se interessava pela história dos antepassados humanos e criava uma linha de continuidade entre ela e esses antepassados.

 

Através do estudo e da convivência com os gorilas, Dawn pôde compreendê-los e identificar-se cada vez mais com eles, utilizando-os seja como modelos para formatar e compreender suas próprias experiências e sentimentos, seja como uma fonte de quem se apropriar características de personalidade através de uma identificação mimética. É no gorila-outro-duplo que Dawn pôde se ver, apreender as emoções, viabilizando uma identificação alicerçada no espelhamento dos gorilas-duplos como modelos identificatórios.

 

A apreensão dos humanos pelo intermédio dos gorilas se tornou uma importante estratégia (auto)terapêutica construída por Dawn, pois ao estudar os gorilas e deles assimilar algumas características, ou, mais precisamente, algumas funções psíquicas, ela pôde se entregar à análise dos seres humanos, discriminando traços e singularidades em cada um, assim como padrões estruturantes que distinguiam os humanos dos demais seres.

 

Através da identificação com os gorilas, Dawn pôde aprender como manifestar seus sentimentos e como manifestar suas emoções em relação aos outros humanos. Ela estudava minuciosamente os comportamentos dos gorilas, registrava todos os detalhes das suas manifestações e o que elas remetiam a vivências sensoriais-emocionais, e a partir desse arcabouço de dados traçava paralelos com o ser humano. Por exemplo, observando que o modo de muitos gorilas expressarem sua empatia pela tristeza do outro era encostar-se ao ombro de quem estava sofrendo, ela aprendeu a utilizar esse mesmo comportamento para manifestar sua preocupação com outro humano em sofrimento. Esses insights adquiridos sobre si lhe viabilizaram explicar para outros humanos o que sentia e aprender a se comunicar e se expressar para eles.

 

A imersão social dos gorilas também era um importante objeto de estudo de Dawn. Os gorilas do zoológico mantinham uma importante vida social constituindo dois grupos familiares distintos. Algumas características dos grupos de gorilas evidenciavam para Dawn que eles tinham personalidades singulares, mas que eram capazes enquanto grupo de funcionar como um todo. Era marcante a importância dos laços estabelecidos dentro dos grupos, a aptidão social para a comunicação e outros comportamentos que faziam parte das dinâmicas sociais. Apesar de a vida em cativeiro implicar anomalias de alguns comportamentos naturais, exigindo um árduo esforço compensatório, todos os gorilas do zoológico tinham aptidões sociais e faziam parte do sentimento de coesão do grupo. Todavia, os gorilas tinham necessidade de estabelecer espaços privados, o que era operacionalizado através do comportamento de se esconder atrás de um objeto ou de uma árvore, ou colocando um objeto fosco sobre a cabeça, desaparecendo aos olhos dos outros. Esse retraimento era balanceado por outros comportamentos exploratórios motivados pela curiosidade e pelo interesse singular de cada gorila. Desse modo, os gorilas tinham a necessidade do espaço privado, mas que não implicava uma segregação e não impedia o laço social e a manutenção do grupo de gorilas, o que evidenciamos ser uma das buscas subjetivas de Dawn. Inserida no mundo dos gorilas, havia a possibilidade de uma solidão compartilhada no laço social, distinta da solidão sem fim que Dawn vivenciava na solidão autística.

 

O gorila Congo foi, segundo Dawn, o primeiro ser que a aceitou plenamente e que a amou como ela era. Ele funcionou como um espelho-duplo com avançadas habilidades sociais e afetivas. É Congo quem consolava Dawn em momentos de tristeza: tendo uma parede de vidros entre eles, ele oferecia seu ombro para que ela se aconchegasse quando estava chorando. A possibilidade de encontrar o holding de Congo se desdobrou no encontro com o sentimento de preocupação, cuidado e proteção. É no apoio da força de espírito invisível de Congo que Dawn pôde compensar sua fragilidade e o que ela designa sua intensa permeabilidade do espírito. Esse encontro foi mutativo para Dawn; ela tomou, novamente, uma importante decisão subjetiva: a de que ia expressar o seu sofrimento e compartilhá-lo com o mundo dos outros humanos. É pelo acolhimento que Congo deu ao seu choro silencioso e o reconhecimento do seu sofrimento que Dawn pôde sair do que descreve ser sua prisão, onde se refugiava para se proteger, mas ao preço de perder sua liberdade. Ter sido cuidada por Congo, por ele ler um pedido silencioso nas suas lágrimas, permitiu-lhe sentir segurança para se expor para os outros e decidir se arriscar, revelando suas feridas e seus sofrimentos.

 

Embora Congo seja o principal modelo identificatório de Dawn, outros gorilas também funcionaram para seu espelhamento mimético. Por exemplo, Dawn se identificava com Amanda, uma gorila fêmea que tinha vários comportamentos masculinos e se comportava independente do seu gênero sexual ou do que era esperado dela socialmente. Ela também se identificava com Kiki, um gorila aprisionado filhote, retirado da vida selvagem após presenciar sua família ser assassinada, mas que, apesar desse sofrimento, tinha uma personalidade tranquila, sem ressentimento e que só era tomado por raiva quando uma intervenção era exigida para retomar o equilíbrio da sua família ou proteger seus amados.

 

Outros comportamentos dos gorilas, por exemplo, suas estratégias para evitarem ficar molhados e o desconforto que sentiam com essa sensação tátil, assim como outras modalidades de evitação de sons em demasia, também forneciam a Dawn modelos para desenvolver suas próprias estratégias para lidar com situações de hiperestimulação sensorial. Dawn referia observar e analisar todas as minúcias dos comportamentos para criar seu repertório da linguagem dos gorilas e poder compreendê-los. Ela aprendeu a reconhecer quando os gorilas estavam felizes, tristes, brincando, com medo, sentindo-se ameaçados, ameaçando, evitando confronto, oferecendo carinho, cuidando, em luto, oferecendo conforto, demonstrando interesse sexual, convidando outro para compartilhar algo.

 

Para compensar suas dificuldades com o campo imaginário, Dawn inventou novas maneiras de poder se comunicar com os humanos e utilizou vários dos comportamentos aprendidos mimeticamente com os gorilas, por exemplo, como deveria ser a postura do seu corpo para traduzir desconforto, interesse ou colocar o outro à distância. Desse modo, evidenciamos como ela desenvolveu uma função psíquica que lhe era outrora inacessível: a possibilidade de ler o corpo dos humanos. Por meio da observação dos comportamentos dos gorilas, Dawn pôde compreender como manifestavam as emoções de raiva, preocupação, reciprocidade, humor, compaixão, motivação, religiosidade e empatia, e a seguir, transferiu esse método de análise do comportamento dos gorilas no zoo para a análise do comportamento de outros humanos.

 

É pela identificação com os gorilas que Dawn sentiu vontade de compartilhar sua vida com outro humano. Ela estabeleceu, então, um laço amoroso com uma jovem mulher com quem pôde compartilhar suas experiências cotidianas. Tara a ajudava a interpretar o comportamento dos outros humanos, auxiliando-a a expandir seu repertório de informações sobre a emoção e os comportamentos humanos. Se, em um primeiro momento, o mundo de gorilas se tornou o único mundo compartilhado viável para Dawn, permanecendo separado do mundo dos outros humanos, nesse segundo momento, ele se desdobrou na possibilidade de Dawn compartilhar a sua vida íntima com a humanidade, criar uma família com Tara e o filho delas, criando-se um novo lugar no mundo dos humanos. Nesse contexto, podemos afirmar que os gorilas foram uma ponte indispensável para que ela pudesse se abrir para o mundo dos humanos. A segurança e a calma que pôde ter com os gorilas, o sentimento de poder compreender e ser compreendida, o modelo identificatório que eles forneceram e de quem pôde se apropriar de características psíquicas é que lhe permitiram se abrir para os laços afetivos humanos.

 

O espelhamento pelo intermédio
do duplo no autismo

Na literatura escrita por autistas, notamos a invenção de anteparos diversos que propiciaram um espelhamento por meio do qual cada autista pôde se apreender e compreender seu funcionamento psíquico, assim como as formas de relação com o mundo e com os outros. Em Dawn, notamos que houve a necessidade de invenção desse dispositivo através de seus duplos-gorilas por meio dos quais ela pôde ter acesso à própria imagem e às diversas manifestações corporais sensoriais. A função psíquica do espelhamento é premente na literatura escrita por autistas, sendo interessante nesse âmbito realçarmos a afirmação de Salem[7] de que esse copiar o traço do outro favorece a emergência de uma forma de organização psíquica pré-representacional. O imitar ancora uma forma de se perceber o outro que alicerça o estrato/anteparo para uma apreensão de si e do outro. O experienciar o traço do outro sob a forma imitativa pode ancorar funções constituintes da subjetividade, uma vez que se operacionaliza vivenciar no próprio corpo um comportamento, gesto, emoção, voz etc., o que é corroborado pela ênfase, nos textos autobiográficos de autistas, da importância desses espelhamentos como alicerces para a formação do "eu" e da apreensão de si e dos outros. O trabalho imitativo possui uma importante função psíquica no autismo como alicerce da constituição psíquica e da apreensão do próprio corpo no laço com o outro imitado, e é nesse enlace do eu/outro na ação imitativa que diversos autistas relatam poder incorporar o traço do outro, construir a imagem corporal e acessar o corpo próprio.

 

Na clínica do autismo, a psicanalista Marie-Christine Laznik[8] havia apontado com pertinência a premência da retirada maciça de investimentos no mecanismo defensivo de elisão, que retrata o não investimento e o apagamento da percepção na clínica com autistas com sintomatologia clássica, caracterizando a existência de traços mnêmicos que não são investidos pelo autista, não podendo desembocar em um registro associativo ou em representações. A literatura de autistas também corrobora com essas formulações, retratando a falha no investimento de traços mnêmicos que poderiam originar, posteriormente, representações. Assim como Laznik na sua prática clínica com pequenos autistas procura estabelecer investimentos que não puderam ser estabelecidos, os autistas-escritores relatam a existência desses traços não investidos que podem servir de estrato para um posterior investimento. A literatura de Dawn nos demonstra um percurso possível do mecanismo de elisão, pertinentemente aprofundado por Laznik em relação à clínica dos autistas encapsulados, para um mecanismo de soluções mais elaboradas. As narrativas descrevem um percurso importante das primeiras manifestações autísticas em quadros kannerianos nos quais predominava o sentimento de não existência, uma descarga energética maciça, a impossibilidade de investimento nas representações, o desinvestimento da função perceptiva, o não registro da alteridade, para outras manifestações que implicam uma nova organização do aparelho psíquico, envolvendo mecanismos de defesa concomitantes à gênese e ao desenvolvimento do ego, a instauração da imagem de si e do outro, o surgimento dos conflitos psíquicos a partir das tensões psíquicas, o registro da alteridade. Notamos em Dawn que, após a incorporação do outro-gorila na estruturação e dinâmica do próprio psiquismo e a inscrição da alteridade, há a incorporação das características desse outro, alter ego, ancorando uma construção egoica composta de diversos traços incorporados, na origem de uma Gestalt que altera estruturalmente o aparelho psíquico. Essa apropriação dos traços do outro operacionaliza uma identificação que alicerça no aparelho psíquico o precipitado constituído por esses traços dos outros que podem ser investidos e que exercem um papel organizador e operacionalizador de uma nova dinâmica no aparelho psíquico. Nesse contexto, os processos identificatórios viabilizados pela relação de Dawn com seus duplos-gorilas propiciaram uma nova dinâmica psíquica: a identificação com os gorilas, em especial com Congo, imprimiu a alteridade no aparelho psíquico, e essa marcação pelo outro é premente no percurso das autobiografias nas quais a identificação imaginária com os outros - objetos, animais, pessoas etc. - viabilizou a incorporação do outro de um modo transformador do psiquismo, alterando a dinâmica e a estrutura do aparelho psíquico que existia previamente.

 

Considerações finais

A importância do duplo na ancoragem de uma identificação mimética é marcante em Dawn e em inúmeras autobiografias publicadas por autistas. Descrevemos no caso de Dawn quão perturbadoras eram as alterações sensoriais que impossibilitavam ou dificultavam sua apreensão de si e dos outros, e que desembocou na sua dificuldade do estabelecimento dos processos identificatórios, da apreensão de si, da apropriação do corpo próprio e do estabelecimento das relações com os outros como alteridades. Nesse contexto, o recurso ao duplo se mostrou indispensável para a ancoragem de um espelhamento (nos gorilas) que ancorou sua construção da imagem de si e dos outros humanos, além da viabilidade de apropriação de traços que não haviam sido traduzidos para o campo representacional e da instauração de novas funções psíquicas e de escudos protetores que possibilitam controlar o excesso de invasões sensoriais.

 

Espelhada nos gorilas, Dawn pôde se apropriar dos traços de alteridade e estabelecer um percurso identificatório através da incorporação dos outros e da apropriação dos traços de si que permaneciam em um não registro ou em um estado de espera um não representável que lhe permite desenvolver a instância egoica por meio do novo precipitado de identificações e incorporação dos traços do outro-gorila, ancorando uma dinamização psíquica.

 

A leitura da autobiografia de Dawn evidenciou a importância existencial que teve para ela a relação com seus duplos e seus centros de interesse, assegurando o sentimento de proteção, contribuindo para a constituição do campo imaginário, principalmente na apreensão dos comportamentos e dos afetos, e alicerçando suas estratégias de compensação que lhe permitiram ir além de uma adaptação funcional, podendo alicerçar sua existência em coisas que a motivavam, sendo capaz de viver a vida mais livremente, construindo seu percurso singularizado. As estratégias (auto)terapêuticas de Dawn surgem da sua decisão subjetiva e colocam em evidência a importância dos duplos autísticos e dos centros de interesse como balizas para o nosso manejo clínico no campo do autismo, sustentando estes como criações que o autista pode inventar e que podem ser extremamente terapêuticas.


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