EDITORIALEditorialLetter from the editors
Foi com alguma surpresa e encantamento que vimos se delinear este número de Percurso. Escolhida a tradução, os textos que sucessivamente chegavam iam estabelecendo um produtivo diálogo, ora dando continuidade a um mesmo tema, ora permitindo conexões interessantes, ora causando inquietação. A partir de estilos, perspectivas e focos diferentes, o conjunto de artigos interrogava e fazia a psicanálise trabalhar, ao exigi-la a partir de sua especificidade, possibilidade de se rever e competência em alargar seu campo de abrangência. Ao mesmo tempo, os artigos traziam questões éticas. Do ponto de vista teórico, é exigido um questionamento sobre quais de nossas formulações, contingentes a determinados momentos da história e da cultura, passaram a ser tomadas como verdades universais, impondo obstáculos difíceis de ultrapassar na escuta clínica. É este o mote da conferência proferida por Silvia Bleichmar em 2005, "O que resta de nossas teorias sexuais infantis?", cujas interrogações mostram-se de extrema atualidade.
Os artigos "Até tu, Pontalis?" e "Da transexualidade às transidentidades" dão continuidade a essas perguntas. A crítica ao binarismo de gênero como crivo para classificar e adequar configurações sexuais singulares exige o questionamento de determinados modelos teóricos e nos indica a positividade e a abertura potencial trazidas pelo enfrentamento das questões que as novas sexualidades e transformações identitárias nos apresentam.
Como contraponto a este campo de alargamento de fronteiras e despatologização das novas práticas e identidades sexuais, o artigo que investiga o funcionamento psíquico do pedófilo surge como um catalisador inquietante, ao pôr em foco uma forma de exercício da sexualidade que causa efeitos devastadores na criança.
Viver em um mundo em que seja possível ter experiências reconhecidas é fundamental, e determinadas situações expõem o desafio que aí possa existir. O artigo sobre a constituição das fronteiras do eu e as consequências de limitações significativas nesse processo ressoa junto ao texto que aborda os caminhos através dos quais um sujeito com autismo pode traçar seu acesso ao mundo de experiências compartilhadas. Da mesma forma, a narrativa da experiência subjetiva de pais e criança diante da deficiência potencializa o texto que aborda o enfrentamento dos obstáculos invisíveis que o preconceito coloca para os sujeitos. Cada uma das leituras nos conduz a este trajeto tão presente na letra de Freud, que vai da estranheza ao reconhecimento do que é comum a todos nós.
Do ponto de vista ético, a escuta singular dos movimentos de subjetivação possíveis a cada um é colocada em tensão pelo necessário posicionamento diante de situações violentas e traumáticas, muitas das quais conjugam evidentes atrocidades do ponto de vista social com tessituras invisíveis em corpos e mentes.
A investigação sobre nossos pressupostos e a ousadia do avanço requerem a reflexão compartilhada. A escrita, por sua permanência, propulsiona esse movimento, tornando possível a circulação de ideias e o trabalho sobre elas.
Boa leitura!
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