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Resumo
Resenha de Alfredo Naffah Neto, Casta Diva – Callas e a pulsão de morte, São Paulo, Eduel e Escuta, 2011, 135 p.


Autor(es)
Elisa Maria de Ulhôa Cintra
é psicanalista, professora da Faculdade de Psicologia da PUCSP e do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUCSP. Autora de Melanie Klein: estilo e pensamento.


Notas

1.     P. Gay, Freud - uma vida para o nosso tempo, São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 257.

2.     A. Green (1992), O desligamento. Psicanálise, antropologia e literatura, Rio de Janeiro, Imago, 1994.

3.     L.C. Figueiredo, Cuidado, saúde e cultura, São Paulo, Escuta, 2014, p. 9-10.

4.     A. Green, "Pulsão de morte, narcisismo negativo, função desobjetalizante", in A pulsão de morte, São Paulo, Escuta, 1986, p. 58-59.

5.     Artigo de A. Naffah Neto, in Outr'em-mim - Ensaios, crônicas, entrevistas, São Paulo, Plexus, 1988.

6.     A. Naffah Neto, "Para além da morte, o amor", Percurso - Revista de Psicanálise, São Paulo, ano IX, n. 18, p. 33-38, 1o semestre 1997.

7.A função do falso self na produção de uma diva: o caso de Maria Callas", Natureza Humana, São Paulo, v. 9, p. 9-26, 2007.


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 LEITURA

Destinos da pulsão de morte e as trezentas vozes de Maria Callas [Casta Diva – Callas e a pulsão de morte]

Vicissitudes of the death Instinct and the three hundred voices of Maria Callas
Elisa Maria de Ulhôa Cintra

Nos dois ensaios que compõem este livro, Alfredo Naffah discorrerá sobre o aspecto trágico do amor romântico, através de duas figuras femininas do mundo da ópera e de seus intérpretes. No primeiro ensaio, dedica-se a pensar a heroína da ópera Norma, personagem principal da obra de Bellini e Romani. No segundo, trata da cantora lírica Maria Callas, uma das maiores intérpretes de Norma, que, além de seu talento como cantora, é lembrada pela qualidade de sua presença no palco e de sua interpretação das emoções.

 

A origem do livro de Naffah foi um seminário por ele ministrado no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, no qual decidiu pesquisar os destinos da pulsão de morte, quando acontece o rompimento de um vínculo amoroso romântico. Seu grande conhecimento de óperas e, por outro lado, a teoria da pulsão de morte que ele estava começando a criticar, ao estudar Winnicott, levaram à curiosidade de descobrir e revelar a potência teórica da noção de pulsão de morte na análise de crimes passionais, suicídios e assassinatos, cometidos de forma descontrolada em reação à dor de separações amorosas.

 

Desde o princípio o autor admite algo que nos leva a pensar nos limites de um projeto como este: "considerar que nós, psicanalistas, possamos interpretar obras de arte talvez seja pura pretensão; seria mais verdadeiro dizer que são elas, as obras, que nos interpretam e nos interpelam, deixando em nós as marcas do seu impacto fulgurante" (p. 15).

 

Naffah não se contenta então, de modo algum, com a simples aplicação da metapsicologia a uma obra de arte, mas deixa-se tocar profundamente pela obra e busca, com ajuda da psicanálise, alguma forma de descrever o impacto dramático da obra, as ressonâncias transferenciais que nele foram despertadas, que convocam o campo de sua passionalidade vivida. Trata-se de um autor da psicanálise pensando seus conceitos de forma crítica, um ser apaixonado pela ópera e pelo talento da cantora Maria Callas, conhecedor de música e cantor, ele próprio; e alguém consciente dos riscos desse seu empreendimento. Ao colocar-se em busca dos traços da pulsão de morte na personagem da ópera e na história de vida de Maria Callas, Naffah alerta-nos para uma questão decisiva: "A função interpretativa do psicanalista só pode se realizar, no sentido mais rigoroso do termo, quando se debruça sobre um discurso vivo, a partir das associações livres que brotam dele, coisa que a obra de arte não pode nos oferecer" (p. 15-16).

 

Ele considera, na verdade, que a sua interpretação de uma obra de arte seria a transposição para o campo da narração das marcas do impacto fulgurante deixado pela obra. O que resulta desse trabalho em campos tão heterogêneos é uma leitura pessoal da obra de arte, que comporta a dimensão estética original na qual o autor foi capturado e que se entrelaça com seus conhecimentos de metapsicologia, com a sua prática psicanalítica singular e com a sua paixão pela ópera e seus conhecimentos teóricos e práticos de música que transparecem em todo o livro e no glossário de termos musicais que ele nos presenteia ao final do livro.

 

Temos então dois âmbitos de continência e trocas frutíferas: a teoria psicanalítica abre um espaço de continência para a obra de arte e para o vivido, dando-lhe novos nomes, figuras e ressonâncias. O vivido através da obra de arte, no entanto, não cabe de forma justa na teoria, por ser mais vasto que aquela: por um lado, essa relação permite que a teoria desaloje sentidos cristalizados no vivido, e, por outro, a articulação com a obra de arte obriga a teoria a expandir-se, a respirar, a assumir uma forma vivente. André Green[1] já apontou que toda interpretação de uma obra de arte comporta o campo do impacto transferencial que tivemos com ela.

 

Do outro lado, a captura estética que tem lugar na fruição da obra de arte funciona como um ninho, abrindo um lugar de continência para o vivido pessoal do autor e para o que foi aprendido em sua experiência teórica e clínica. A ideia é que a teoria, aninhada assim nesse campo mais vasto e universal da experiência estética, possa se nutrir, se vitalizar ou vir a revelar suas contradições e se deixar eventualmente negar. Ao lado de outros autores, considero que um exercício de psicanálise aplicada como este que Naffah realiza em seu livro ajuda a aprender e ensinar psicanálise:

 

... enredos e personagens são "deitados no divã" para que neles o analista encontre e reencontre as verdades já acessadas e elaboradas pela psicanálise, com prejuízo evidente para a experiência estética ela mesma com as obras em exame. É um custo calculado: o que se perde no campo da experiência estética, ganha-se no campo da clínica e da difusão do pensamento psicanalítico[2].

 

Desde o primeiro ensaio, Naffah adverte-nos que vai apoiar-se na interpretação da pulsão de morte feita por André Green, ou seja, a pulsão de morte em termos de sua função desobjetalizante, pois para Green[3] é preciso pensar a pulsão no campo das relações de objeto; para esse autor, o objeto é o revelador das pulsões: "Ele (objeto) não as cria (as pulsões) - e, sem dúvida, podemos dizer que (o objeto) é criado por elas, pelo menos em parte - mas é a condição de seu vir a existir".

 

Por outro lado, é a função objetalizante da pulsão de vida que pode transformar em objeto tudo que recebe o investimento libidinal, a atenção, o desejo, o interesse de alguém. No limite, o próprio eu e ainda o próprio amor, ou o investimento de amor, podem se tornar objetos de investimento. É possível apaixonarmo-nos pelo estado de paixão.

 

Para Green, a manifestação mais característica da pulsão de morte é sua potencialidade contrária: a de desinvestir o amor, o que provoca a sua transformação em ódio e destrutividade. Na vigência da relação amorosa, a pulsão de vida absorve em si uma parcela da pulsão de morte. Depois da separação, entretanto, se não for possível encontrar um novo objeto da pulsão amorosa, ou quando deixa de existir tout court a possibilidade de um investimento significativo, aí acontece o processo de desobjetalização e a pulsão de morte deixa de ser absorvida pela pulsão de vida e tende a ser liberada em termos de forças destrutivas.

 

No primeiro ensaio, "Casta Diva: destinos da pulsão de morte na Norma de Bellini", a descrição de "uma relação amorosa vivida como complementariedade totalitária e aspirando à completude absoluta" (Naffah, 2011) corresponde à ideia de amor romântico, ao mesmo tempo idílico e infernal, na medida em que a plenitude é tão absoluta que tende a quebrar-se com facilidade e o único destino possível para essa forma de amor parece ser a morte conjunta dos amantes, pois as demandas de união e de envolvimento absoluto transformam-se em opressão e aprisionamento. O autor descreve de que modo os componentes negativos das emoções são apagados e o objeto idealizado é construído por cima do ódio recalcado, em uma espécie de sofreguidão que visa manter a hegemonia das forças de objetalização e o apagamento das forças que levariam à separação, momento no qual a pulsão de morte tornar-se-ia pulsão destrutiva.

 

Mantém-se um alto grau de tensão trágica, ao longo desse primeiro ensaio, especialmente no item "Pulsão de morte: o ódio destrutivo eclode", em que Naffah relata a história de Norma, a grande sacerdotisa druida, no momento em que descobre a traição do amante, através da confissão de Adalgisa, seduzida pelo mesmo homem e que vinha pedir ajuda à sua superiora, a própria Norma, com o intuito de abandonar os seus votos de sacerdotisa e fugir com Pollione. Nas páginas seguintes, até o fim do ensaio, o leitor se vê capturado, sem fôlego, na escalada de sadismo, ciúme e desejo de vingança de Norma, até o momento em que, precisando apontar, diante de toda a comunidade reunida, quem seria a sacerdotisa perjura, que infringiu os votos sagrados, atraiçoou a pátria e ofendeu os deuses, Norma surpreende a todos com a reviravolta impressionante e belíssima que acontece ao final da história.

 

O segundo ensaio:
Maria Callas e a sombra de Norma

Nesse ensaio, a vida pessoal e profissional de Maria Callas é pensada à luz de uma insistente presença da pulsão de morte. Trata-se ainda da questão do amor romântico, mas agora os personagens fazem parte da vida real. Naffah relata o processo de construção da cantora lírica La Callas que acaba assumindo uma realidade humana ficcional, como se a vida se transformasse em ópera. Antes, porém, relata a história de vida da menina Maria, nascida em 1923, logo depois da morte de um irmão muito desejado pela mãe e da irmã mais velha, que era preferida a ela; teve em sua infância pouca atenção dos pais, e ocupava um lugar de certa invisibilidade. A descoberta do seu talento musical torna-a visível para a mãe severa e leva ao desenvolvimento de uma artista que trabalhava de forma intensa e concentrada, o que é algo bem diferente da imagem de uma artista caprichosa e extravagante que muitos têm dela. Tudo isto vai sendo narrado paralelamente aos encontros e desencontros afetivos de Maria Callas, desde o primeiro casamento até o encontro com Onassis e a separação dele.

 

Ao mesmo tempo, o autor reúne muitas informações e opiniões de peritos a respeito do talento vocal de Maria Callas. Sua voz abarcava quase três oitavas, e não era considerada por alguns uma bela voz no sentido clássico. Entretanto, a capacidade dramática de exprimir emoções, por exemplo, como acontecia com o ódio em Norma e em Medeia, tornou suas interpretações singulares e inimitáveis.

 

Uma cantora lírica do século XX, Lilli Lehmann, afirmava que era mais fácil cantar três Isoldas em seguida do que uma única Norma. Cantar Norma exigia precisão e agilidade nos trinados e arpejos e um excepcional talento dramático, e esse desafio foi enfrentado por Callas, nas suas oitenta e quatro apresentações dessa ópera, ao longo da vida. Entre muitos conhecedores de ópera, "quando Tullio Serafin ouviu Callas executando - com absoluta perfeição - coloratura e ornamentos, com seu belo timbre de soprano dramático, teve certeza de que havia encontrado a Norma que procurava" (p. 98).

 

Ao mesmo tempo, o autor levanta a hipótese de que por trás da força e da majestade de Callas escondia-se uma mulher frágil, angustiada e insegura. Quando perdeu sua voz, em 1976, perguntou à irmã: "Sem minha voz, quem sou eu?" (p. 122). Ela viria a morrer um ano depois.

 

Podemos reafirmar que em momento algum Alfredo Naffah pretende que a leitura psicanalítica possa revelar a verdade seja da obra de arte, do personagem romântico Norma ou de Maria Callas, "mas simplesmente extrair uma nova luz dos mesmos". Considera que o amor romântico e seus impasses, a vivência de paixões que levam duas pessoas a sentirem-se completamente fundidas uma na outra, conduzindo a um estado de aprisionamento e submissão, é uma realidade da vida cotidiana e que pode levar a crimes passionais, a filicídios cometidos para se vingar do parceiro, em razão de ter sido abandonado.

 

Mas, acima de tudo, os ingredientes da história de Norma e aspectos trágicos da vida de Maria Callas introduzem-nos ao tema da violência pulsional e passional que precisa ser compreendida e transformada, fazendo um apelo a que a psicanálise ofereça recursos para compreender e favorecer tais transformações. A pesquisa das teorias psicanalíticas pode ajudar a conter e dar forma ao campo do vivido, reconhecendo-se que a função das teorias psicanalíticas é dar nome, figura e memória às experiências emocionais, ao mesmo tempo em que servem para desalojar o já sabido e para aproximar-se, sem jamais ter acesso àquela realidade última do vivido, que Bion denominou de O, que permanece para sempre inacessível e irrepresentável.

 

Considero que a leitura desse livro de Alfredo Naffah ajuda-nos a dar corpo vivo a uma noção abstrata como a de pulsão de morte, a pensar a psicopatologia do amor romântico, e oferece-nos dois ensaios que nos apresentam às trezentas vozes [4] de Maria Callas, à densidade trágica da ópera Norma e da vida de sua cantora, além de realizar uma grande pesquisa bibliográfica no campo da psicanálise, das biografias de Callas e da arte da ópera. Podemos ainda enviar o leitor a um outro texto de Naffah Neto, publicado no décimo oitavo número da Percurso [5], no qual trabalha a transformação da dor em ódio, quando, diz-nos o autor, falta uma envergadura interna capaz de acolher a dor. Essa transformação da dor em ódio acontece no amor romântico, nas separações passionais, e é muito nítida nas óperas Norma e Medeia. E se o leitor desejar mais, poderá também consultar a leitura winnicottiana da vida e carreira de Maria Callas[6] realizada por Alfredo Naffah. Precisa de mais alguma coisa?


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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