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Resumo
Resenha de Tales Ab’Sáber, Ensaio, fragmento – 205 apontamentos de um ano, São Paulo, Editora 34, 2014, 144 p.


Autor(es)
Renato Tardivo
é psicanalista e escritor. Mestre e doutor em Psicologia Social pela usp. Pós-doutorando em Psicologia da Saúde (Metodista/capes). Autor, entre outros, de Porvir que vem antes de tudo– literatura e cinema em Lavoura arcaica.

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 LEITURA

Rumo ao impensado [Ensaio, fragmento – 205 apontamentos de um ano]

Towards the unthought
Renato Tardivo

Resenha de Tales Ab'Sáber, Ensaio, fragmento - 205 apontamentos de um ano, São Paulo, Editora 34, 2014, 144 p.

Ensaio, fragmento - 205 apontamentos de um ano apresenta um modo inusitado de pensar a cultura. Conforme indicação do título, a obra extrapola as fronteiras de gênero, e é justamente esse o seu mérito: reunir forma ousada e conteúdo polêmico.

Para começo de conversa, é bom alertar, não se trata da aplicação de conceitos da psicanálise a questões culturais ou históricas. Com efeito, trata-se de ideias pensadas por um psicanalista, mas o interesse do autor aqui não é a teoria psicanalítica. Qual o interesse então? Poderia dizer: a influência de José de Alencar cronista no Machado de Assis ficcionista, o pensamento crítico de Roberto Schwarz, a obra de Caetano Veloso, o lulismo, o mundo contemporâneo, a clínica psicanalítica... E é isso tudo, mas não só. Por meio de argumentações originais, constatações sensíveis e erudição histórica, o invisível do livro alude aos mecanismos de construção de suas próprias teses.

Os 205 apontamentos são separados por espaçamentos entre os parágrafos - não há divisão em capítulos. Há temas que retornam, sendo construídos, portanto, em alternância uns com os outros e consigo mesmos. Tudo se entrelaça. Algo próximo à espinha dorsal do livro (não se pode falar propriamente em espinha dorsal, por conta da fragmentação) talvez seja a tese de que a obra madura de Machado de Assis, a partir das Memórias póstumas de Brás Cubas, foi influenciada pelas crônicas de José de Alencar, mais exatamente as reunidas no livro Ao correr da pena (Ab'Sáber analisa uma delas, incluída como anexo deste Ensaio, fragmento):

 

Machado de Assis pode ter lido Ao correr da pena e ter sido influenciado conscientemente pela forma de apresentação e ocupação do espaço literário e público do jovem José de Alencar, que tem vínculos íntimos com a sua obra-prima [Memórias póstumas de Brás Cubas]. (p. 112)

 

Nesse caso, embora Machado de Assis jamais tenha explicitado essa influência, Tales Ab'Sáber argumenta convincentemente que se trata de uma possibilidade não pouco provável. Mas o autor vai além:

 

Ou [Machado de Assis] pode ter chegado sozinho, de modo inconsciente, pela pesquisa, observação e avaliação do tempo, àquela mesma forma, que para além de todo o radical talento e habilidade do escritor, também existia concretamente lá, em seu mundo. Este segundo caso é ainda mais interessante. (p. 112)

 

E este segundo caso é ainda mais interessante, uma vez que corroboraria o próprio movimento empreendido pelo livro: é a combinação entre fragmentos diversos que compõem a história. Com efeito, o mergulho na obra desses dois escritores - e na de outros - que viveram e pensaram o Brasil em diferentes períodos vai desordenadamente - como é próprio aos processos históricos - preparando terreno para a reconstrução de elementos da história do país, desconstruindo o discurso hegemônico. Nessa medida, por exemplo, a leitura da poética de Caetano Veloso (nosso Goethe?), tomada em seu lirismo dialético, é extremamente inventiva.

Mas, além das argumentações mais extensas, que se aproximam da forma ensaio, os 205 apontamentos incluem observações incisivas, condensadas e poéticas: aforismos, microcrônicas, fragmentos do cotidiano, flashes de pensamento, relatos de pacientes. Conquanto presentes ao longo de todo o livro, é no início e no fim que os parágrafos curtos mais aparecem. Alguns casos: "Se concentra no seu silêncio. Intensifica a vergonha de ser humano. E anda pela rua" (p. 18); "E a felicidade explícita dos pobres?" (p. 18); "De um paciente: ‘Dá para ver nos seus olhos o quanto eu estou triste'" (p. 21); "E a felicidade obscena dos ricos?" (p. 32); "Um psicanalista não decodifica e nomeia um passado, que pode ser pensado. Ele permite que o sentido do que não aconteceu aconteça, o que é muito mais difícil do que as palavras sabem alcançar" (p. 33); "Viajamos para lembrar o que de melhor se chegou a realizar em algum outro mundo e que na experiência histórica do nosso foi esquecido" (p. 114).

A viagem, nesse último fragmento citado, talvez diga algo a respeito da viagem a que o livro se lança: parte do instante, investiga o passado (histórico, cultural, social) e retorna ao instante: instante do Facebook, da música de Criolo, da possibilidade sempre próxima de colapso econômico e político, das mesmas novidades...

As marcas e inscrições do livro desvelam, ainda que indiretamente, o processo de sua própria construção: os pensamentos já estão lá, à espera de serem pensados, como afirmava Bion. E, assim, sublinham a importância da tomada de consideração, para o ofício do psicanalista, de sua humanidade.

Ao debruçar-se sobre si mesmo, é o impensado do livro que, em toda a sua potencialidade, emerge, ao encontro, talvez, do "estranho afeto, o duplo encontrado" (p. 112). Afinal, "na hora da perda de si mesmo no morto surgem palavras que nunca foram ditas. Elas são anteriores à consolidação e à escolha da rede de palavras fundamentais de cada um e lembram aspectos de nós mesmos que nunca se realizaram, que nunca chegamos a viver" (p. 61). Mas que já estavam lá.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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