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Resumo
esenha de Luís Claudio Figueiredo, Cuidado, saúde e cultura. Trabalhos psíquicos e criatividade na situação analisante, São Paulo, Escuta, 2014, 167 p.


Autor(es)
Ines Loureiro
é socióloga e psicóloga, mestre em Psicologia pela PUC-SP, e doutoranda na mesma instituição.

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 LEITURA

“Cuidado, obras” [ Cuidado, saúde e cultura. Trabalhos psíquicos e criatividade na situação analisante]

“Caution, works”
Ines Loureiro

A interjeição "cuidado" costuma ser usada como advertência - perigo à vista! Mas nem de longe o alerta se aplica ao novo livro de Luís Claudio Figueiredo: a placa "Cuidado, obras" convida à visitação de suas inspiradas reflexões sobre o tema do cuidado - reflexões ainda em curso e agora estendidas às produções culturais. Cuidado, obras: vejam como pode ser belo, o pensamento...

 

Ao contrário da sinalização eficaz, nossa placa é repleta de ambiguidades. Poderia, por exemplo, ser a abreviação de um título alternativo para o livro - "O cuidado, os trabalhos e as obras", entre tantas possíveis denominações sugeridas pelas expressões que constam da capa: "Trabalhos psíquicos e saúde: o cuidado na situação analisante e na cultura", "Cuidado e trabalhos psíquicos: busca da saúde, na situação analisante e na cultura", e assim por diante.

 

O livro é composto por cinco ensaios escritos entre 2010 e 2014, dois dos quais inéditos. Mal o abrimos e já nos damos conta de que há muito... trabalho pela frente. Trabalho do leitor, convocado a adentrar numa espessa rede de referências teóricas e a se deparar com complexas articulações entre esferas habitualmente tratadas como contrárias - corpo/mente, saúde/adoecimento, individual/coletivo, intra/interpsíquico, clínica/metapsicologia, tratamento psicanalítico/outras práticas de cuidados. Trabalho, também, da obra sobre o leitor; conforme veremos adiante, é bastante possível que, devido a certas qualidades que lhe são inerentes, o livro venha a exercer efeitos psíquicos "terapêuticos" sobre quem se entregar a sua leitura. Além, é claro, do trabalho do autor, fruto de uma longa trajetória teórico-clínica particularmente consistente, refinada e criativa.

 

I

Comecemos por este último aspecto. Pode-se organizar as mais recentes publicações de Luís Claudio Figueiredo (LCF) em duas linhas paralelas. Por um lado, a vertente que reúne os estudos monográficos, na forma de livros ou artigos, sobre alguns grandes nomes que elegeu como interlocutores, tais como Klein, Winnicott, Bion, Balint, Fairbairn e Green. Na outra vertente estariam os ensaios temáticos que mobilizam esses e outros autores contemporâneos - a exemplo de Bollas, Ogden, Pontalis e Roussillon - para pensar sobre questões clínicas, metapsicológicas ou histórico-culturais. Aos poucos e cada vez mais explicitamente, tais ensaios vêm convergindo para a configuração de uma teoria geral do cuidado. O livro que ora temos em mãos representa um marco decisivo nesse trajeto também cuidado(so), pois que lentamente amadurecido e burilado em cada um de seus componentes, ao longo de extensas discussões com os pares.

 

Os primeiros esboços dessa teoria geral do cuidado despontam por volta do ano 2000, em Ética e técnica em psicanálise, volume em coautoria com Nelson Coelho Jr., quando surgem as noções de presença, implicação e reserva. Em Elementos para a clínica contemporânea (2003) e As diversas faces do cuidar (2009) prossegue a investigação multitemática a partir de um mesmo ângulo: o interesse pelos chamados casos-limite. A prática com esses pacientes impõe à clínica contemporânea a necessidade de repensar o enquadre psicanalítico, as diferentes posições do analista em suas tarefas de escuta, manejo e interpretação. Os não neuróticos exigem também o crescente aperfeiçoamento dos instrumentos teóricos e a formulação de uma metapsicologia mais "rente" à clínica - paradoxo apenas aparente, na medida em que o analista/agente cuidador é concebido como um objeto secundário, instituído segundo os moldes das relações com os objetos primários. Daí a ênfase na exploração dos momentos precoces, dos primeiros movimentos de (in)diferenciação e troca com o ambiente, das contingências iniciais que podem conduzir a esta ou aquela trilha no desenvolvimento, ao uso preferencial de tal ou qual mecanismo, a um funcionamento mental mais amadurecido ou patológico. Os casos difíceis requerem ainda outra lógica para serem pensados e tratados, mais afeita ao paradoxo e ao suplemento, capaz de suportar a tensa coexistência de contrários, a inerência entre processos vitais e mortíferos, e assim por diante. Quanto ao posicionamento no campo psicanalítico, a complexidade dos fenômenos borderlines impele os analistas a transitar de modo não dogmático por entre os paradigmas disponíveis em nossa era pós-escolas. Por fim, mas não menos importante, a mim parece que esses escritos deixam transparecer uma certa disposição afetivo-intelectual de natureza, digamos, "benigna". Penso aqui na própria centralidade conferida à noção de cuidado, na tematização da esperança e da reciprocidade, no chamado a uma postura de reserva entendida como "aposta no ‘objeto' de cuidados, uma espécie de confiança que o cuidador deposita de antemão nas capacidades do outro" (p. 15). Uma propensão que seria desejável encontrar nos objetos primordiais e na relação analítica: benfazeja, propiciadora, convicta do potencial humano para a criatividade e a mudança. Creio que este é um ingrediente ético dos mais importantes e que tem conferido ao trabalho de LCF uma tonalidade peculiar. Talvez tenha algo a ver com o clima evocado pela bela capa de Ana Maria Magalhães, inspirada em Matisse: traços livres, contornos pouco nítidos, cores esmaecidas e nuançadas - do bonheur de vivre parece emanar, longínqua e sutilmente, um discreto otimismo...

 

Pois bem, a exploração de tão engenhoso conjunto de ideias vai exigir algum esforço por parte do leitor, mas seu empenho será recompensado. As linhas-mestras da teoria geral do cuidado encontram-se condensadas em dois artigos da coletânea de 2009 ("A questão do sentido, a intersubjetividade e as teorias das relações de objeto" e "A metapsicologia do cuidado"). Embora elas sejam didaticamente retomadas ao longo deste Cuidado, saúde e cultura, tentarei esquematizá-las para que fique mais fácil localizar os avanços aqui realizados. Em que pese a extrema simplificação:

 

a) a atividade psíquica visa à produção de sentido; diferentes vocabulários se prestam para descrever este que é um processo contínuo de transformar o não sentido (intensidades, elementos beta, real não simbolizado, traumático) em sentido (qualidades, elementos alfa, articulação e simbolização da experiência, representável). A ênfase nas transformações e no modelo "digestivo" de psiquismo tem em Bion uma referência fundamental; b) tal processo requer operações de separação/desligamento bem como de reunião/ligação (operações de "corte e costura") que implicam custos e sofrimentos. Para torná-los toleráveis, é preciso lançar mão de objetos e fenômenos mediadores; c) a instalação e desenvolvimento das capacidades necessárias para o funcionamento psíquico dependem do recebimento de cuidados adequados por parte do ambiente; nos inícios da constituição do psiquismo, tais cuidados são dispensados pelos objetos primários; d) no objeto primário coexistem várias funções e posições; nesse livro, conforme veremos adiante, o objeto primário será redescrito como primeiro "objeto transformacional", na medida em que favorece "as transformações necessárias ao self precoce para que este se desenvolva de forma relativamente integrada e funcional" (p. 13). Ao longo da vida do sujeito, o objeto primário encontrará substitutos (objetos derivados) internalizados e/ou externos; e) a clínica psicanalítica pretende restaurar (instaurar, quando for o caso), manter ou otimizar as condições para que se dê o trabalho de elaboração psíquica; para tanto, o analista, como um objeto derivado, assume e maneja as funções outrora a cargo dos primeiros objetos cuidadores; f) formas do cuidado: presença implicada (fazeres) e presença reservada (ser e deixar ser); g) fazeres do agente cuidador: sustentar/conter; reconhecer/espelhar; interpelar/convocar; h) cuidados bem-sucedidos tendem a produzir psiquismos aptos a se manterem vitalizados; geram também aumento da capacidade de tolerar dor e sofrimentos (depressividade fundamental), bem como desenvolvem habilidades cuidadoras naquele que foi alvo de cuidado; assim, este passa a poder integrar uma rede mais ampla de cuidados recíprocos.

 

II

O ensaio que abre o volume, "Cuidado e saúde: uma visão integrada", apresenta várias dessas diretrizes e, apoiado em reflexões sobre a natureza do organismo vivo, acaba por formular uma concepção ampla e funcional de saúde. Ou seja, já de início deparamo-nos com dois "ganhos" significativos: a teoria do cuidado expande seus fundamentos filosóficos (chegando à soleira de uma ontologia?) e a concepção de saúde como cuidado aumenta a base conceitual compartilhável entre psicanálise e outras práticas cuidadoras. O ponto de partida naturalista-pragmático recorre aqui às ideias do físico Erwin Schrödinger: os seres vivos, incluindo os humanos, tendem a metabolizar ordem nas trocas contínuas que efetuam com o ambiente físico e social. Dos níveis mais concretos aos mais simbólicos, nós também temos que nos haver com a autorregulação dos processos vitais e a "metabolização" de ordem. Note-se: estamos falando de ordem vital e, portanto, de equilibração de diferenças, e não de supressão delas. No caso dos seres humanos, o ambiente implica necessariamente a dimensão cultural como fonte de estímulos e excessos a serem "digeridos", mas também como manancial de recursos para mediar o processo "digestivo", favorecendo a tarefa de simbolização. LCF percorre os limites sempre imprecisos entre saúde e não saúde, soma e psique, indivíduo e sociedade, até chegar à ideia de saúde como aparelho para cuidar de si e dos outros, do ambiente natural e social; "cuidar, deixar-se cuidar e ser cuidado fazem parte do ´saudável´ no indivíduo e, por extensão, nas coletividades" (p. 27). Ou seja, a saúde exige ser pensada necessariamente em três dimensões: interpessoal, pessoal e cultural. Cada uma dessas dimensões nos servirá como "trampolim" para visitar os demais ensaios do livro.

 

A dimensão intersubjetiva nos remete aos capítulos 3 e 4, de natureza clínica, embora a clínica se faça presente da primeira à última página. Afinal, a psicanálise é uma das práticas de cuidado, cujo dispositivo específico é a situação analisante. LCF acredita que esse termo, sugerido por Donnet, acentua o caráter dinâmico e operante do arranjo analítico, tomando-o como "uma espécie de entidade viva e continuamente em processo de ajuste, auto-organização e conquista" (p. 109). Vivacidade do processo, vitalidade dos efeitos em ambos participantes: na esteira de autores como Winnicott e Ogden, considera-se que a "capacidade da situação analisante atrair para si vida e abrir possibilidades de vida psíquica e psicossomática para seus habitantes" (p. 112) é uma condição necessária para a eficácia do tratamento. Lembremos que também a saúde fora pensada como possibilidade de sustentar as capacidades vitais em sua máxima potência (p. 23) e teremos a impressão de vislumbrar os rastros de Nietzsche por entre a poltrona e o divã...

 

Como o contexto terapêutico é concebido nos moldes do contexto constitutivo, não é de se estranhar que ensaios clínicos contenham relevantes aprofundamentos teóricos. Funcionamento onírico compartilhado, regressão narcisista, processos terciários (Green) e sua função de mediação, além de uma excelente apresentação do pensamento de Bion, estão dentre esses tópicos. Algumas noções apresentadas no primeiro capítulo, a propósito da mutualidade e reciprocidade, e a exposição detalhada do conceito de objeto transformacional (Bollas) tornam ainda mais evidente: o terreno da metapsicologia mobilizada por LCF recebeu numerosos e valiosos acréscimos.

 

Também na teorização sobre a clínica assistimos a um importante adensamento da articulação com a teoria do cuidado. Por exemplo, a figura do analista "adormecedor" é associada à função de sustentação/continência, enquanto o analista "despertador" exerceria as funções de interpelação/corte e reconhecimento/integração. O capítulo 4 amplia em muito o escopo dessa articulação ao organizar o campo das grandes clínicas psicanalíticas em torno de três vértices: a clínica da continência (Klein, elaboração/simbolização, interpretação compreensiva, transferência materna) e a clínica do confronto (Freud, colocação de limites, interpretação desalojadora, transferência paterna) requereriam do analista uma presença implicada; já a clínica da ausência (Bion), vértice que tem precedência sobre os demais, exigiria a presença em reserva do analista, com vistas a favorecer a instalação de vazios e a experiência com o nada. A noção de suplementaridade permanece como a chave lógica para pensar a relação entre as múltiplas variáveis da situação analisante, inclusive entre os efeitos e os riscos de cada clínica: dispositivo delicado, requer uma sempre fina e constante calibragem. E não importa qual o tipo de paciente em questão, neuróticos ou não neuróticos: o que está em jogo é a formulação de um "pensamento clínico complexo a serviço da liberação, potencialização ou instalação das capacidades de trabalho psíquico inconsciente" (p. 125).

 

A noção de trabalho psíquico encontra-se no cerne da dimensão pessoal de saúde e nos é apresentada no inédito capítulo 5. Freud já se referira aos vários tipos de Arbeit realizados no/pelo psiquismo: o sonho, o luto, o chiste e o humor (os dois últimos, por implicarem a presença do outro e a importância da forma, avizinham-se da criação artística e do brincar infantil). Pode-se dizer que os trabalhos psíquicos são meios para a transformação de não sentido em sentido e, simultaneamente, produtos de tal transformação. O luto nos lembra que não existe trabalho sem dor e dispêndio de energia, bem como que o processo é sempre passível de entraves e inibições. Se a impossibilidade de sonhar ou de brincar sinaliza algum tipo de adoecimento, a capacidade de "sonhar, brincar, rir e fazer rir, perder e fazer o luto do perdido" (p. 154) seria, em contrapartida, um bom indicador de saúde mental.

 

LCF aponta que há especificidades em cada um desses trabalhos, mas muito resta a explorar nessa rica direção. No que se refere à escala temporal, por exemplo, eles podem durar de poucos instantes (chistes e sonhos) a anos sem fim (luto); também variam no grau de impacto que exercem sobre o corpo, na qualidade da presença do outro, e assim por diante. Há mesmo quem sugira outras modalidades de trabalho psíquico, como faz Michel de M´Uzan ao aventar um certo "trabalho do trespasse" (!) (aff, nem na hora da morte a gente tem uma folguinha...).

 

A capacidade de trabalho psíquico pode sofrer disfunções, ou sequer chegar a se instalar, em decorrência de uma situação traumática; como tal se entende a desproporção entre forças que impactam o psiquismo (pulsões, fantasias, realidade) e os recursos elaborativos de que dispõe o sujeito, insuficientes para processá-las. Nessas ocasiões, o conjunto do funcionamento psíquico fica prejudicado, cabendo à análise restabelecer e propiciar o bom fluxo dos trabalhos inconscientes.

 

Ora, também a criação artística advém de uma experiência traumática e da necessidade de simbolizá-la. Não é de hoje que se discute as relações entre arte e sofrimento, mas os caminhos pelos quais LCF irá percorrê-las são novos e instigantes. Com base nos estudos de Didier Anzieu sobre o processo criativo, seus motores e suas fases, o autor vê uma relação de suplementação entre trabalhos psíquicos e trabalhos de criação: ambos se fundam, se requerem e se ativam mutuamente. Há uma dimensão criativa nas produções psíquicas, e a criação incrementa os trabalhos inconscientes dos quais depende para existir. Ainda mais importante: tais processos se passam no criador mas também naqueles que usufruem da criação. Para quem cria, a obra materializa seu processo de superação da experiência traumática e para o público, serve ao mesmo propósito de auxiliar na elaboração do trauma. Isto é, o trabalho de criação é importantíssimo coadjuvante nas tarefas de simbolização que se impõem a indivíduos e a sociedades; não apenas auxiliam na metabolização de traumatismos coletivos, como o fazem em uma dimensão histórica e transgeracional.

 

Chegamos enfim à principal e mais estimulante tese do livro: a ideia de que as obras de criação possuem funções cuidadoras para os que as criam e para os que delas desfrutam. Explicitamente enunciada desde a "Apresentação", receberá seu pleno desenvolvimento em "A interpretação psicanalítica: clínica e formações da cultura". Nesse (inédito) segundo capítulo, LCF amplia em muito o alcance e a consistência da teoria geral do cuidado ao propor a noção de objeto transformacional como seu pilar metapsicológico, o que nos conduz à seguinte formulação: os fenômenos, instituições e produtos culturais podem exercer funções cuidadoras na medida em que são criados e utilizados como objetos transformacionais.

 

Rápida pausa para recobrar o fôlego. Parece que estamos prestes a testemunhar o "pulo do gato" (ou melhor, os pulos) com o qual LCF acede a um novo patamar teórico. Primeiro pulo: consolidação teórica da noção de cuidado, agora sustentada pelo conceito de objeto transformacional. Segundo: possibilidade de conceber e interpretar as formações da cultura em termos de cuidado. Terceiro: assim "vitaminada", a noção de cuidado assume o papel de articulador central entre clínica, metapsicologia e cultura, além de servir de interface com outros saberes/práticas adjacentes à psicanálise. Façamos uma breve decupagem dos principais movimentos efetuados nesse ensaio para que o leitor possa nos acompanhar, ou não, em nosso juízo.

 

LCF se coloca no campo dos fenômenos culturais, dispondo-se a analisá-los de um ângulo bastante preciso, qual seja, o da eficácia transformadora das experiências suscitadas por obras da cultura. Por isso, começa por retomar a noção de experiência desenvolvida pelo filósofo americano John Dewey, bem como a ênfase que ele coloca na dimensão estética que se faz presente em qualquer experiência digna desse nome - as que chegam a se constituir como unidade discriminada do continuum, que possuem organização e articulação internas, que se concluem em algum tipo de acabamento ou consumação, dentre outras características. A dimensão estética da experiência e/ou a experiência estética ocorrem na vida cotidiana, e não apenas ou necessariamente com obras de arte; uma jogada esportiva, um prato saboroso, uma paisagem, um trecho de conversa, um gesto moral também são ocasiões para despertá-la(s). Esse primeiro movimento sublinha o caráter transformador da experiência estética; ela é uma afetação diferenciada e diferenciadora, que deixa algum tipo de "marca" naquele que experimenta. Foucault assinaria embaixo quando diz que "uma experiência é algo de que se sai transformado".

 

Segundo movimento: LCF retoma a tradição psicanalítica de interpretação dos objetos culturais. Localiza em Freud a matriz da tão disseminada "psicanálise aplicada", que vê no conteúdo das obras uma boa ocasião para (re)confirmar, ilustrar e difundir seus conceitos; por isso se diz que esse tipo de interpretação, em geral tão redutora, está a serviço da psicanálise, e não da obra. Mas seria possível conceber a interpretação psicanalítica de textos literários e obras de arte em outras bases? O autor aposta que sim. No próprio Freud já se divisa o esboço de uma outra matriz interpretativa - um pensamento psicanalítico que vai se construindo com base nas inquietações produzidas pelos elementos formais de uma obra, a exemplo do que acontece em "O ´Moisés´, de Michelangelo" (1914). A forma instaura um campo no qual o intérprete é intensivamente afetado, mobilizando-o a buscar sentidos que impregnam tal experiência. Em vez de decifrar uma verdade encoberta, a interpretação irá configurar algo que só pôde emergir nesse encontro afetivo-ideativo entre intérprete e obra. A ênfase na dimensão do encontro e da afetação não é casual: trata-se de um mesmo raciocínio psicanalítico que opera dentro ou fora da clínica, emergindo do campo dinâmico das experiências compartilhadas.

 

Nem sempre a psicanálise pós-freudiana enveredou pelas melhores sendas interpretativas. LCF critica as posições de André Green, assim como destaca algumas análises de Didier Anzieu (o quarto do artista pintado por Van Gogh) como exemplos disso que chama interpretação em favor ou a serviço da obra.

 

Em um terceiro movimento, LCF apresenta as noções metapsicológicas que lhe parecem úteis para compreender os mecanismos de (re)constituição narcísica e integração/transformação do self. Começa pelo conceito de sublimação, tal como trabalhado por autores como Loewald e Luquet, que nele acentuam as facetas narcísica (desenvolvimento das capacidades egoicas) e erótica (ligação com objetos a serem fruídos e preservados). Também sublinha as importantes reflexões de Anzieu a respeito do processo de criação: resposta a uma crise, a obra que dele resulta seria um modo de enfrentamento das angústias e de reparação/restauração do self.

 

Criação de objetos que auxiliam na formação do self e na contenção da angústia - eis que o raciocínio deságua no conceito de objeto transicional, o qual é apontado pelo próprio Winnicott como paradigma para pensar os objetos da cultura. Porém, à diferença daqueles "trapinhos malcheirosos" que os adultos toleram com dificuldade e descartam assim que possível, os objetos estéticos (aqui tomados como representativos do universo cultural) possuem um caráter perene e marcadamente intersubjetivo. Este é o ponto central no qual LCF discorda de Winnicott: embora o objeto transicional tenha uma dimensão intersubjetiva, não é primordialmente endereçado ao outro e nem compartilhado com outros; não é usado, valorizado ou conservado coletivamente, e tampouco transmitido a gerações seguintes. Por isso, LCF entende que a noção de objeto transformacional, forjada por Bollas na esteira de Winnicott e Bion, é muito mais adequada para a compreensão dos objetos da cultura.

 

As atividades da mãe, o objeto primário por excelência, fornecem sustentação, continência e reconhecimento ao bebê, proporcionando-lhe gratificações prazerosas (no eixo pulsional) e, sobretudo, propiciando o desenvolvimento das funções egoicas (no eixo narcísico). O bebê experimenta tais atividades maternas como "processos que alteram a experiência do self", nas palavras de Bollas citadas por LCF (p. 78). Ora, na qualidade de objeto que forma e transforma, a mãe-ambiente é o protótipo do objeto transformacional e de seus sucedâneos. As mesmas tarefas que LCF já descrevera como sendo dos objetos primários (sustentar/conter/integrar, reconhecer/espelhar e interpelar/convocar) são agora atribuídas aos objetos transformacionais. A mudança na nomenclatura corresponde, penso eu, a um ligeiro deslocamento no ponto de vista em que se coloca o observador: de uma posição externa, de onde enfoca as relações entre quem exerce e quem recebe os cuidados, para uma visada que privilegia os efeitos de transformação ocorridos em cada um dos polos envolvidos no processo.

 

Pois bem, toda nossa possibilidade de vida social é constituída sob a égide dos objetos transformacionais; por isso, ao longo da existência, continuamos a buscá-los e a (re)criá-los em versões simbólicas. Isto equivale a dizer que, quando adultos, procuramos não apenas objetos de prazer a serem possuídos e consumidos, mas também objetos transformacionais aos quais nos entregamos para deles receber cuidados (cf. p. 78). Nessa acepção ampla, todo espaço e todo objeto são, potencialmente, espaços e objetos cuidadores. Porém, para que os efeitos de cuidado de fato aconteçam, há uma condição indispensável: tal como o bebê em relação à mãe-ambiente, é preciso que o sujeito se deixe cuidar, que se entregue a tais objetos, que seja capaz de neles se instalar, de habitá-los. A ocorrência de transformações requer intimidade na experiência com o objeto, a afetação só se efetiva no contexto de um genuíno encontro.

 

Com isso, LCF tem em mãos os elementos necessários para propor aquilo que seria uma prototeoria da cultura: "rede relativamente organizada e estável de objetos transformacionais capazes de oferecer cuidados a todos capazes de habitá-los, e no bojo dos quais nos formamos e nos reconstituímos, e a partir dos quais nossas experiências do mundo e de nós mesmos se constituem" (p. 82). Em resumo, a cultura seria um "sistema de objetos transformacionais capazes de propiciar cuidados básicos aos humanos" (p. 101).

 

Chegamos enfim a um quarto e último movimento desse ensaio, no qual LCF retorna ao tema da interpretação psicanalítica, agora dispondo da noção de objeto transformacional. Abre parêntese: no decorrer dos (dois) movimentos dedicados à questão da interpretação, encontramos formulações interessantíssimas sobre aspectos onipresentes nas reflexões psicanalíticas sobre o assunto. Dentre elas, sugestões de como discutir as especificidades relativas ao âmbito da interpretação (dentro ou fora da clínica?), ao seu foco (o que se interpreta?), sua efetividade (o que a torna eficaz?), sua verdade e verificabilidade, sua natureza última (descoberta ou criação?). Merecem destaque as indicações sobre os procedimentos interpretativos (como interpretar?) - o ponto de partida, a relação entre detalhe e totalidade, a extrema importância dos aspectos formais, e assim por diante. Por essa razão não me parece descabido afirmar que, a exemplo da cultura, LCF fornece muitos dos subsídios necessários para o esboço de uma "proto-hermenêutica" psicanalítica. Fecha parêntese.

 

A discussão sobre quais seriam os critérios para uma "boa interpretação" - aquela capaz de deixar falar o objeto e de realçar suas dinâmicas próprias - é aqui retomada em outro nível. "Uma interpretação ‘a serviço da obra' não se sobrepõe e obscurece seu objeto, mas amplia sua capacidade de operar como objeto transformacional" (p. 83). Isto é, uma boa interpretação é aquela que vitaliza a obra, incrementando sua capacidade de gerar efeitos estéticos.

 

Bem, se admitimos que a interpretação, em alguma medida, "cuida" do objeto e o modifica, estamos prontos para assumir que também ela pode ser considerada um objeto transformacional (só que "de segunda ordem", isto é, um objeto que cuida do objeto). Nas palavras de LCF, "a boa interpretação aumenta nosso prazer de ver, de ler e de ouvir, nosso prazer de pensar, e portanto, de cuidar bem do objeto que cuida de nós e ao qual somos gratos. A interpretação adquire assim um sentido de gratidão, pois é nossa resposta ‘devolutiva' a uma obra realmente significativa, ao menos em termos pessoais, para o intérprete" (p. 95). A interpretação como gratidão: eis uma boa amostra, mas não a única, da dimensão estética desse texto. E pode ser belo, o pensamento...

 

III

Findo o percurso pelo conjunto dos ensaios, tocamos, por fim, a vertente mais delicada da leitura - a do trabalho da obra sobre o leitor. Creio ser difícil sair incólume de um livro como esse. Para além ou aquém dos vínculos que mantemos com a psicanálise, o texto de LCF nos leva a revisitar os meandros mais sutis das experiências cotidianas, promovendo abalos em nossa maneira de percebê-las. Particularmente, asseguro que provei de seus efeitos tônicos; é uma leitura que estimula o pensamento, revigora interesses, desperta sentimentos estéticos - que ativa, em suma, os chamados "trabalhos psíquicos". Porém, minha experiência como leitora interessa apenas na medida em que dá origem a uma hipótese mais ampla, qual seja, a de que Cuidado, saúde e cultura possui, por suas características intrínsecas, um fortíssimo potencial de afetação. Em outras palavras, suspeito que estamos perante uma obra com grandes chances de operar, para parte significativa de seu público, como um competente objeto transformacional. Claro que leitores dispersos, apressados ou compulsórios dificilmente colherão esse tipo de benefício; o fato é que esses escritos detêm qualidades que favorecem suas funções cuidadoras.

 

Atenção: estamos dirigindo ao trabalho de LCF uma questão crucial que percorre todo o livro. A capacidade cuidadora de um objeto transformacional (seja ele um quadro, um bichinho de estimação, um psicanalista) está associada a suas características formais? Haveria algo específico na forma de um objeto que o torna mais ou menos apto a exercer funções cuidadoras?

 

Sim, sugere o autor, certas obras possuem características que as tornam mais "habitáveis" do que outras, o que facilita a entrega por parte do público. Grandes ficcionistas, como Proust ou Guimarães Rosa, são capazes de criar verdadeiras "instalações" - constroem mundos completos e complexos, com espaços-tempos próprios, onde nos instalamos e dentro dos quais experimentamos seus efeitos de cuidados básicos (cf. p. 80 e 81). Ora, em outra escala e outro terreno (o da não ficção), a teoria geral do cuidado também vem constituindo um universo teórico rico e multifacetado, que se abre ao leitor como uma atraente e convidativa morada. Embora desprovido de qualquer intenção sistemática, LCF acaba por compor um panorama bastante completo. Em termos de psicanálise, as vertentes da clínica-metapsicologia-cultura vêm sendo intensivamente exploradas e interligadas. Na perspectiva filosófica, encontramos elementos para pensar muitos de seus grandes temas (conhecimento, verdade, linguagem etc.), além de "prototeorias" no campo da ontologia, antropologia, lógica, hermenêutica e teoria da cultura. Isso sem contar, claro, as contribuições mais densas nas áreas em cuja confluência esse livro se situa: a ética e a estética. Por fim, como vimos, a noção de cuidado estabelece fronteiras com outras áreas do conhecimento, com práticas profissionais diversificadas e com a experiência da vida cotidiana.

 

A essa natureza "instaladora", por assim dizer, soma-se outra importante característica formal. Tão sofisticado pensamento acaba por se plasmar em uma prosa direta, clara e fluente; embora às voltas com questões intrincadas e tateando a linguagem em busca do melhor dizer, LCF passa ao largo do hermetismo e do rebuscamento. Desse modo, a própria escrita presentifica uma tensão instigante, ao conjugar o despojamento da forma com os requintes da reflexão. Esse aspecto potencializa os efeitos estéticos do livro - dos quais, estou certa, outros leitores irão desfrutar.

 

Trabalho do autor, do leitor, sobre o leitor. Ao cabo de nosso trajeto, espero que essa resenha possa ser de alguma valia para a leitura-experiência de Cuidado, saúde e cultura, e também que consiga retribuir à obra ao menos parte dos cuidados recebidos.


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