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Autor(es)
Sérgio Telles Telles
é psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e escritor.

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 LEITURA

Dostoiévski, o terapeuta [Os ensinamentos da loucura – a clínica de Dostoiévski]

Dostoievsky as a therapist
Sérgio Telles Telles

É decisivo o papel do inconsciente na construção dos soturnos personagens de Dostoiévski, o que o deixa como um autor no qual as relações entre psicanálise e literatura são particularmente claras.

 

Ciente disso, Heitor O'Dwyer de Macedo, psicanalista brasileiro radicado há tempos na França, montou faz quatro anos um seminário centrado na obra do mestre russo, que deu origem a esse livro. Na análise de Memórias do Subsolo, Crime e Castigo e O Duplo, o autor sublinha a importância do trauma e da resposta perversa que a ele se segue e salienta a fina compreensão de Dostoiévski sobre a dinâmica psíquica que somente décadas depois seria descrita por Freud. Macedo mostra como enquanto alguns de seus personagens, possuídos por suas paixões, distanciam-se da realidade, outros lidam com elas de forma terapêutica tão apropriada que poucos reparos mereceriam de um psicanalista.

 

Na opinião de Macedo, os personagens de Dostoiévski se desesperam com suas fantasias agressivas e sexuais, seus desejos incestuosos e parricidas, ideias que afrontam suas convicções mais prezadas. Cheios de culpa, consideram-se pessoas indignas, que nada merecem a não ser a abjeção de todos. Estariam eles numa situação mental semelhante à de Freud no momento em que, através da identificação com pacientes e a análise de seus sonhos, depara com o próprio inconsciente, sem ter ainda articulado as teorias que lhe forneceriam instrumentos para enfrentá-lo.

 

Escrito junto ao leito de morte de sua primeira mulher, Memórias do Subsolo é o terceiro livro de Dostoiévski, produzido depois da prisão na Sibéria, onde, acusado de conspirar contra o czar, ficara por cinco anos e sofrera uma simulação de execução antes de receber a indulgência. O título remete a um lugar especial, evoca a outra cena freudiana, lugar por onde circulam ideias condenadas pela razão, ética e moral. É de lá que o homem do subsolo - pois não tem nome o personagem - diz coisas hediondas sobre si mesmo e os valores convencionalmente estabelecidos.

 

No primeiro capítulo, O subsolo, ele se desmerece e se autoflagela sem motivos aparentes. No segundo, A propósito da neve molhada, são descritos três episódios incongruentes ocorridos vinte anos antes, que justificam a razão de seu comportamento até então inexplicável. Num, cisma obsessivamente com um oficial em quem, um dia, esbarrara na rua. Noutro, força sua presença numa reunião de antigos colegas que detesta e por quem é ignorado. No mais importante, aparece sua conduta ignominiosa com a prostituta Liza. Alternando desprezo e consideração, a seduz, fazendo-a crer que poderia ajudá-la. Quando Liza se entrega e revela seu segredo mais doloroso - ter sido vendida pelo pai para uma cafetina - ele a rejeita, deixando-a aniquilada. O ter sido - como ela - uma criança abandonada é a fonte do ódio que o consome. De certa forma, Liza entende que é por esse motivo que a maltrata.

 

Diz Macedo:

Estamos aqui diante de uma demonstração do notável senso clínico de Dostoiévski. Sua apresentação precisa e meticulosa do desabamento daquilo que resta de autoestima de um jovem doentio explica o que vem depois, o surgimento do homem do subsolo, no qual o ódio será a saída para a catástrofe narcísica e a perversão, a muralha contra a derrocada psicótica (p.?29).

 

Presa da compulsão à repetição, o homem do subsolo não se dá conta de que recria as situações traumáticas nas quais se sente abandonado e rejeitado - corta as relações pessoais e se isola socialmente.

 

Diz Macedo:

Essa economia narcísica de sobrevivência gera uma prática de destruição, na qual o assassinato psíquico é um expediente defensivo, uma estratégia de evitar encontros - qualquer encontro provoca sangramento de uma velha ferida de amor-próprio. Essa prática de destruição transformará também qualquer sofrimento em dor moral - modo de excluir definitivamente o outro como causa de um sentimento qualquer, e de fechar de antemão qualquer evento, qualquer novidade, no já conhecido de uma ruminação (p.?37).

 

Por não suportar mudanças, o homem do subsolo recusa a vida viva que Liza lhe acena. Está preso no que Freud chama de cultura de pulsão de morte.

 

O autor mostra que o homem do subsolo faz ativamente com Liza o que, na infância, sofrera passivamente dos pais. Diz ele:

 

Eis a característica que marca o procedimento perverso: fazer o outro arcar com sua angústia. O esforço para tornar o outro louco é o modo como o perverso se obstina em mergulhar o próximo no desespero que ele nega e rejeita. O psicótico é o reservatório de tal detrito (p.?32).

 

É curioso que Macedo considere esse um mecanismo próprio da perversão, a resposta perversa ao trauma, quando, como ele mesmo diz, é um exemplo típico de identificação projetiva, mecanismo descrito por Melanie Klein de intensa circulação na comunicação humana em geral e de ocorrência frequente na relação transferencial.

 

Por ter sido traído, o homem do subsolo trai Liza. Esse é um dado importante, pois Macedo considera a traição um elemento definidor do trauma: "visto que todo trauma remete a traição por parte daqueles que são amados, daqueles em quem se depositou toda a confiança com a generosidade que acompanha a infância" (p.?35).

 

Na longa análise que faz de Crime e Castigo, Macedo também atribui a situações traumáticas de abandono na infância o assassinato realizado por Raskólnikof. Os descuidos de uma mãe perversa e um pai ausente o levam a construir defesas onipotentes megalomaníacas para sobreviver. Isso fica patente em sua tese sobre os homens extraordinários, condição que os autorizaria a fazer o que bem entendessem, sem ter de acatar os impedimentos impostos pela lei.

 

Aqui, segundo Macedo, a habilidade terapêutica de Dostoiévski transparece na forma como Razumíkhin, Porfiri e Sônia lidam com Raskólnikof.

 

Razumíkhin é o amigo, o outro bondoso não persecutório que lhe possibilita romper com o enclausuramento narcísico. Mas é na forma como Porfiri leva Raskólnikof a confessar o crime onde a técnica terapêutica de Dostoiévski se mostra mais evidente. Sônia, agindo como continente da agressão e desagregação de Raskólnikof, consegue retirá-lo da perniciosa influência de Svidrigáilof, o verdadeiro assassino da história. Ao fazê-lo entregar-se à polícia e cumprir a devida pena, Sônia reintegra Raskólnikof na ordem simbólica, salvando-o da perversão e da loucura. Através da mediação de Sônia, o contato com o mundo não lhe fica tão ameaçador, a vida deixa de ser uma perpétua reatualização do trauma vivido como criança nas mãos de pais incompetentes, doentes.

 

Quando Raskólnikof finalmente admite para Sônia a autoria do assassinato, em vez de rejeitá-lo, ela o abraça e diz que o ama, pois entende que a confissão é a evidência de que uma profunda mudança se processara nele - a disposição de não mais fugir do encontro amoroso com o outro por medo do abandono. Dessa forma, sai do isolamento e solidão em que vivia.

 

Diz Raskólnikof: "Eu só queria cometer um ato audacioso, Sônia; só queria isso: essa foi a motivação de meu ato. [...] Quis matar sem casuística, matar para mim mesmo, só para mim" (p.?123). Era um ato gratuito, não motivado pela cobiça, perfeitamente coerente com sua teoria dos homens extraordinários, que atestava seu sentimento de desvalia, o ter que ser extraordinário para não sofrer com a ameaça de abandono por parte do outro.

 

A partir do comentário da atuação de Razumíkhin sobre Ralkólnikof, Macedo desenvolve algumas ideias próprias sobre a transferência, considerando que ela tem a mesma matriz emocional que a amizade. É uma ideia provocadora, pois, por um lado, afasta-se da neutralidade convencionalmente atribuída à posição do analista e, por outro, parece desconsiderar a transferência negativa. O inesperado dessa afirmação é corrigido quando explica que o fato de aproximar a transferência da amizade não anula a assimetria da dupla analista-analisando, mas valoriza a reciprocidade de ambos no desejo de pensar. Seguindo a corrente francesa, vê o analista como um outro/referente, nunca como uma sombra, um duplo. Macedo pensa que na clínica do trauma e da psicose o analista é colocado num rígido lugar idealizado que logo se transforma em persecutoriedade. Somente com o desdobramento da cura é que esse tipo de paciente passa a ver o analista no papel múltiplo de referente das diversas possibilidades relacionais internas e externas. Mas, para que isso ocorra, "é importante que o analista seja uma pessoa real" (p.?63).

 

A relação entre amor e transferência é assim colocada por Macedo:

O conjunto que em Raskólnikof constitui as mudanças de humor, os movimentos afetivos, a pluralidade de posições subjetivas; as resistências a ouvir o outro, a depender do outro; depois o reconhecimento do elo e suas consequências: regressão e nova organização do desejo -, esse conjunto se chama a catástrofe do amor. Quando isso ocorre em um tratamento analítico chama-se trabalho de transferência (p.?133).

 

Em O Duplo, o frágil Goliádkin não consegue chegar a bons termos com o próprio corpo, mal-estar que Macedo aproxima daquele sentido pelos adolescentes, que têm de se acomodar a uma nova realidade corporal e às exigências da sexualidade. A chegada do outro, que ocorre quando se apaixona, provoca-lhe uma grande comoção interna e a quebra das defesas narcísicas. Goliádkin se sente doente e procura um médico, que lhe recomenda companhia alegre como remédio. Vai então a uma festa para a qual não havia sido convidado, onde comete uma sucessão de gafes até ser expulso do recinto. Na rua, encontra pela primeira vez seu duplo, que exibe grande traquejo social e desenvoltura no trato com as pessoas, qualidades das quais era desprovido, como acabara de comprovar com o desastroso desempenho na festa. No início, Goliádkin e seu duplo ficam amigos e, logo depois, inimigos. O duplo toma seu lugar e Goliádkin começa a ver Goliádkins em todos os lugares, quando é internado como louco.

 

Os turbilhões psíquicos dos personagens de Dostoiévski levam Macedo a citar por duas vezes uma intrigante afirmação do psicanalista inglês Winnicott: a psicose está mais próxima da saúde psíquica do que os ideais de normalidade. Se lembrarmos que a saúde mental decorre de um bom contato com os desejos e fantasias inconscientes possibilitado pela flexibilização e porosidade da censura imposta pelos sistemas repressivos e punitivos internos, de fato ela (a saúde mental) está mais próxima da loucura, na qual o inconsciente está a céu aberto e sem nenhuma censura, do que da normalidade, onde os conteúdos inconscientes estão rigorosamente censurados, reprimidos, negados, manifestando-se tortuosamente através de penosos sintomas. O aparente disparate de Winnicott fica desfeito e se chega a uma conclusão consequente - os perturbados personagens dostoievskianos estão, sim, longe da normalidade, mas próximos da saúde mental.

 

Psicanalistas e admiradores da obra de Dostoiévski tirarão bom proveito do livro de Heitor O'Dwyer Macedo.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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