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Resumo
O trabalho trata das consequências do estado de exceção, em que há supressão da ordem jurídica, sobre as subjetividades. Propõe que esta suspensão acarreta, para os sujeitos, uma situação de desamparo, em razão da instalação das mesmas condições causadoras do trauma psíquico. Por meio da “força de lei sem lei” o próprio pacto civilizatório é atacado pelo Estado, que devolve os sujeitos à situação psíquica primitiva, anterior ao estabelecimento da lei. Como conclusão, examina a resistência à ditadura como meio de reparação e defende o direito à verdade e à ab-reação como condições para a elaboração traumática para suas vítimas.


Palavras-chave
estado de exceção; ditadura; desamparo



Notas

1.        Trabalho apresentado em 29 maio 2010 no evento sobre "Herança e Transmissão: Trauma e Narrativas nos Espelhos da Cultura", organizado pelo Grupo de Psicanálise e Contemporaneidade, do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo. Publicado, em primeira versão, na revista digital in Tolerância n. 1, Laboratório de Estudos sobre a Intolerância, leiusp, São Paulo, 2010, e no Boletim Online n. 13, Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo, 2010.

2.        S. Freud (1895), "La próton-pseudos histérica", p.?400.

3.        L. Barbero Fuks (2008) , "Consequências do abuso sexual infantil".

4.        M. M. A. Moreno (2009), Trauma: o avesso da memória.

5.        S. Freud (1921),"Psicología de las masas y análisis del Yo".

6.        S. Bleichmar (2005), "Conceptualización de catástrofe social. Límites y encrucijadas".

7.        V. A. Galli (1987), "A clínica psicanalítica durante e depois do terrorismo de Estado".

8.        M. Viñar (2007), "Violencia política extrema y transmisión intergeneracional".

9.        N. Abraham e M. Torok (1987) , A casca e o núcleo.

10.     S. Tisseron (1997), El psiquismo ante la prueba de las generaciones.

11.     R. Cytrynowicz e M. Cytrynowicz (2006), História do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

12.     N. Caro Hollander (2000), El amor en los tiempos del odio - Psicología de la liberación en América Latina.

13.     M. Viñar, op. cit., mimeo, p.?11.

14.     Em 29 abr. 2010, o stf rejeitou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (oab) por uma revisão da Lei da Anistia (Lei n. 6683/79), mantendo o perdão aos representantes do Estado acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar, em decisão que contraria o Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

15.     G. Guilis e Equipo de Salud Mental-cels, "El concepto de reparación simbólica en el contexto jurídico del sistema interamericano".

16.     R. Kaës (1991), "Rupturas catastróficas y trabajo de la memoria. Notas para una investigación", p.?160.

17.     R. Kaës, op. cit., p.?162.

18.     Referência ao filme "A questão humana" (França, 2007), dirigido por Nicolas Klotz e premiado na Mostra de Cinema de São Paulo do mesmo ano.

19.     G. Agamben (2007), Infancia e Historia, Traducción Silvio Mattoni, p.?8.

20.     W. Benjamin apud G. Agamben, op. cit. (2007).

21.     M. Chnaiderman e R. Pinheiro, Sobreviventes. Documentário, 2008. 52 min. dvcam.

22.     Elio Ferreira, autor de assalto, foi condenado a prisão de 5 anos e 4 meses em regime semiaberto, sofrendo no entanto reclusão no Carandiru. Durante a invasão da pm, foi ferido de bala no peito, mas pôde sobreviver escondido entre os corpos de companheiros mortos. Relata também haver sido submetido, junto aos outros presidiários, a experiências humilhantes, tais como serem obrigados a ficar todos nus e a encenar contatos sexuais entre eles.

23.     G. Agamben (2002), Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. I. P. Endo, "O sujeito imaculado na sociedade privatizada: psicanálise e política em torno de Totem e Tabu".

24.     Responsável pela invasão da Polícia Militar de São Paulo ao Complexo Penitenciário do Carandiru em 1992. Acusado de homicídio, é condenado, em junho de 2001, por 102 das 111 mortes. Julgado recurso por Órgão Especial do tj de São Paulo, em 16 jun. 2006, há revisão do falho condenatório por conter equívoco, sendo em consequência absolvido.



Referências bibliográficas

Agamben G. (2004). Estado de exceção. São Paulo: Boitempo.

Arantes M. A. A. C. (2013). Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Freud S. (1913/1980). Totem e tabu. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; vol. xiii.

_____. (1930/1980). O mal-estar na civilização. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; vol. xxi.

Fuks M. P. (2003). Nos domínios das neuroses narcísicas e em suas proximidades. In L. B. Fuks; F. C. Ferraz (orgs.), Desafios para a psicanálise contemporânea. São Paulo: Escuta.

Gaspari E. (2014) 1964... Folha de S.Paulo, 26 mar. 2014, p.?A-10.

Lacan J. (1955-56/1981) O Seminário. Livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.





Abstract
The work deals with the consequences of the state of exception, in which there is suppression of the legal order, on subjectivities. Proposes that this suspension leads the subjects to a situation of helplessness, because of the installation of the same conditions that cause the psychological trauma. Through the “force of law without law” the civilizing covenant is attacked itself by the State, which induces the subjects to return to the primitive psychic situation, prior to the establishment of the law. In conclusion, examines the resistance to the dictatorship as a means repair mode and defends the right to truth and abreaction of traumatic as conditions to a through work for their victims.


Keywords
state of exception; dictatorship; helplessness.

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 TEXTO

Estado de exceção e desamparo

State of exception and helplessness

Quando fui convidado a falar e a escrever sobre estado de exceção, a partir de um ponto de vista psicanalítico e para um público composto, na sua maior parte, de psicanalistas, confesso que me inquietei diante da questão que se me propunha, assim formulada: haverá elementos teóricos em psicanálise suficientes para isso? Não seria arriscado repetir os exageros já tão conhecidos daqueles que se utilizaram do referencial da psicanálise como uma verdadeira panaceia que a tudo poderia se aplicar? A fenômenos sociais, culturais, políticos e econômicos?

 

Passado o primeiro momento, entretanto, o quadro foi se aclarando, à medida que eu ia me dando conta de que não seria o caso de me valer da teoria psicanalítica como instrumento de explicação para fenômenos históricos e políticos, mas que o trabalho possível seria a tomada do problema de um ponto de vista diferente. O posicionamento epistemologicamente legítimo do psicanalista seria em um lugar distinto daquele do cientista político, do historiador ou do jurista. Seria necessário pensar a questão a partir de um recorte específico, que se delineia como o fenômeno da colocação dos sujeitos diante do estado de exceção. E uma abordagem pelo prisma da subjetividade, segundo entendo, desembocaria, naturalmente, em uma consideração às consequências do estado de exceção sobre a esfera do funcionamento psíquico dos sujeitos, tanto no que ele comporta de potencial patogênico como nos mecanismos de reparação representados pela resistência que ele se faz.

 

Foi assim que me vi perante o desafio de afastar-me da abordagem político-jurídica do conceito, em que ele, afinal, tem sua origem e seu campo usual de debate, para encontrar, na teoria psicanalítica, elementos que me permitissem ampliar a reflexão sobre o estado de exceção, agora pelo ângulo de visão dos sujeitos. Não daqueles que o engendram, mas dos que a ele são submetidos.

 

Tratei de buscar em Giorgio Agamben[1] uma compreensão do conceito mesmo de estado de exceção, empreitada de base para definir as especificidades potencialmente patógenas do campo sobre o qual se situariam os sujeitos. Assim, o exame da questão pelo prisma político não será o escopo desta comunicação: será apenas um ponto de partida, e não de conclusão. Em primeiro lugar, porque não tenho formação em Ciência Política, nem tampouco em Direito, que me permita discorrer de forma mais profunda sobre o assunto. Em segundo lugar, a fortiori, porque o que me foi dado como tarefa é, precisamente, buscar em meu repertório psicanalítico os referenciais que conduzam ao tratamento do problema pelo viés da subjetividade. Foi assim, então, que deixei de lado as considerações estritas sobre o estado de exceção para pensar qual poderia ser o seu significado e as suas consequências para cada sujeito que com ele depara e a ele se encontra involuntariamente submetido.

 

Agamben retoma as situações políticas e os momentos históricos em que o estado de exceção encontrou as brechas para se instalar. Não vou me estender sobre este ponto, mas, em síntese, direi que elas se ligam, de maneira mais estreita, aos estados de guerra, dos quais derivam as conhecidas figuras do estado de sítio e da lei marcial. Dentre a gama de possibilidades de sua ocorrência, a que nos interessa hic et nunc é a das ditaduras. Foi o alemão Carl Schmitt[2] quem, em 1921, apresentou o conceito de estado de exceção por meio da figura da ditadura, que será o nosso objeto. Pois, como enfatiza Maria Auxiliadora Arantes[3], em seu pungente livro sobre a tortura, a ditadura civil-militar que se impôs aos brasileiros entre 1964 e 1985 estabeleceu a exceção como regra.

 

O estado de exceção, de acordo com Agamben, não seria a instalação de um direito especial (como seria o direito de guerra), mas a "suspensão da própria ordem jurídica"[4]. No caso da ditadura brasileira não se fez, formal ou declaradamente, uma supressão da ordem jurídica, mas outorgou-se outra ordem, que pode ser então considerada ilegítima do ponto de vista da ordem democrática.

 

As democracias ocidentais muitas vezes se posicionaram em um espaço político situado entre o direito e a violência. Nesses casos, o ordenamento jurídico trazia, em seu bojo, o seu próprio contrário, a saber, a suspensão dos direitos que admite a violência não regulada pela lei. Além disso, segundo Agamben, o estado de exceção se apresenta na política contemporânea, cada vez mais, como um modelo de governo dominante: "Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmente - e, de fato, já transformou de modo muito perceptível - a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre a democracia e o absolutismo"[5].

 

Concluo esta breve exposição do ponto de vista de Agamben recorrendo a um de seus comentários que nos permitirá, agora, dar início a um esboço da ligação entre a natureza mesma do estado de exceção e seus efeitos sobre os sujeitos. Trata-se de sua brilhante formulação de que o estado de exceção é um "espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de lei sem lei"[6]. E que, portanto, deveria ser escrita como "força de lei" de um modo em que a palavra lei aparece negada, com um "x" sobre si.

 

Suponho que, a essa altura, já se possa imaginar para onde nos dirigimos ao justapormos a ideia de "força de lei sem lei" às teorias freudianas do pacto civilizatório e do surgimento da lei, presente em "Totem e tabu"[7] e retomada em "O mal-estar na civilização"[8].

 

O homem da horda primeva, segundo o mito instituinte freudiano, encontrava-se exposto à lei do mais forte. Leia-se: aos desmandos do pai tirânico, que aos filhos assujeitava. Foi da revolta fraterna, que levou ao assassinato do pai, que pôde emergir, em torno da renúncia edípica, o pacto que daria origem à civilização. Foi da renúncia dos irmãos à posse da mãe que surgiu uma lei socializada, cuja essência estava na pressuposição de que todos os iguais (irmãos) estariam, a partir dali, sujeitos ao mesmo ordenamento. Portanto, a operação que conduziu à civilização tinha, como condição de possibilidade, a troca de uma "lei sem lei" - que nada mais era do que a imposição feita por meio da violência - por uma lei pactuada, em que o ordenamento já não se definia pela vontade de um, mas por um elemento simbólico. Como afirma Freud, em "O mal-estar na civilização"[9], o pacto civilizatório em torno da lei consistia em que todos concordassem em abrir mão da satisfação ilimitada da libido e da agressão, em troca de um quantum de segurança.

 

Portanto, temos aí uma articulação nodal entre pacto social, segurança e lei que, em princípio, marcou a passagem da horda primeva à civilização e, depois, ao Estado. Desde então, o que se assiste na história da humanidade é a uma constante tensão entre o sentimento de exigência deste ordenamento e a permanência da tirania no exercício do poder de Estado. A história se pauta por revoltas diante da força bruta imposta pelos detentores do poder, pela tensão entre o seu primado e os ideais que o põem em xeque. Não vamos nos deter aqui para realizar um percurso através da história política das civilizações, nem faremos um levantamento das teorias que buscaram desvendá-la criticamente. Podemos ficar no exemplo patente das monarquias, que detinham o poder de Estado em caráter privado. A concepção de algo como a república significou um avanço enorme na relação dos sujeitos com o Estado, na transposição de seu caráter privado para o público, como testemunha a própria etimologia do termo. Mesmo as monarquias remanescentes se viram obrigadas a abrir mão do absolutismo para se tornarem constitucionais.

 

Ocorre, entretanto, que a tentação autoritária jamais foi proscrita da civilização. Não é incomum que um momento de ampliação da liberdade civil seja seguido por um recrudescimento da tirania. As ditaduras que se implantam no regime republicano são o exemplo mais contundente desse fato, quando algo similar ao poder absoluto, outrora "natural" no regime monarquista, apropria-se do Estado.

 

O estado de exceção ou de suspensão de direitos - não é exagero dizê-lo - recoloca os sujeitos diante de uma insegurança similar à experimentada na horda primeva ante o pai onipotente. O estado de exceção lança os sujeitos àquilo que, em psicanálise, se conhece como experiência de desamparo e de trauma. Em uma analogia bem simples pode-se dizer que, submetida à vontade de um, que se faz "força de lei sem lei", a sociedade é lançada a um estado próximo ao da criança abusada pelo próprio pai, que, em princípio e por suposto, é aquele que deveria lhe garantir segurança e proteção. A exceção, assim, ataca as bases do pacto civilizatório. O Estado deixa de ser a instituição que idealmente o garante, para se tornar agente de sua destruição.

 

Não é de estranhar, portanto, a estreita e necessária relação entre estado de exceção e a violação dos sujeitos, consubstanciada exemplarmente, em seu extremo, na sujeição levada a cabo por meio da tortura. Não há experiência humana mais representativa do desamparo do que a tortura. Nela, para além da dor física, o que se experimenta é a sujeição plena e total, no último reduto do sujeito, que vem a ser o seu corpo. A dor adicional para o torturado é o de se ver indefeso e submetido a outro que dispõe completamente de seu corpo, usando-o a partir de sua vontade sem freio; de outro que o coisifica sem compaixão por sua dor e que, ao contrário, dela extrai o gozo. É isso que potencializa a dor do torturado, que suportaria de modo diferente da dor proveniente, por exemplo, de uma tragédia natural, sem autor. Vale lembrar uma ligeira passagem de Lacan[10] (1955-56) em que ele, de modo arguto, diz que uma criança muito precocemente reage de maneiras distintas ante uma dor natural e uma dor infligida intencionalmente por outrem. No segundo caso, há mais dor.

 

O estado de exceção traz em sua esteira o exercício impune da violência, lançando suas vítimas no abismo do desamparo e buscando imobilizar a sociedade como um todo. Esforço é feito para retirá-la da condição de sujeito de si e transformá-la em objeto de outro. Essa operação visa a uma alienação dos sujeitos, dos quais se exige a conversão em "corpos dóceis".

 

Mario Fuks[11], tratando do colapso psíquico experimentado por determinados pacientes na contemporaneidade, traça um interessante paralelo. Entendendo o colapso como uma "redução do espaço em uma cavidade circunscrita por paredes que se aproximam", afirma que essa "redução extrema do espaço psíquico, no sentido metapsicológico de tópica", é comparável "à ideia do espaço político que entra em colapso, que se fecha, sob o ponto de vista da vida democrática, quando se instaura uma ditadura"[12]. Esta é uma situação de trauma coletivo, que pode se configurar como um estado-limite para a experiência da subjetividade, com o risco do desligamento das representações psíquicas e do esvaziamento do sentido. A superação desses estados se dá quando é possível o retorno à vida política e à ação coletiva, que ocorre no processo de redemocratização, quando o futuro acena com a possibilidade da reparação da injustiça do presente.

 

Se é assim que se processa o estado de exceção e sua superação no nível das subjetividades, a resistência a uma ditadura significa mais do que um combate no campo político-institucional e ideológico. Significa, pelo prisma do psíquico, a resistência dos sujeitos à aniquilação da sua própria condição de sujeitos, da qual todos são beneficiários: os que resistem e os que se deixam alienar; os militantes e aqueles que, confortável ou alienadamente, só sabem ser democratas na vigência da democracia.

 

O golpe militar de 1964, cujo aniversário de 50 anos estamos hoje comemorando pelo avesso, deixou um saldo considerável de mortos, presos, torturados, exilados e destituídos de direitos políticos. A anistia, que na ocasião se proclamou "ampla, geral e irrestrita", foi, sem dúvida, uma conquista importante da sociedade civil. No entanto hoje sua abrangência pode ser questionada por uma razão muito lógica. Se é que compreendemos o estado de exceção como usurpação do poder de Estado, e seus agentes - sobretudo os torturadores - como condutores da barbárie, como repetir acriticamente a desgastada formulação de que houve perdão "para os dois lados"? Como aceitar essa equiparação entre torturador e torturado? Afinal, estaremos então identificando como crime a resistência ao estado brutal implantado pela ditadura?

 

A cada vez que um militar nega a existência da tortura, perpetua-se a situação traumática para os torturados e seus familiares. A permanência da mentira e da farsa, como sabem os psicanalistas, impede a ocorrência da elaboração psíquica, mantendo o estado traumático. Por outro lado, a cada vez que um torturador vem a público confessar os detalhes sórdidos da tortura que praticava, alegando sua legitimidade e reafirmando sua falta de compaixão, do mesmo modo o trauma se afigura no horizonte.

 

Neste sentido, o Brasil deu à questão do pacto pós-ditatorial um destino bem diferente daquele que os vizinhos Argentina e Uruguai puderam dar. Para nós, não houve a possibi­lidade da reparação que apenas uma ab-reação, no sentido freudiano, poderia trazer. Não pusemos os algozes na cadeia. É verdade que avançamos, a duras penas, na recuperação do direito à verdade. A instalação da Comissão da Verdade, por iniciativa da Presidência da República, foi um passo inegável na direção da reparação, uma vez que trabalha pela suspensão da farsa que mantinha no ar o amargo das situações traumáticas. Também a instituição das "Clínicas do Testemunho" é inegável tentativa que o Estado faz de restituição aos que sofreram com sua violência. Contudo isso não basta. A ab-reação só pode se dar plenamente quando se faz justiça, algo de que passamos ao largo.

 

Os governos da democracia pós-ditadura de 1964 não enfrentaram o desafio de, por exemplo, intervir na formação dos militares, que continuaram a professar a doutrina da segurança nacional e a justificar o golpe como ato necessário e patriótico. Perdemos a oportunidade de renovar as Forças Armadas, educando novos oficiais para o seu papel constitucional. Chegamos até mesmo à situação paroxística de vermos uma turma de oficiais do Exército eleger, como patrono de sua formatura, o General Emílio Garrastazu Médici.

 

Falar à exaustão do golpe militar e da ditadura que a ele se seguiu certamente nos prepara para uma profilaxia do futuro. No entanto, não nos exime de continuar detectando e denunciando os enclaves da exceção que subsistem no chamado "estado de direito". Não nos iludamos supondo que uma democracia eleitoral extirpa os tentáculos da exceção. Esta é insidiosa e sobrevive à democracia como as bactérias resistentes sobrevivem aos antibióticos. O aniquilamento de seus enclaves só se dará quando houver o pleno funcionamento das instituições. Quando o braço do Estado tratar todos com isonomia. Quando a lei e suas salvaguardas valerem igualmente para o pobre e para o rico. Para o preto e para o branco. Para a mulher e para o homem. Quando não houver tortura de presos comuns.

 

Nesse sentido, atribuo grande valor à postura assumida por familiares de Rubens Paiva ao mencionarem publicamente o caso do pedreiro Amarildo como da mesma ordem do que sucedeu ao deputado, quando às vezes parece que suas mortes sob tortura aconteceram em eras e planetas diferentes. Justapor os dois fatos significa não fazer vista grossa ao que chamo aqui de enclaves da exceção no interior do estado de direito.

 

Finalizo com uma advertência feita pelo jornalista Elio Gaspari[13]: "1964 continua divisivo porque em 2014 há pessoas que veem nas instituições democráticas a origem e sede dos males. [...] O golpista é antes de tudo um cético em busca de surtos de força"[14].


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