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Resumo
Este artigo retoma, parcialmente, o contexto histórico do golpe de 1964 no Brasil, para ressaltar as interrupções de processos democratizantes então em curso e seus efeitos na destruição e na reconstrução de caminhos para o país. Por meio da clínica com ex-presos políticos e com adolescentes das periferias de São Paulo, procura evidenciar os efeitos tardios da ditadura em alguns dos componentes dos processos de produção de subjetividade. Ao final, indica a constituição do comum como uma direção possível e desejável na produção de novos processos de subjetivação.


Palavras-chave
ditadura civil-militar; tortura; clínica de ex-presos políticos; clínica da adolescência; políticas públicas; produção do comum.


Autor(es)
Maria Angela Santa Cruz
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

1.        Essa revista encontra-se no prelo.

2.        O Simpósio Psicanálise e Política foi impresso no Rio pela Bloch Editores em março de 1981, tendo como coordenadora administrativa Katia Mendes de Almeida.

3.        Essas falas de Hélio Pellegrino estão no artigo de Roberto Mello "Os barões da Psicanálise", inserido na coletânea supracitada, p.?14.

4.        R. Mello, op. cit., p.?14-15.

5.        C. Kats, Ética e Psicanálise.

6.        H. Besserman Vianna, Não conte a ninguém.

7.        M. Langer, "Introdução", in Questionamos - a psicanálise e suas instituições.

8.        M. Langer, op. cit., p.?9.

9.        M. Langer, op. cit., p.?9.

10.     M. Langer, op. cit., p.?9.

11.     M. Langer, op. cit., p.?10.

12.     C. Coimbra, Guardiães da ordem.

13.     C. Coimbra, op. cit., p.?73.

14.     C. Coimbra, op. cit., p.?75.

15.     Carta de Princípios do Instituto Sedes Sapientiae. Disponível em <http://sedes.org.br/site/carta_principios>. Acesso em: 9 out. 2014.

16.     L. Achard DeMaria;  A. A. Pereda Valdes; M. Casas de Pereda; C. Pla.; M. Viñar; M. Ulirksen Viñar, "Crise Social e Situação Analítica".

17.     L. Achard DeMaria;  A. A. Pereda Valdes; M. Casas de Pereda; C. Pla.; M. Viñar; M. Ulirksen Viñar, op. cit., p.?39.

18.     L. Achard DeMaria;  A. A. Pereda Valdes; M. Casas de Pereda; C. Pla.; M. Viñar; M. Ulirksen Viñar, op. cit., p.?39.

19.     C. Coimbra, op. cit., p.?114-115.

20.     Publicado em 5 set. 2014.

21.     M. R. Kehl, "Sua única vida", p.?50.

22.     M. Chnaiderman e R. Pinheiro (dir.), Sobreviventes, HD, 52 min, 2007.

23.     M. R. Kehl, Ressentimento, p.?15.

24.     M. R. Kehl, Ressentimento, p.?15.

25.     Para além da (Ir)racionalidade da violência. Vídeo. CDHEP, out. 2007. É possível também assistir a essa palestra no YouTube.

26.      C. Lungaretti, Náufrago da utopia.

27.      J. Freire-Costa. "Narcisismo em tempos sombrios".

28.      F. Tavares, Memórias do esquecimento.



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Abstract
This article partially resumes the historical context of the coup d'état of 1964 in Brazil, with the purpose of showing the interruptions of democratic actions in course at the time, and the effects on both destruction and construction of paths for the country. Through clinical practice with ex-convicted politicians and youngsters from the outskirts of São Paulo, the text intends to clarify the late effects of the dictatorship on some of the components that constitute the process of production of subjectivity. At the end, it indicates the constitution of the common as a possible and desirable direction on the production of new subjectivity processes.


Keywords
civil-military dictatorship; torture; clinics with ex-political prisoners; adolescence clinics; public policies; production of the “common”.

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 TEXTO

Figuras da resistência, o homo sacer brasileiro contemporâneo e a construção do comum

Figures of resistance, the Brazilian contemporary homo sacer and the construction of the common
Maria Angela Santa Cruz

A meu pai

 

A forma mais comum de se referir à ditadura no Brasil desencadeada pelo golpe militar de 1964 vinha sendo nomeá-la como uma ditadura militar. É intrigante, no entanto que, passados 50 anos do golpe, quase todas as publicações, chamadas nas diferentes mídias, eventos de análise e repúdio, referências sobre o golpe e sobre a ditadura têm incluído o significante civil na expressão até então utilizada. O que se passou nestes 50 anos que, só agora, podemos coletivamente nomear a ditadura pelo seu verdadeiro nome - ditadura civil-militar? Ou, colocada de outra forma a questão: o que se passou para que se excluísse, sistematicamente, da linguagem comum a referência à ditadura brasileira como uma ditadura desencadeada e mantida tanto por militares como pela sociedade civil? E quando se fala em sociedade civil, do que exatamente estamos falando?

 

Porque o golpe foi exatamente contra a sociedade civil, ou, ao menos contra a maioria da população que começava a entrever, no início dos anos 1960, a possibilidade de realização de mudanças substantivas, estruturais nos modos de vida, de emprego, de uso da terra, de educação, contra um povo que era visto e se via como subdesenvolvido. Foi um momento genético na organização das populações rurais - as ligas camponesas do nordeste -, nos sindicatos de trabalhadores, na educação com Paulo Freire e sua genial pedagogia da vida e do desejo - a Pedagogia do Oprimido -, nas escolas experimentais, nos movimentos das comunidades eclesiais de base, no movimento estudantil. No Comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964, o então presidente João Goulart afirma publicamente seu compromisso com as reformas estruturais, as então chamadas reformas de base - reforma agrária, tributária, bancária, administrativa, universitária e eleitoral -, com a modificação dos padrões de produção no campo, com mudanças na constituição de 1946, afirma enfim o compromisso com a imensa maioria da população - à época predominantemente rural - que vivia em condições de miséria, propondo com isso a ampliação da democratização dos direitos.

 

Essa Constituição é antiquada, porque legaliza uma estrutura socioeconômica já superada, injusta e desumana; o povo quer que se amplie a democracia e que se ponha fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a todos; que a todos seja facultado participar da vida política através do voto, podendo votar e ser votado; que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais e seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer discriminações religiosas ou ideológicas.

 

Todos têm o direito à liberdade de opinião e de manifestar também sem temor o seu pensamento. É um princípio fundamental dos direitos do homem, contido na Carta das Nações Unidas, e que temos o dever de assegurar a todos os brasileiros.

 

É apenas de lamentar que parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional[1].

 

Mas foi exatamente, cada vez mais o sabemos, uma minoria da sociedade civil - a elite econômica brasileira - quem arquitetou o golpe, justamente porque não queria que seus privilégios tivessem fim. Como diz Plínio de Arruda Sampaio em entrevista a Flávio Tavares[2], a própria Câmara de Deputados era composta em sua maioria - 80% - "por fazendeiros, ou filhos de fazendeiros ou genros de fazendeiros". No mesmo documentário desvela-se manobra da cia, através de um cover, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática - ibad -, que financiava campanhas de candidatos a deputado federal, estadual, governadores, grande imprensa, na orquestração da derrubada de João Goulart[3]. Articulada e sustentada pelos interesses dos eua em manter-se como hegemônico no lado ocidental do globo em tempos de Guerra Fria, por um lado, e aliançada com as correntes majoritárias das Forças Armadas, multinacionais, grandes empresários, latifundiários e banqueiros brasileiros, extraiu da força multitudinária viva e pujante do início dos anos 1960 a configuração destrutiva e mortífera que vivemos durante longos 21 anos - nossos anos de inverno.

 

Existia um senhor chamado Fidel Castro, que estava no poder em Cuba. E no Brasil, no início dos anos 60, existia muita confusão política. E tínhamos medo de que essas confusões se espalhassem e virassem uma coisa contagiosa. Formou-se um grupo de empresários para poder, então, estruturar uma reação à implantação da república socialista do seu Jango Goulart[4].

 

Medo do contágio. O capitalismo sempre soube se apropriar da potência do contágio das multidões para utilizá-las em sua sustentação e expansão.

 

Contagiantes são as primeiras páginas dos jornais de 20 mar. 1964 (Folha de S. Paulo), que impuseram imagens impressionantes da mobilização de meio milhão de pessoas reunidas na Praça da Sé, em São Paulo, momento final da Marcha da Família com Deus, pela Liberdade. Reação orquestrada pelas forças conservadoras - deputados, empresários, suas mulheres, que reproduziam o discurso do fantasma do comunismo para as mulheres de seus empregados - e foram estas imagens pujantes publicadas pelo Almanaque Brasil, que entraram nas casas das famílias das classes médias brasileiras. Uma delas faz parte de meu acervo de memórias de infância/pré-adolescência. Na capa do primeiro número pós-golpe da Revista Seleções - a sucursal americana nos lares brasileiros por décadas -, vibrava a foto da multidão da Marcha da Família. Seu cabeçalho dizia: Um povo que fez sua revolução.

 

Nem Goebbels poderia imaginar um plano tão perfeito para conseguir a adesão maciça da população ao golpe, em pele de revolução. Enquanto isso, enquanto a marcha contra o fantasma do comunismo e em defesa dos valores cristãos, da família e da propriedade seguia seu curso pré-programado, a operação Brother Sam[5] autorizava que a Força Naval norte-americana enviasse quatro navios torpedeiros, dois navios de escolta, uma frota de petroleiros americanos e um porta-aviões, ao porto de Santos. Estes aguardavam o sinal para entrar em ação, caso houvesse reação do governo, legalmente constituído, ao golpe encabeçado pelas tropas do General Olympio Mourão Filho em 31 de março de 1964, amanhecendo o dia 1o de abril de 1964[6].

 

E aqui já podemos pensar em um primeiro efeito do golpe sobre a produção das subjetividades brasileiras: o povo, mais uma vez na história do Brasil, foi feito de objeto de engodo, de manipulação, massa de manobra para a legitimação de um golpe contra si mesmo. Acabou aceitando e, de alguma forma legitimando, ao menos no início, um regime que praticamente extinguiu as riquíssimas sendas abertas no campo da educação, da saúde, da politização, do caldeirão social de produção de uma lógica de cidadania que só voltaria ao cenário brasileiro com a chamada constituição cidadã de 1988 - 24 anos depois. E o que acontece com um povo que é sistematicamente colocado à margem de si mesmo? Com um povo para o qual se forja uma inconsciência ativa de suas determinações político-existenciais, produzindo uma voluntária servidão? Com um povo para o qual se construíram novos e "terríveis" inimigos, oriundos de seu próprio seio?

 

 Originários de diferentes segmentos e classes sociais - trabalhadores rurais, operários, estudantes, profissionais, intelectuais, políticos, artistas -, compondo uma diversidade de formas de encarnar a resistência à ditadura, esses combatentes foram aprisionados nas categorias de subversivos, ou terroristas, transformados no homo sacer[7] brasileiro. Ou seja, pessoas matáveis não por uma decisão plebiscitária, coletiva, mas por uma construção ativa, insidiosa e sistemática feita habilmente pelos donos da "boa consciência" associados à grande imprensa, a partir da Doutrina de Segurança Nacional, importada dos EUA, e que previa a eliminação de qualquer um que pudesse causar conflitos ou dissidências em uma sociedade que se pretendia harmonicamente funcional dentro de um estado liberal, harmonia garantida por fuzis e paus de arara[8].

 

Figuras da resistência

Dos anos de 1990 até meados dos anos 2000, tive a honra de fazer parte da Equipe Clínico-Grupal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Atendia em São Paulo ex-presos políticos e familiares, atendimentos financiados pela Comunidade Europeia e pela onu, a partir de projetos elaborados pelo gtnm/rj. Os efeitos desse trabalho ainda hoje estão presentes em minha prática clínica de cada dia. É sempre necessário lembrar o quanto a tortura pode ser devastadora na vida, no corpo, na "alma" de uma pessoa. E, talvez, o primeiro ato analítico desenlouquecedor para aqueles que sobreviveram à tortura tenha sido poder oferecer um espaço-tempo de escuta e cuidado, bancado por uma associação de reconhecimento internacional - primeiro passo para a saída da clausura asfixiante da condição de sobrevivente naquele momento. Ter as condições sociopolíticas de fazer um reconhecimento coletivo explícito de seu valor como combatente, através do pagamento de um processo psicanalítico, fazia então o efeito oposto ao desmentido do trauma ferencziano: o acolhimento do traumático tem a potência de operar o início de uma inclusão necessária de um vivido da ordem do horror; nessa operação, desperta-se toda a força viva de se saber participante de um movimento de resistência ao totalitarismo[9].

 

Dentre os percursos analíticos que pude acompanhar, gostaria de ressaltar um processo subjetivo daqueles que sobreviveram à tortura. Saídas da casa dos horrores, a vivência de aniquilamento subjetivo fazia com que essas pessoas vagassem pelo mundo tal qual almas penadas - nem vivos, nem mortos. Tal condição era ainda mais intensificada pelo estranho pacto de silêncio que parecia haver, inclusive entre marido e mulher, entre pais e filhos, entre companheiros, sobre a violência da experiência da tortura. Junte-se a isso o fato de que muitos que saíram vivos dos porões da ditadura encontravam-se com um panorama desolador: a notícia de amigos e companheiros mortos pela repressão, partidos dizimados, o movimento de resistência paralisado. À medida que se conseguia retomar alguma coisa que pudesse se assemelhar a uma vida - trabalho, amizades, relações familiares, dificilmente lazer - a vivência no mundo dos homens comuns parecia ser ainda mais estranha. O que poderia haver de comum entre um sobrevivente da tortura e a maioria da população brasileira que pouco a pouco ia se esquecendo de que vivia sob uma ditadura?

 

A emergência de novos movimentos de resistência a partir de meados da década de 1970, ganhando força e expressão nacionais na década de 1980, certamente propiciou uma mudança subjetiva e a possibilidade de construção de novos territórios, afetados que fomos pelo novo campo de forças que se compunha. Momento genético, a atualização das forças de resistência se fez em vários campos: o movimento pela Anistia, o movimento pela Reforma Sanitária - que culminou no sus -, o movimento pela Reforma Psiquiátrica - que culminou nas atuais Políticas de Saúde Mental antimanicomiais, consolidadas em políticas de Estado -, os movimentos sindicais - que resultaram na construção do PT. Todos estes engrossaram e confluíram no movimento pelas eleições diretas - Movimento das Diretas Já! - incluindo uma pluralidade de atores sociais e produzindo novas modulações subjetivas. Ainda assim, ainda que um certo entusiasmo tivesse colorido o horizonte, a vivência psíquica de isolamento e de um profundo desalento perdurava em muitos desses sobreviventes. À época construí a imagem de uma bolha, como se cada um tivesse sido enclausurado em um tipo de bolha específico, com contornos e características próprias, mas todas estampando o mesmo certificado de fabricação: o poder soberano do regime de exceção transformando a vida em vida nua - zoé -, vida matável[10], a biopolítica radicalizada em tanatopolítica[11]. Corpo objeto da crueldade do mal, legitimado pela banalidade do mal[12] - o cumprimento de ordens[13]. A irrupção do real da dor, sem intermediações, a máxima impotência e desamparo dissolvendo os contornos subjetivos, produziu diferentes efeitos e estratégias de resistência psíquica para poder sobreviver; a partir daí, no entanto, é como se a vida entrasse em um constante estado de torpor onírico, de pesadelo.

 

Como retomar a vida viva? A vida de vigília compartilhada e compartilhável? Romper o pacto de silêncio, transformar a culpa e a vergonha de ter sobrevivido enquanto tantos outros foram mortos ou "desaparecidos" foram alguns dos desafios que teceram os processos das análises que pude acompanhar.

 

Existe um irredutível desse traumático violento, no entanto, que sobra. Talvez seja impossível não sobrar. O que resta processar? E como se faria esse processamento?

 

O homo sacer atual
da "democracia" brasileira

Ainda que a constituição de 1988, conquista fundamental no processo de democratização do Brasil, tenha vindo para substituir a lógica dos privilégios, propondo outra lógica para a sociedade brasileira - a lógica dos direitos -, passados 50 anos do golpe militar e 29 da reinstauração do regime democrático, sabemos o quão distante estamos de um funcionamento jurídico, político, econômico e social ancorado nas diretrizes dos direitos de cidadania.

 

O estado de exceção[14] continua existindo para grande parte da população brasileira, particularmente para a população jovem das periferias, principalmente negra. Segundo dados do Mapa da violência[15], as maiores taxas de homicídio são encontradas na população jovem e negra: de 2002 a 2012 há um crescimento de 32,4% de jovens negros assassinados, enquanto a taxa de homicídio entre os jovens brancos cai 32,3%. Violência seletiva.

 

Assim como seletiva foi a violência sistemática praticada nos manicômios. O Holocausto brasileiro[16] denuncia a morte de pelo menos 60 mil pessoas ao longo do século XX no hospício de Barbacena, genocídio cometido pelo Estado Brasileiro de pessoas internadas à força, com ou sem histórico de transtornos psiquiátricos - "epilépticos, alcoólatras, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas pelos patrões, mulheres confinadas pelos maridos, moças que haviam perdido a virgindade antes do casamento"[17].

 

Seletiva também continua sendo a violência praticada nas prisões, nas unidades de internação de jovens infratores, com todo o know-how sobre torturas herdado da ditadura civil-militar. Afinal, nossa Polícia Militar, criada nos tempos da ditadura, continua funcionando na lógica da Doutrina da Segurança Nacional, defendendo o Estado contra qualquer cidadão que seja identificado por ela como inimigo.

 

O critério de seleção: a violência é cometida majoritariamente contra a população pobre, sem poder contratual, como diria Basaglia[18].

 

Mas talvez uma das formas de violência mais efetiva, porque mais insidiosa, mais uma herança da ditadura civil-militar, vem sendo o genocídio sistemático praticado contra o pensamento, prática exercida tanto nos meios de comunicação de massa hegemônicos como nas escolas públicas. O golpe de 64 foi um duro golpe também para um movimento por uma educação pública, universal, de qualidade teórica, ética e política. Comparado a muitos países latino-americanos, nosso povo é um dos mais despolitizados. Ou seja, houve, a partir do golpe, um investimento ativo na manutenção de um padrão ínfimo de escolarização despolitizante de nosso povo, investimento este que ainda não se reverteu nestes anos de democracia.

 

Em São Paulo, esse quadro é trágico. Carlos[19] é um jovem da periferia de São Paulo, negro, que, assim como muitos que chegam ao serviço da Clínica do Sedes [20], não sabe ler nem escrever aos 17 anos de idade, tendo cursado a escola regular, pública, durante todos os anos de escolarização. Esperto, consegue driblar publicamente sua profunda vergonha de ser analfabeto. Como tantos outros jovens, principalmente das classes populares, busca reconhecimento e valorização através da roupa e adereços de marca. Como tantos outros jovens, se diverte dando seus rolezinhos de moto em seu bairro. Prática comum entre os jovens da periferia, pilotar uma moto provavelmente lhes traga uma sensação de potência, tão minada por sua condição de excluídos dos direitos básicos de cidadania. Impotência e onipotência: gangorra subjetiva que o coloca em muitas situações limite, material de trabalho em seu processo terapêutico em grupo de adolescentes. Mas Carlos tem vontade de aprender. Carlos tem vontade de sair de sua condição envergonhada e dolorosamente dependente. Depois de uma articulação com recursos internos e externos à Clínica, na perspectiva da Clínica Ampliada, Carlos pôde conquistar a competência para a leitura. Mas sua trajetória adolescente, assim como de tantos outros, foi marcada por dois episódios de violência policial: em abordagem na rua, foi barbaramente espancado pelos policiais. Sobreviveu por milagre. Na segunda vez, conduzido a uma unidade da Fundação Casa, foi aconselhado pelo staff jurídico de plantão a admitir o suposto delito que teria cometido - quebrar vidro de um carro - com o argumento de que assim ele poderia ser liberado no mesmo dia; caso contrário, teria que passar 15 dias na Fundação até que o juiz desse um parecer. Saiu sob LA - Liberdade Assistida - que vem sendo usada por policiais como senha para a continuidade da teia perversa de violência em que tantos jovens acabam enredados. Como mais uma estratégia clínica, na perspectiva da Clínica ampliada, conseguimos um encontro com uma defensora pública, que confirmou essas práticas jurídico-policiais contra os jovens de periferia. Mas nem mesmo ela, já tristemente habituada com essa trama da violência, pôde dar um encaminhamento mais alentador para a situação. Desamparo civil alimentando o desamparo subjetivo.

 

E a sociedade diante desse quadro perverso? Luiz, também negro, outro jovem atendido pelo NURAAJ[21], desenhou a posição em que a sociedade coloca os jovens de periferia: no canto superior direito de uma folha, desenha um tribunal nomeado como os bons; no canto inferior esquerdo, desenha uma sepultura; no centro da folha, desenha a si mesmo de chifres, arma na cintura, dedo médio em riste; entre ele e os bons, um traço indicando 20 km de distância. Esta vem sendo uma construção social de décadas: a demonização e criminalização dos jovens de periferia os colocam como os novos inimigos sociais, alguns dos atuais homines sacri brasileiros, vidas matáveis. Afinal, como disse sem nenhum pudor uma mulher de classe média alta, em uma situação social cotidiana, em 2013, à época da suposta segunda onda de ataques do PCC em São Paulo: "Dizem que para cada policial morto, a polícia mata 10 bandidos. Devia matar 20!"

 

Como parecem ser matáveis também, em lento processo de dessubjetivação e reconstrução de subjetividades assujeitadas, despotencializadas, idiotizadas, as vidas de tantos que o Estado, desde a ditadura, confinou nos manicômios - o poder soberano em suas diferentes formas. Apesar do vigoroso movimento pela Reforma Psiquiátrica, em curso desde meados da década de 1970, que conseguiu fechar manicômios e propor como política pública de saúde mental uma rede de serviços substitutiva, de base territorial, ainda neste ano de 2014 esta outra forma de violência seletiva continua determinando os destinos de tantos sujeitos e de suas famílias. João[22], um dentre cinco filhos de uma família de baixa renda, sem diagnóstico, foi internado no Hospital Vera Cruz de Sorocaba aos 14 anos de idade, em 1981, ainda nos anos da ditadura. Vítima de erros médicos sucessivos desde quando era bebê, João ficara com sequelas motoras, possivelmente cognitivas, e mais resistente à obediência. Em busca de um tratamento para seu filho, a mãe de João o interna nesse Hospital, por orientação do staff da então febem[23], onde fora procurar ajuda. Em todo o tempo em que ficou internado - 33 anos! - sua família o visitava e insistia em trazê-lo de volta. A todos esses pedidos, quando conseguiam falar com o médico responsável - o único profissional com poder de lhe dar alta - recebiam a mesma resposta: que o melhor lugar para ele era no hospital, onde teria tratamento, e que ele não teria condição de convívio familiar. Tratamento? Medicação de contenção, quando ficava agitado. Perdendo progressivamente a saúde, os dentes, hábitos de higiene pessoal, o pouco de lucidez que talvez tivesse, João morre no hospital, de causas não esclarecidas, aos 47 anos de idade, em janeiro de 2014[24]! Com tanto tempo internado - praticamente toda sua vida - não teve tempo de se beneficiar da recente intervenção feita pelo Ministério da Saúde neste que, como tantos outros hospitais quase inexpugnáveis da região de Sorocaba, continuam alimentando a chamada "indústria da loucura"[25].

 

O que restou para a família? A imobilidade e a impotência da culpa privatizada. Exceção feita a um de seus membros, de outra geração, que com a persistência e obstinação dos resistentes enfrentou esse lento "assassinato legalizado" com as armas proibidas e coibidas pela ditadura: o pensamento, o acesso à informação e à cultura, e a fala.

 

Carlos, Luiz e João. Diferentes casos de razões públicas produtoras de sofrimentos privados, parafraseando Jurandir Freire Costa[26]. Configurações subjetivas não diretamente herdeiras dos efeitos da ditadura, mas herdeiras do que a ditadura nos legou: o adiamento, a morosidade e as dificuldades políticas, econômicas, sociais, culturais, subjetivas, da construção de um país que garanta os direitos de cidadania básicos para seu povo, através de instituições democráticas. Como afirma Plínio de Arruda Sampaio em sua entrevista para o imperdível documentário "O dia que durou 21 anos": "O país, nos anos 60, toma consciência da necessidade de dar um passo, um passo na direção da democracia e da nação" (transcrição livre). A truculência do impedimento desse passo, feita pela ditadura, adiou o exercício de nosso caminhar autônomo.

 

Mas engana-se quem pensa que os efeitos da ditadura civil-militar modelaram apenas as subjetividades dos ditos excluídos, ou dos chamados inimigos do Estado de ontem - os subversivos, os terroristas - ou de hoje - os jovens das periferias, os chamados delinquentes ou, mais recentemente, vândalos pela mídia.

 

Na prática clínica, seja de consultório, seja na clínica dita institucional, há um fenômeno recorrente que se presentifica a cada recepção de pais que buscam psicoterapia para seus filhos - crianças ou adolescentes: a frequência com que deparamos não com um pedido de ajuda para um possível sofrimento psíquico, subjetivo, mas com um pedido de conserto, de normalização e consequente retomada do controle da vida dos filhos pelos pais ou responsáveis.

 

Certamente este não é um fenômeno exclusivamente brasileiro. Afinal, Foucault há tempos indicou como as sociedades ocidentais modernas operam através de um regime específico de poder - o poder disciplinar e o biopoder - em que é a própria vida que entrou nas equações do poder. Nesse novo regime, articulados sob a designação de biopolítica, todas as chamadas ciências da vida e as ciências humanas são convocadas a serem instrumentos de normalização social. O fenômeno da medicalização social - a redução de questões complexas a um problema médico - nessa perspectiva, não é novo. Vem construindo novas e mais eficientes estratégias de controle na configuração contemporânea da sociedade como Sociedade de Controle, estratégia de poder que seria, segundo Deleuze[27], a intensificação das estratégias das sociedades disciplinares. A Psicologia e a Psicanálise não são exceção. A nós é, frequentemente, endereçado um pedido de adaptação, coerente com nosso mandato social de guardiães da ordem[28]. E é aqui que se coloca vigorosamente em questão nossas opções clínico-ético-políticas. A quem respondemos? A que respondemos? Para que respondemos o quê?

 

E o que há de comum também, nesses pedidos, é o lugar ocupado por essas crianças e adolescentes, principalmente do sexo masculino, na dinâmica familiar, principalmente na economia desejante materna: filho-falo, na melhor tradição freudiana. Junte-se a isso, e talvez parte do mesmo tipo de configuração edipiana, a desautorização do pai, sua desvalorização, seu enfraquecimento pela figura materna e teremos aí um quadro bastante comum e preocupante: mulheres-mães tiranas, pais impotentes, filhos agitados como estratégia de lidar com a angústia que lhes sobra, sem referências de identificação confiáveis. Ainda que esta configuração atravesse as diferentes classes sociais, sua presentificação nas famílias de classe média alta é particularmente perturbadora. Nossa hipótese é que, uma vez desinvestido o espaço público, espaço em que habitam as questões do comum - questões de cidadania, de mobilidade urbana, da educação pública, da vida das crianças e dos jovens, da saúde pública, da cidade, da produção desejante comum - restringindo-se e confinando as vidas a um modo de viver individualista e isolado, enclausura-se a vida de tal forma que sobram poucos objetos de investimento libidinal no horizonte do vivível. Freud também já nos indicara esse caminho da pulsionalidade humana: a pulsão é contingente, e vai fazer conexões a depender dos objetos ofertados por esta ou aquela cultura, ou, spinosianamente falando, a depender das afecções dos encontros de corpos.

 

Outro tipo de bolha. Desta vez com o certificado de fabricação dos muros do condomínio ou do shopping center. Há pouco mundo. Falta mundo, tanto para os adolescentes como para suas famílias. Um adolescente de um de nossos grupos terapêuticos, de classe média, perguntava curioso a seu colega de grupo, de classe popular: "O que é uma van?" De uma posição quase inversa na cartografia da cidade, uma adolescente de outro grupo dizia como a cidade aparecia diferente a depender da posição desde a qual se a olhava: através dos vidros do carro era uma cidade, através dos vidros do ônibus era outra.

 

Mas, para abrir-se para o comum, deixar-se afetar pelo comum, deixar-se contagiar e assim partilhar da potência constituinte da multidão[29], há que se romper com a lógica tão arraigada em nossa sociedade brasileira que é a lógica das pessoas, dos medalhões, do "você sabe com quem está falando?"[30].

 

E este pode ser um dos vários aprendizados possíveis com a experiência dos movimentos de junho de 2013. Acompanhando Pelbart em seu belíssimo artigo na Folha de S. Paulo de 19 jul. 2013[31], Peter argutamente entendeu que só uma resposta como a de Odisseu pode nos tirar a todos da caverna do cíclope, da bolha. À pergunta sobre a identidade de uma integrante do Movimento Passe Livre, esta teria respondido: "Anota aí, eu sou ninguém". Resposta que confirma, segundo Pelbart, "a importância de uma certa dessubjetivação para o exercício contemporâneo da política", na esteira da afirmação de Agamben de que "os poderes não sabem o que fazer com a singularidade qualquer".

 

E para o fantasma do comunismo, aquele mesmo que atrasou em 21 anos a construção dos caminhos deste país, as palavras de Peter Pál Pelbart podem servir como bússola e como intervenção:

 

Tornar cada vez mais comum o que é comum - outrora chamaram isso de comunismo. Um comunismo do desejo. A expressão soa hoje como um atentado ao pudor. Mas é a expropriação do comum pelos mecanismos de poder que ataca e depaupera capilarmente aquilo que é a fonte e a matéria mesma do contemporâneo - a vida (em) comum[32].


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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