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Resumo
Este trabalho procura discutir, sob o vértice da teoria winnicottiana, a demanda de dependência que se apresenta na díade mãe-bebê e suas derivações na relação analítica, o manejo da técnica psicanalítica e a compreensão da dinâmica emocional que pode vir a se estabelecer na relação transferencial. Destaca a relação de dependência revertida como geradora e transmissora de uma experiência emocional depressiva difícil de ser transponível sem um trabalho analítico.


Palavras-chave
dependência; dependência revertida; objeto transicional; díade mãe-bebê; relação analítica; depressão.


Autor(es)
Maria Cecília Pereira da Silva
é membro efetivo, Analista de criança e adolescente e docente da SBPSP, com pós-doutorado em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro do Departamento de Psicanálise de Criança, professora do curso de Introdução à Intervenção Precoce na Relação Pais-Bebê do Instituto Sedes Sapientiae, participante do Setor de Saúde Mental do Depto. de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Autora dos livros A paixão de formar (Artes Médicas) e A herança psíquica na clínica psicanalítica (Casa do Psicólogo).


Notas

1 D. W. Winnicott, “Teoria do relacionamento paterno-infantil”, p. 38-54.

2 Conceito definido por Raquel Z. Goldstein no trabalho “El niño como objeto transicional de la madre: demanda de dependência revertida”.

3 H. Racker, Estudos sobre técnica psicanalítica.

4 D. W. Winnicott, “Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação psicanalítica”, p. 225-233.

5 E. O. Dias, Aquém do Princípio do Prazer.

6 D. W. Winnicott, “Os objetivos do tratamento psicanalítico”, p. 153.

7 R. Z. Goldstein, “El niño como objeto transicional de la madre: demanda de dependência revertida”.

8 D. W. Winnicott, “Objetos transicionais e fenômenos transicionais”, p. 16.

9 D. W. Winnicott, “A agressividade em relação ao desenvolvimento emocional”.

10 D. W. Winnicott, “O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil”, p. 155.

11 D. W. Winnicott, “O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê”, p. 22.

12 E. O. Dias, “A regressão à dependência e o uso terapêutico da falha do analista”, p. 71.

13 Identificações mórbidas são aquelas comunicações inconscientes encarregadas da transmissão dos fenômenos transgeracionais e intergeracionais traumatizantes, em que o self é tomado por excessivas projeções de aspectos inconscientes dos objetos externos primários, impedindo que os pacientes possam olhar o seu meio ambiente de uma forma objetiva, como um objeto fora de si, fora do self, ou seja, não podem colocar a situação emocional sob o domínio da própria criatividade, não podem sequer sonhar ou brincar. In: M. C. P. Silva, A herança psíquica na clínica psicanalítica.

14 D. W. Winnicott, “Objetos transicionais e fenômenos transicionais”, p. 389-408.

15 R. Z. Goldstein, “O objeto transicional de Winnicott”, p. 157.

16 R. Z. Goldstein, op cit., p. 161.

17 D. W. Winnicott, “Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação psicanalítica”, p. 225-233.



Referências bibliográficas

Dias E. O. (1994). Aquém do Princípio do Prazer, Anais do iii Encontro Latino- Americano Sobre o Pensamento de Winnicott.

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_____. (1994). El niño como objeto transicional de la madre: demanda de dependencia revertida, Anais do iii Encontro Latino-Americano Sobre o Pensamento de Winnicott.

Racker H. (1992). Estudos sobre técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas.

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_____. (1963/1983). Dependência no cuidado do lactente, no cuidado da criança e na situação psicanalítica. In: O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, p. 225-233.

_____. (1967/1975). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, Imago, p. 155.





Abstract
This paper’s goal is to discuss, through the vertex of Winnicott’s theory, the demand for dependence that is displayed in the motherinfant pair and its consequences in the analytic relation, in the management of psychoanalytic technique and in the understanding of the emotional dynamics established in the transferential relation. The author outlines the reversed dependence relationship as generating and transmitting a depressive emotional experience which is difficult to overcome otherwise than within an analytic process.


Keywords
dependence; reversed dependence; transitional object; mother- infant pair; analytic relation; depression.

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 TEXTO

A depressão transmitida através da relação de dependência revertida na díade mãe-bebê

Depression transmitted by the reverse dependency relationship between mother and baby
Maria Cecília Pereira da Silva

Introdução

A investigação clínica sobre o tipo de demanda à dependência que se apresenta na relação analítica vai determinar o manejo da técnica e a compreensão da dinâmica emocional que pode vir a se estabelecer na transferência e na contratransferência.

Segundo Winnicott [1], nos primeiros momentos da relação mãe-bebê, a mãe experimenta uma regressão à dependência que lhe possibilita compreender e atender o desamparo vivido pelo bebê. O bebê, por sua vez, vive uma relação de dependência absoluta. Assim, se estabelece uma relação fusional na díade mãe-bebê e, a seu tempo, através da desilusão e dos fenômenos transicionais, essa demanda à dependência vai se alterando a favor do desenvolvimento do bebê. Se a mãe não pôde viver esses primeiros estágios da relação mãe-bebê suficientemente bem, ela experimenta uma demanda à dependência revertida [2], que vai se reeditar na relação com seu bebê e na relação analítica.

Neste trabalho procuro discutir qual a importância do manejo dessa temática de dependência na situação analítica, destacando a demanda de dependência revertida e ilustrando com fragmentos de uma análise.

A seguir, dirijo-me às derivações do conceito de objeto transicional enquanto uma metáfora, positiva ou negativa, útil para a compreensão das relações de dependência na díade mãebebê e suas repercussões n 1 D. W. Winnicott, “Teoria do relacionamento pater- o setting analítico.

O manejo da dependência na situação analítica

Qual a importância para nosso trabalho analítico de se distinguir o tipo de demanda de dependência emocional que o bebê estabelece com a mãe e, em especial, da mãe em relação à criança, demanda de dependência revertida?

Os aspectos estruturantes ou fundantes da realidade psíquica do sujeito necessariamente nos remetem à relação mãe-bebê. Todos os autores, Freud, Klein, Winnicott, Lacan…, em suas metapsicologias, apontam para a história da evolução do bebê que, em algum momento, terá que transitar nessa relação inicial e iniciante mãe-bebê, para se constituir num sujeito-ser individual. Nesse sentido, Winnicott chama atenção para o fenômeno transicional como um fenômeno intermediário fundamental para propiciar o desenvolvimento psíquico do bebê.

Essa preocupação, a meu ver, é fundamental para nortearmos nossa práxis e técnica psicanalíticas, e verificarmos que tipo de transferência o paciente psicótico/borderline vai estabelecer com o analista, e os possíveis fenômenos contratransferenciais que podem ser despertados.

A captação das fantasias do paciente, que se refletem na contratransferência, dependerá do grau em que o próprio analista perceba seus processos contratransferenciais, ou seja, da continuidade e da profundidade de seu contato consciente consigo mesmo [3].

Aqui cabe a pergunta de qual é de fato o papel do analista. O paciente que estabeleceu uma relação com uma figura materna da qual não pôde depender deve reviver com o analista a confusão e o desamparo dessa experiência. Não teria o analista, como a mãe suficientemente boa, que suportar transitoriamente as amorfias e os estados caóticos, sem orientação do paciente, para que esse possa viver em segurança este estado de não integração? E, ainda, posteriormente, venha penetrar na área da transicionalidade e chegar a usar o analista como uma pessoa real e separada, tendo ele mesmo o sentimento de ser? E será o analista capaz de suportar todo esse processo, que inclui a desilusão, tão imprescindível para o desenvolvimento e crescimento emocional?

É preciso entender a natureza do desamparo que se instala na regressão à dependência. Não se trata aí de satisfação do desejo porque o paciente (como o bebê) é ainda muito imaturo para desejar algo. Se nesses casos o analista atuar como um objeto gratificante será esta a função analítica necessariamente boa? Penso que esta seria uma má interpretação do que descreve e prescreve Winnicott. É comum o analista, ao tentar promover um ambiente facilitador e a regressão, atender à demanda de desamparo do paciente, pensando não poder frustrá-lo ou desiludi-lo. Confunde o analista ideal gratificante com o analista suficientemente bom.

Quando destaca a importância do manejo nas vivências de dependência, Winnicott privilegia os sentimentos de desamparo infantil que precisam ser vividos tal qual emergem e, nesse sentido, ele altera a visão kleiniana que privilegia os sentimentos sádicos [4]. Disso também deriva uma noção errônea de que o analista winnicottiano não poderia frustrar o paciente, gerando muitas vezes uma relação analítica idealizada. Winnicott está preocupado com a natureza e o momento da interpretação analítica, como assinala Elsa Oliveira Dias:

A interpretação que excede a necessidade regressiva pré-verbal e pré-libidinal do paciente, que ainda está fundido no analista, constitui-se numa invasão porque destaca, antes do tempo, a existência separada deste e remete a um eu que ainda não está lá para ser encontrado. Esta consciência pode ser prematura e repete o padrão de invasões ambientais. Um outro perigo: a interpretação baseada em vida pulsional confirma, para o paciente, que uma comunicação só pode se dar em termos do envólucro, da organização neurótica, do falso self patológico, com o qual ele recobriu a ausência de si. [5]

Por outro lado, essa autora nos lembra de que é preciso que, lentamente, o bebê ou o paciente regredido entrem em contato com a existência do não eu. Então, a interpretação, livre da chave pulsional, pode adquirir outro caráter e oferecer um limite: “Se não fizer nenhuma (interpretação), o paciente fica com a impressão de que compreendo tudo. Dito de outra forma, eu retenho uma certa qualidade externa por não acertar sempre no alvo ou mesmo estar errado” [6].

Raquel Z. Goldstein nos mostra, em seu trabalho, que a mãe ao se identificar com o bebê experimenta uma condição regressiva normal, adequada e necessária, revivendo sua relação original com a própria mãe [7]. Isso é necessariamente bom, porque só assim a mãe poderá realizar a função de holding, descrita por Winnicott. É através dessa espécie de regressão a serviço do outro, o bebê, que a mãe poderá compreender, de forma criativa, seu infante, suas comunicações, identificando-se com suas necessidades e vulnerabilidades. Como em qualquer exercício de holding, essa identificação não é paralisadora, estagnante, mas, pelo contrário, é metabolizadora para favorecer o desenvolvimento do outro. A mãe suficientemente boa

é capaz de se identificar com o bebê, receber suas demandas e gestos espontâneos, suportar e dar suporte, permanecer lá e, sem alteração da qualidade de sua presença, estar disponível para cuidar do bebê nos momentos de tranquilidade do holding. E assim se inicia a humanização do bebê, e o pensar e o fantasiar se vinculam a essas experiências primitivas. Se tudo correr bem as experiências relativas aos fenômenos transicionais virão naturalmente e serão uma passagem para o bebê poder lidar com as ansiedades de perda e separação. [8]

A relação de dependência revertida emerge quando a mãe, não sendo capaz de assumir a função que acabo de descrever, e angustiada ou ansiosa com o desamparo do bebê, impele esse a ter apenas aquelas necessidades que ela possa suprir e não outras. Desse modo, o bebê constrói uma forma de ser para evitar angustiar a mãe, cuidando dela. Com isso, o bebê retém o gesto espontâneo e fica impedido de constituir o seu próprio self, isto é, o bebê vai se constituir a partir da casca e não do cerne, e não de dentro de si [9]. Vou tratar mais detalhadamente desse aspecto logo a seguir.

Raquel Goldstein aponta como a mãe suficientemente boa pretende, no cuidado materno, não ser tudo para o bebê e nem que o bebê seja tudo para ela. Cabe à mãe nesta relação sustentar a desilusão, a ruptura (função paterna), para derrotá-lo deste mundo onipotente e o bebê poder nascer psiquicamente. Mas estará o analista preparado para tal tarefa de desilusão, fortemente experienciada com pacientes que possuem essas características?

Voltando à questão sobre a natureza do desamparo do paciente, é preciso notar que o analista, em vez de dar suporte a essas angústias, pode favorecer uma relação apaziguadora, isto é, ótima em vez de suficiente, que é uma armadilha montada no espaço analítico, da qual o analista deveria escapar, buscando o campo da mãe suficientemente boa, envolvendo o manejo do holding que contém o handling. O grau dos estados caóticos e de não integração do paciente e da elaboração dos aspectos contratransferenciais do analista pode tornar mais complexo esse campo.

Fragmentos de uma análise

Passo agora a relatar alguns fragmentos clínicos da análise de uma paciente de 35 anos, casada e que tem uma filha, na qual acredito que podemos observar a dinâmica de uma demanda de dependência revertida.

Lia conta que é comum sentir muito medo quando vai se deitar e a luz se apaga. Nessa hora, especialmente quando seu marido viaja, sente medo de estar com alguma doença, passa e repassa em sua mente se fechou a porta, se ligou o alarme da casa, se os carros estão na garagem, onde está sua filha. Aí se recorda que está no quarto dormindo.

Nesses momentos nada a assegura. Na maioria das vezes, o desamparo é tão grande que coloca sua filha em sua cama para lhe fazer companhia, quando ela não vai por conta própria. Então, se acalma e, como se tivesse sua mãe ao lado, adormece. A filha agora cuida dela e sua mera presença funciona como um holding necessário para acalmar sua turbulência emocional e poder se entregar ao sono.

Lia relata momentos de muito desamparo desde muito pequena, sua mãe viajava com freqüência, às vezes por dois meses, e ela ficava com os avós.

Na pré-adolescência, quando as vivências de desamparo se reeditam, sua mãe ficou muito doente. Recorda-se de suas visitas ao hospital. São lembranças dolorosas que não gosta de rememorar. Descreve uma relação conflituosa e distante com a mãe, e com o pai, com quem não pôde e não pode contar. Podemos imaginar que Lia não teve uma mãe suficientemente boa e não pôde internalizar um ambiente protetor. Daí, também, suas crises de medo e, ainda, de hipocondria, que ela relata com frequência, indicando uma realidade interna vazia e amortecida.

As noites de domingo são terríveis. Frequentemente cai num vazio, numa confusão interna. A única coisa que a acalma é pensar que vai me encontrar na segunda-feira.

Raramente falta às sessões e procura trazer um material interessante para me agradar. Não pode ser espontânea. As coisas duras, brigas com o marido, o que a angustia, que sai de seu campo de controle e com que sente não conseguir lidar, ela procura esquecer, e quando chega a me relatar, tudo está distante emocionalmente pois foi transformado em fatos históricos. Lia não quer me preocupar e se tornar uma paciente pesada para mim. Desse modo, anuncia que não pode depender.

Esses fragmentos ilustram a situação emocional de dependência revertida, na sua vivência com a mãe, com a filha e agora na situação transferencial com a analista. Refletindo sobre este caso clínico, vemos como Lia se perde em relação ao tempo e ao espaço, não reconhece o que já fez, não localiza onde está e onde está a filha, não pode ficar só. Aponta para uma vivência de desamparo, de falta de holding interno, de uma experiência primitiva que falhou no período da não integração, quando o que ela necessitava era entregar-se ao ambiente e deixar-se cuidar. Deixada a si mesma, perde-se, desorienta-se, desorganiza- se emocionalmente.

Quando cuida da analista, repete na transferência a impossibilidade de viver a dependência e, ao mesmo tempo, tenta descobrir quem é a analista e se pode confiar. Nunca pôde depender. Provavelmente não pôde contar com a constância e sustentação emocional que deveria ser oferecida no início da vida pela mãe suficientemente boa e relaxar diante de alguém com quem de fato pudesse contar. Sua mente foi então obrigada a fazer o papel do ambiente protetor, ficar alerta o tempo todo para cuidar da mãe e não pesar. Hoje não pode ser simplesmente a mãe suficientemente boa. Superprotege a filha, não a imagina como alguém com recursos próprios que possa suportar frustrações, ausências e separações, e também não a deixa depender dela. Dizendo para si mesma estar tomando conta da filha, Lia depende da filha para acalmar seus medos, para dormir.

No sentido geracional, posso imaginar que esta paciente que viveu este nível de desamparo com uma mãe ausente e deprimida fica identificada com a filha desamparada, tornando-se uma mãe ótima-intrusiva para atender ao seu desamparo e não ao da filha.

Esta paciente não pôde viver a ilusão da onipotência e transfere para a relação analítica a experiência de não poder reviver a situação de dependência absoluta com a analista. Quando Lia cuida da analista e traz somente as coisas boas, como presente que sacia a analista, parece uma tentativa de comunicar que as interpretações podem ser vividas como invasivas, o que é típico da experiência de dependência absoluta. O que o paciente necessita, no resgate do estado de não integração, é que o analista permita- lhe viver tal qual é, entregue a si mesmo e à sua confusão, sem a tarefa prematura de ordenação do caos. Para tanto, é preciso que o analista possa suportar e sustentar essa situação sem apressála e sem, ele próprio, sucumbir à necessidade de organizar tudo e dar-lhe sentido. É importante neste cenário que o analista possa sobreviver a estes momentos de não existência a que o paciente o obriga, em função de viver, pela primeira vez, a ilusão de onipotência. Mais tarde, o analista terá de sobreviver, a favor do crescimento do indivíduo, aos ataques destrutivos do paciente, referentes à sua tentativa de colocar o analista fora da área do controle onipotente.

Com estas vivências de confusão, medo e desamparo, poderíamos pensar que a paciente traz seus aspectos psicóticos, abrindo espaço para encontrar seu verdadeiro self. A sua possibilidade de vir a ser, a sua capacidade de ter um self têmporo-espacial parece ter ficado abalada, sobretudo do ponto de vista da personalização: residência da psiquê no corpo e da imagem de si mesma, que não pôde ser refletida pelo rosto da mãe. Diz Winnicott em seu trabalho “O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil”:

Alguns bebês não abandonam inteiramente a esperança e estudam o objeto e fazem tudo o que é possível para ver nele algum significado que ali deveria estar, se apenas pudesse ser sentido. Alguns bebês, tantalizados por esse tipo de relativo fracasso materno, estudam as variáveis feições maternas, numa tentativa de predizer o humor da mãe, exatamente como todos nós estudamos o tempo. […] Se o rosto da mãe não reage, então o espelho constitui algo a ser olhado, não a ser examinado. [10]

Não apenas a mãe ausente e deprimida, como a de Lia, mas também outros tipos de distúrbios emocionais da mãe podem interferir na facilitação ou não da constituição do self do bebê, como Winnicott assinala no trabalho “O relacionamento inicial entre uma mãe e seu bebê”:

Num extremo, temos a mãe cujos interesses próprios têm caráter tão compulsivo que não podem ser abandonados […]. No outro extremo, temos a mãe que tende a estar sempre preocupada, e nesse caso o bebê torna-se sua preocupação patológica. Essa mãe pode ter uma capacidade especial de abdicar do próprio self em favor da criança, mas qual o resultado final disso? […] A mãe patologicamente preocupada não só permanece identificada ao seu bebê por um tempo longo demais, como também abandona de súbito a preocupação com a criança, substituindo-a pela preocupação que tinha antes do nascimento desta. [11]

É possível que a mãe não possa se separar do bebê tão logo seja necessário para ele se desenvolver. E, então, perdura a dependência revertida, em que o bebê vem atender à demanda de necessidades emocionais da mãe, que não pode se separar dele, mantendo a fusão inicial. O bebê, então, “aprende a ter aquelas necessidades que dão à mãe a sensação de se sentir viva” [12] e atuante, encarregando- se de mantê-la assim. Caracteriza-se, portanto, uma vinculação patológica mostrando a dependência da mãe em relação ao bebê, não dando lugar para que a dele aconteça e muito menos para que venha a se tornar uma individualidade, apontando para uma demanda de dependência revertida. A patologia da avó transitando pela neurose da mãe culminará em uma psicose do neto ou neta. Então, teríamos a transmissão da patologia, não uma transmissão genética, mas uma transmissão por meio de relações de interdependência, em três gerações, por meio das identificações mórbidas13. Essa questão de como a Psicanálise pode contribuir na prevenção da doença mental é uma preocupação constante em toda a obra de Winnicott.

A perspectiva de chamar atenção não só para a questão do analista, mas para a figura da mãe, que é o paradigma do analista para Winnicott, da realidade de sua personalidade, de seus conflitos identificatórios, de seu narcisismo na estruturação da personalidade do paciente-criança, é uma forma de expandir as consequências teórico-clínicas do pensamento de Winnicott, ocupando-se dos dois elementos da díade, mãe e bebê. Esta proposta poderia derivar também em uma reflexão interessante sobre a formação analítica e suas vicissitudes.

O objeto transicional como metáfora positiva ou negativa

Raquel Goldstein propõe que na situação de dependência revertida o bebê funcione como objeto transicional da mãe. Posso compreender o uso do conceito de objeto transicional, visto sob o vértice da mãe, somente enquanto uma metáfora positiva ou negativa, que pode nos ser útil para compreendermos a dinâmica das relações primitivas de dependência que pode se estabelecer na díade mãe-bebê e na dupla analítica.

Winnicott descreve o objeto transicional, como aquele objeto intermediário e necessário do mundo de fantasias do bebê, que é a zona intermediária entre o objeto subjetivo e o objeto real, e que, como tal, o ajudará a lidar com a separação e a ausência da mãe e a sobreviver a essa desilusão, tão sofrida e frustrante, que envolve o crescimento emocional. É aquele objeto que emerge do campo de ilusão presente na relação mãe-bebê, fundamental para desenvolver a curiosidade e a criatividade do bebê [14]. Como coloca Raquel Goldstein em seu trabalho “O objeto transicional de Winnicott”: “É impossível aprender a separar-se, sem a ilusão de novos reencontros gratificantes” [15].

Poderíamos pensar o objeto transicional enquanto uma metáfora positiva na díade mãe-bebê. Nesse caso a mãe se identificaria com seu bebê e reexperimentaria momentos de ilusão vividos em sua infância, brincando com ele. É em função dessa identificação que ela é capaz de compreender e atender às necessidades do bebê. Nesses momentos iniciais da relação com o bebê, a mãe estaria se remetendo a momentos vividos como fenômenos transicionais. O bebê, por sua vez, ser vivo e imaginário (objeto transicional da mãe), propiciaria à mãe, se ela mantém a criatividade, a identidade materna. Ele ensina a mãe a ser mãe no exercício próprio da maternidade, e nesta função ela pode vir a se realizar psiquicamente. Nesse sentido se contextualiza um momento de transição inicial da relação mãe-bebê, até que a mãe possa permitir a desilusão, superando esse momento fusional de logo após o nascimento.

No sentido metafórico negativo, a relação de dependência da mãe para com o bebê evidenciaria um fenômeno transicional patológico da mãe. O tipo de preocupação materna é determinante para que o bebê possa vir a ter um desenvolvimento normal. Pode ocorrer, no entanto, que o bebê não se constitua em algo externo a essa mãe, pois no processo de constituição do objeto subjetivo dela houve uma falha. A criança, então, poderia ser para a mãe um prolongamento de si mesma, um nada, uma coisa-infante, e a mãe apenas repetiria com o bebê seu próprio desamparo, sem poder oferecer a maternagem ativa de que ele necessita. A mãe, por sua vez, poderia vir a se constituir para este bebê numa mãe intrusiva, narcísica, caótica, imprevisível ou morta. Assim poderia se caracterizar a situação de dependência revertida onde o conceito de objeto transicional, enquanto objeto vivo e imaginário, só poderia ser utilizado enquanto uma metáfora negativa, como uma tentativa de construção imaginária e fictícia do sujeito que repete uma patologia emocional muito primitiva.

E como esta metáfora se daria transposta para a dupla analítica, quando o paciente não encontra um analista continente e não pode dele depender?

No trabalho com pacientes difíceis, com uma possível demanda à dependência revertida, poderia o analista funcionar como a mãe, o qual pode agora corrigir o percurso que a mãe real não foi capaz de proteger, no sentido de não ter propiciado as condições necessárias (previsibilidade, segurança, regularidade etc.)? Quem sabe não terá o analista que se oferecer não só como mãe presente, constante, confiável, que deixa seu bebê-paciente brincar sozinho na sua presença, na companhia da mãe-analista, como quer Winnicott, mas, mais ainda, tenha que permitir que seu bebê-paciente venha, breve e transitoriamente, a tomá-lo como uma espécie de objeto transicional corretivo. Enquanto metáfora, o analista está ali para ser criado pelo paciente como um fenômeno transicional. Como aponta Raquel Goldstein em seu trabalho “O objeto transicional de Winnicott”: “O analista pode ser tomado como um objeto transicional, se oferece para a transicionalidade, mas esta não se desenvolve de imediato senão pelo contrário, pois está travada primitivamente em seu processo de formação; isto se evidencia na repetição das carências na transferência” [16].

O analista então viverá com o paciente momentos de dependência absoluta, e aos poucos, por meio da dependência relativa, possibilitará a distinção do eu e não eu, povoando seu mundo interno. Poderá, então, permitir que o paciente possa lidar com os percalços do mundo interno e externo (situações de separação), acumular suas experiências de vida e que, rumo à independência, sua percepção vá se tornando quase sinônimo de criação [17].


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