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Autor(es)
Ana Claudia Patitucci

Bela M. Sister
é psicanalista, integrante do grupo de Entrevistas da revista Percurso, coautora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Escuta, 1996).

Cristina A. P. Franch Leite
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Danielle Melanie Breyton
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, integrante do grupo O feminino no imaginário cultural contemporâneo, co-organizadora do livro Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo (Escuta).

Deborah Joan de Cardoso

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 ENTREVISTA

Caterina Koltai - Da xenofobia ao racismo: mal-estar moderno

Caterina Koltai - From xenophobia to racism: the uneasiness in modernity
Ana Claudia Patitucci
Bela M. Sister
Cristina A. P. Franch Leite
Danielle Melanie Breyton
Deborah Joan de Cardoso

No primeiro semestre de 2012, o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae organizou o encontro "O racismo e o negro no Brasil - questões para a psicanálise", com o objetivo de oferecer um espaço de reflexão para debater essa problemática sociopolítica e subjetiva tão importante. A aposta era trabalhar no sentido de reconhecer as consequências que o racismo contra o negro, profundamente arraigado na sociedade brasileira, produz na formação de cada um de nós, condição para o exercício de uma prática clínica e institucional engajada com as questões políticas do nosso tempo.

 

Mobilizado por esse encontro, o grupo de Entrevista da Percurso procurou contribuir para o enriquecimento desse debate e escolheu a psicanalista Caterina Koltai para ser entrevistada.

 

Mestre em sociologia pela Sorbonne (Universidade de Paris 1), Koltai tem se dedicado, particularmente, à questão do estrangeiro, da xenofobia e do racismo - temas que transitam na fronteira da psicanálise com as ciências sociais e com a política -, sempre preocupada com a inserção da psicanálise e dos psicanalistas no mundo contemporâneo. São esses temas que constituem o foco de sua tese de doutorado em Psicologia Clínica pela pucsp, publicada em livro, Política e Psicanálise - O estrangeiro (2000), assim como o da coletânea O Estrangeiro (1998), que organizou a partir de um Colóquio promovido pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUCSP, em 1994.

 

O medo ao estranho como constitutivo da psique humana, a necessidade do discurso social para a instalação do preconceito e do racismo, o perigo de a política de cotas se esgotar na "boa consciência" e ser considerada um ressarcimento e não um direito, a importância da escola pública como uma maneira de se lidar com o racismo, essas são algumas das questões abordadas nesta entrevista realizada em março de 2013.

 

Nela o leitor poderá se aproximar do pensamento de Koltai, assim como acompanhar parte de sua trajetória pessoal e profissional desde sua vinda ao Brasil, ainda criança. A militância política nos anos 1960, o exílio na França, as amargas lembranças da experiência de viver na Argélia, onde vivenciou o preconceito contra si e em si, evidenciando como é difícil manter, na prática, determinadas posições. A descoberta do pensamento teórico de Freud, que revolucionou sua maneira de ver o mundo, e a importância de seu encontro com Radmila Zygouris, que provocou uma inflexão em sua vida ao despertar o desejo de ser analista.

 

Koltai não se furta em expor episódios de sua história de vida, nem suas ideias a respeito de temas relevantes, mesmo que esteja contra a corrente do pensamento "politicamente correto" dos dias de hoje. Polêmica, ela expõe e sustenta sua posição, mas não como um ideário a ser defendido.

 

 

PERCURSO No ano passado, tivemos um Colóquio sobre o Racismo organizado pelo Departamento de Psicanálise do Sedes, e a partir dele começamos a estudar essa questão e pensamos em você para esta entrevista. Inicialmente gostaríamos de saber um pouco sobre sua trajetória. Você tem a formação acadêmica em Ciências Sociais e depois se voltou para a Psicanálise. Como se deu esse redirecionamento?

KOLTAI Quando fui fazer Ciências Sociais, nos idos anos de 1960, o que queria fazer, na verdade, era a revolução, como muitos da minha geração. Frequentei o curso de Ciências Sociais na Maria Antonia entre 1965 e 1968, quando fui presa em Ibiúna, no Congresso da une [União Nacional dos Estudantes]. Já nessa época, eu tinha uma posição meio curiosa, porque ao mesmo tempo que queria fazer a revolução, participava do movimento estudantil e me sentia fazendo parte daquela turma e daqueles ideais, também fazia parte do underground paulistano junto com vários artistas. Como fui me dar conta, mais tarde, já naquela época optara por uma dupla pertinência, de modo a ser meio estrangeira nos dois grupos: na política era underground e no underground era política. Essa condição de estrangeira e de estrangeiridade me acompanhou desde muito cedo e foi através dela que cheguei à questão do racismo.

 

PERCURSO Qual era a sua relação com as artes?

KOLTAI Eu não sou uma artista, infelizmente. Era amiga do [Jorge] Mautner, do [José Roberto] Aguilar, do Sérgio [Sister], do [Roberto] Piva, do [Claudio] Willer e do Nelsinho [Nelson Aguilar], que era da minha classe no Dante Alighieri e que foi quem me introduziu nesse grupo, que acabou sendo meu grupo de pertinência durante muito tempo. Sempre fui uma apreciadora de arte, mas sou incompetente artisticamente, não pinto, não escrevo, não canto, não componho, mas tenho bom feeling, digamos. Era muito engraçado, porque era como se eu tivesse duas vidas, e a vivência do estrangeiro estava sempre presente, um estrangeiro sócio-político-geográfico.

 

PERCURSO Voltando ao ano de 1968...

KOLTAI Em 1968 fui presa em Ibiúna e, quando saí da cadeia, acabei indo para Paris, ainda que não exclusivamente por causa disso. Aí tem uma questão muito importante: até então eu era apátrida, não tinha passaporte e viajar era muito complicado. Eu até já tinha viajado mas precisava de vistos especiais e era um trampo. A minha naturalização aconteceu justamente em 1968, quando, então, pude finalmente ter uma carteira de identidade, tirar um passaporte e usufruir do direito de ir e vir.

 

PERCURSO De onde você é?

KOLTAI Nasci na Hungria em 1947, logo no pós-guerra. Em 1949, meus pais saíram de lá no último trem possível e foram para a Itália, com um passaporte do alto comissariado das Nações Unidas, não era bem um passaporte, era um laissez-passer de ida, sem volta. Ficamos sete anos na Itália, até os meus nove anos. Meus pais queriam ficar na Itália, não queriam vir para o Brasil, isso não fazia parte dos planos deles, só que durante esses sete anos não conseguiram uma residência definitiva lá e tinham que se apresentar na polícia, de três em três meses, para renovar a autorização de permanência. Um dia minha mãe disse: "Chega! Eu não vou criar uma filha na porta da delegacia de polícia renovando ad eternum uma autorização de permanência!". Minha avó e tio maternos já moravam aqui, tinham vindo para o Brasil logo depois da guerra. E então, contra a vontade do meu pai, que veio para cá e voltou dizendo que tinha cobras nas ruas de São Paulo, que eu ia ser devorada por elas, para ver se a minha mãe mudava de ideia, acabamos vindo para o Brasil. Eles se naturalizaram logo porque a imigração no Brasil naquela época estava aberta, mas eu tive que esperar a maioridade para poder me naturalizar e tirar meu primeiro passaporte.

O que eu mais desejava na vida era conhecer Paris, até porque fui alfabetizada num colégio francês, o liceu francês de Roma, e minha educação era impregnada de cultura francesa. Por sorte do destino, quando fui presa, já tinha planejado viajar para Paris assim que o ano letivo terminasse, tinha inclusive uma passagem na mão. Acontece que quando saí da cadeia junto com a maioria das pessoas que foram presas, as principais lideranças, entre elas alguns amigos, continuaram presas. Isso me balançou, não queria mais viajar, não me sentia no direito de ir curtir a vida enquanto eles estivessem presos. Foi quando, pela primeira vez, baixou o "centralismo democrático" na minha família, que era muito liberal: "Você vai!!!". E viajei no dia do AI-5. O AI-5 aconteceu enquanto eu estava no avião. Treze de dezembro. Verdade que o clima já estava pesado. Desembarquei em Orly, e ao descer do avião li na manchete dos jornais: "Coup d'État au Brésil", "Golpe de Estado no Brasil"! O susto foi grande. E agora, o que eu faço? Na medida do possível, tentei curtir Paris, fui conhecer o Flore e o Deux Magots e esperei pelas notícias. E elas foram chegando... "A polícia passou em casa, você não volta...", "a polícia esteve aqui duas vezes..." etc. etc. E foi assim que acabei ficando na França por mais de 10 anos. Me matriculei na faculdade de sociologia, que na época era gratuita inclusive para os estrangeiros, terminei o curso, fiz mestrado, depois doutorado... comecei a trabalhar e a me interessar pela psicanálise.

 

PERCURSO Como surgiu esse interesse pela psicanálise?

KOLTAI Começou na faculdade através dos frankfurtianos, lendo Marcuse, Eros e civilização... foi por aí que cheguei teoricamente a Freud e passei a ler um livro atrás do outro. Quando li O mal-estar na civilização, foi como deve ser o efeito da bíblia nos religiosos: há um antes e um depois. Essa leitura acabou com a minha visão ideológica do mundo de uma maneira radical! E foi isso que me levou para análise, porque se não há uma ideologia que explique tudo, como é que vou viver? Além disso, a França, nos anos 1960 e 1970, transpirava psicanálise. Ela estava em todos os lugares, inclusive na faculdade de sociologia, onde tínhamos aulas de teoria psicanalítica. A psicanálise estava na cultura, nos jornais, nas críticas literárias e de cinema. Naquela época Paris realmente era uma festa e a França oferecia uma efervescência cultural impressionante. Os seminários eram abertos, então dava para circular entre os seminários do Foucault, do Castoriadis, do Lapassade e do Clastres à vontade. Era só entrar, sentar num cantinho no fundo... e você vivia solicitada a pensar. É dessas sortes que a vida lhe apresenta de vez em quando. Quem viveu viveu e quem não viveu não vai viver nunca mais... Eu ia a um seminário, a outro, queria devorar o que tinha, era uma experiência intelectual e sensorial única! Como experiência, foi algo extraordinário para quando se tem 20 anos! É um presente da vida, não tem outra palavra!

E naquele momento Lacan estava com tudo. Cheguei a ir a um seminário dele e não entendi absolutamente nada, era como um hieróglifo chinês, pior que a sensação de chegar a um país sem falar a língua, aí parei de ir, mas continuei lendo compulsivamente Freud, os antipsiquiatras ingleses, a antipsiquiatria italiana e alguns lacanianos mais fáceis de ler: Mannoni, Dolto, Granoff, entre outros.

Eu tinha a sorte de falar francês desde sempre, porque fiz o primário em colégio francês, na Itália, e a Aliança Francesa aqui no Brasil, o que facilitou muito minha adaptação. Devo isso a meu pai, um cosmopolita, ateu, que passou toda minha infância me dizendo que só dava para ser livre em francês. Assim que chegamos à Itália, eu com dois anos, fui para um jardim de infância de freiras montessorianas, progressistas, que abriram as portas para os exilados que chegavam. A idade de escolaridade era de três anos, mas elas aceitavam crianças mais novas para ajudar essas famílias. Era uma situação meio de exceção e, quando revejo as fotos daquela época, eu era muito menor do que as outras crianças e tinha uma carinha de assustada. Um ano de diferença nessa idade é muito, além do que no início não entendia nada de italiano. Mas, como toda criança, aprendi rapidamente.

Meu amor pela escola de maneira geral começou lá, com as freiras montessorianas. Quando chegou a hora de me matricularem na escola primária fui parar no Liceu Francês, que na época era o único colégio laico de Roma. Nos colégios públicos o ensino religioso era obrigatório, e havia as escolas judaicas onde as minhas primas estudavam, porque o que restara da família do meu pai já havia emigrado para a Itália. Em casa se falava húngaro; na rua, o italiano, e fui alfabetizada em francês! O preço a pagar por uma educação laica. E foi bom. Não é à toa que, para mim, a experiência de ser estrangeira é constitutiva, é uma sensação de estrangeiridade permanente. Éramos judeus ateus e vivíamos fora da comunidade judaica de Roma, fui alfabetizada em francês numa família onde ninguém sabia falar um "a" nessa língua, onde, se eu precisasse de uma ajuda para fazer a lição, ninguém podia me dar...

Mas estou convencida de que a escola, para mim, foi um lugar importantíssimo, todas elas, desde o jardim montessoriano, passando pelo Liceu Francês, o Jardim Escola São Paulo quando cheguei ao Brasil, até o Colégio Dante Alighieri, mais tarde. Sempre tive uma relação de muito amor pela escola e nas férias contava os dias para elas terminarem. Adoro escola, sempre gostei, é lá que eu tinha meus amigos e não vivia só entre adultos.

 

PERCURSO E como era sua relação com a psicanálise quando você estava na França?

KOLTAI Durante muito tempo, só teórica. Lia Freud compulsivamente, como já disse, e aos poucos outros autores também. Depois que arrumei um emprego e tive condições econômicas de pagar uma análise, fui fazer minha primeira análise, que foi interessante, marcou sens plus, não foi aquela coisa assim "quero ser analista", "algo muito importante aconteceu..." Mas essa análise limpou o terreno para que algo pudesse acontecer. Depois fiz outra, mas minha verdadeira análise, aquela que considero uma verdadeira aventura, foi a que fiz com a Radmila [Zygouris], que procurei em função de um artigo dela sobre o estrangeiro. Essa sim foi uma grande experiência! Além de um encontro humano excepcional. Uma análise que eu quis que fosse em francês, língua que não era a materna para nenhuma de nós duas, pois Radmila nasceu na Sérvia.

A questão da língua sempre foi algo importante na minha vida, o desejo dos meus pais era que eu me tornasse intérprete, tinha crescido falando quatro línguas, e para eles, essa seria a melhor profissão possível! O desejo paterno explícito era que trabalhasse nas Nações Unidas ou em alguma das suas agências e que tivesse um passaporte internacional, porque assim estaria protegida de todas as dificuldades que eles viveram. Acabei me tornando intérprete de outro jeito, intérprete do inconsciente....

 

PERCURSO Você chegou a trabalhar na França?

KOLTAI Não com psicanálise. Na França trabalhei na unesco o tempo todo. Não deixa de ser uma maneira de realizar o desejo paterno, mas não só. Na verdade, era o trabalho possível, pois como era uma organização considerada território internacional, para trabalhar ali não precisava de carteira de trabalho. Isso aconteceu de uma maneira interessante. Em 1970, quando já morava em Paris, por sugestão do Mautner, fui para Nova York, onde ele tinha trabalhado na Conferência Geral da ONU. Ele me dizia "Vem pra cá, eles contratam qualquer pessoa que saiba datilografar em duas línguas oficiais e em três meses você ganha dinheiro pra viver um ano, onde quer que seja!". Então fui para Nova York, fui aprovada e trabalhei na Conferência Geral. Eles queriam que eu ficasse mais tempo, fiquei mais três meses e acabei voltando para a França. Com o que ganhei, vivi mais tranquila por um ano em Paris e com aquela experiência fui pedir emprego na UNESCO. Consegui um estágio que depois foi renovado. Como não podia trabalhar como cota brasileira, por causa do exílio, trabalhava em projetos pontuais durante quatro meses e parava um, e assim vivi de 1971 a 1978 com o salário da unesco.

Nesse meio-tempo fiz mestrado, depois doutorado em sociologia da educação, porque, como trabalhava na unesco, quis fazer algo que me servisse nesse trabalho, embora naquela época já vinha me afastando da sociologia, e nutria o desejo de um dia vir a ser psicanalista, ainda que soubesse que tinha chão para isso e que provavelmente iria demorar muito ou, quem sabe, nem acontecer. Enquanto isso continuava lendo e indo a umas aulas cá e lá.

 

PERCURSO Numa entrevista à Percurso [n. 47/2011], o sociólogo Zygmunt Bauman diz ser grato à sua condição de estrangeiro uma vez que, apesar do desconforto e agonia, ela lhe proporcionou a oportunidade de um questionamento criativo sobre a sociedade e a possibilidade de novas interpretações e descobertas. Como você avalia a sua condição de estrangeira?

KOLTAI Concordo com o Bauman em gênero, número e grau. Todorov diz o mesmo, e ainda que não lembre exatamente suas palavras, ele chama nossa atenção para o fato de que embora todo homem arrancado de seu meio sofra, com o tempo o expatriamento pode se tornar uma experiência interessante, pois, se conseguir ultrapassar o ressentimento provocado pelo desprezo ou hostilidade, o homem desenraizado pode vir a descobrir a curiosidade e praticar a tolerância. Concordo inteiramente com ambos e pude perceber que, quando é possível se dar conta da dor de ser estrangeiro, isso possibilita uma abertura impressionante na vida. Hoje em dia, acho que essa condição de estrangeira me deu muito mais coisas positivas do que negativas, sem sombra de dúvida, principalmente uma abertura ao outro - até porque sem ela não se sobrevive. Ser estrangeiro nos ensina a lidar não só com a diferença do outro desde muito cedo mas, também, com a própria diferença; nos ajuda a ter um olhar mais aberto para o mundo, porque desde sempre sabemos que outras experiências são possíveis. Assim como ser criada numa situação de plurilinguismo ou multilinguismo, porque não é a mesma coisa falar uma língua ou outra, ler uma língua ou outra, além da passagem de uma para outra. No meu caso, eu tinha uma língua familiar, doméstica, que era o húngaro, que falo e entendo perfeitamente, mas não leio nem escrevo. Em húngaro sou quase analfabeta. Sou capaz de ler um título de jornal se for para Hungria, mas não sou capaz de ler um livro em húngaro... Quando sonho com comida, são sempre pratos húngaros - é uma língua realmente do infantil!

 

PERCURSO Com o que trabalhavam seus pais?

KOLTAI Na Hungria meu pai trabalhava com importação e exportação de grãos, ele nunca pôde cursar uma faculdade, por causa dos numerus clausus, uma limitação de vagas para os judeus nas universidades que já existia antes do nazismo, devido ao antissemitismo húngaro. Minha mãe era secretária. Na Itália, ficaram muito amigos de duas irmãs húngaras que já viviam lá desde o começo da guerra e vinham de uma família de renomados antiquários da Hungria. Uma delas, nessa altura, já era considerada uma das grandes antiquárias da Itália, com uma loja na rua Veneto. Com essas irmãs, eles aprenderam a profissão de antiquário e com o tempo foram se formando. Quando vieram para o Brasil, já tinham o projeto de serem antiquários e, como viemos de navio, puderam trazer um monte de antiguidades para começar a vida por aqui. O projeto deu certo e eles chegaram a ter uma loja de antiguidade bastante renomada em São Paulo.

 

PERCURSO E você tem lembranças dessa época?

KOLTAI Eu tinha quase nove anos quando viemos para o Brasil. Lembro que, quando o navio parou em Dakar, os adultos podiam descer para ver a cidade, mas os idosos e as crianças, não. Eu e minha avó paterna, que viajava conosco, ficamos no navio e tive uma dor de dente inesquecível naquela noite! Outra lembrança é que eu não queria sair da Itália de jeito nenhum. Não queria sair por causa da minha priminha que foi o amor da minha infância, a irmã que eu não tive. Lembro-me da cena do trem saindo de Roma para Gênova, onde pegaríamos o navio, e eu gritando seu nome na porta, querendo pular do trem. Lembro-me dela me dando um lencinho com um pouco de terra, e de dormir com essa terra italiana embaixo do travesseiro por muito tempo. Essa foi uma das primeiras cenas de infância. Esse lenço com um pouco de terra da Itália foi um verdadeiro objeto transicional para mim. Essa parte da família continua lá até hoje.

 

PERCURSO Você chegou a viver o racismo contra os judeus?

KOLTAI Na Hungria é possível que sim, mas com dois anos não tenho como lembrar. Convém lembrar que saímos da Hungria em 1949, já com o comunismo no poder... Duas ditaduras eram demais! Durante o nazismo minha mãe ficou escondida e meu pai ficou em campo russo, porque os húngaros mandaram os judeus para campo de trabalho forçado na frente leste, onde eles ficaram prisioneiros dos russos. Meu pai voltou do campo de prisioneiros como o maior defensor do povo russo, dizendo que se ele estava vivo era graças a ele e que os verdadeiros vencedores da guerra tinham sido os russos. Lá ele não viveu o antissemitismo e sim a solidariedade humana, o que não quer dizer que não houvesse antissemitismo. Os pogroms, os atos de violência em massa contra os judeus, fazem parte da história da Rússia. E ainda que tenha voltado com um profundo amor pelo povo russo, voltou antistalinista até a alma! Meu pai sempre foi um pouco outsider, na fronteira, como diria Bauman. Foi ele que me deu os livros do Marx para ler muito cedo. Meu presente de aniversário, aos 14 anos, foram as obras completas do Sartre: "Se quiser entender algo da vida, leia isso". Ele era um humanista progressista, se é que podemos falar assim, e sempre me incentivou muito. Quando li a biografia da Hanna Arendt, percebi o que não faz um pai que aposta na filha, no sentido de fazer uma interlocução.

 

PERCURSO Seus pais seguiam a tradição judaica?

KOLTAI Nem um pouco, ainda que minha mãe viesse de uma família muito religiosa e meu avô materno tivesse chegado a estudar para ser rabino. Minha avó materna, que já vivia aqui no Brasil, trabalhava na Sinagoga Húngara da rua Augusta. Íamos à sinagoga no ano novo judaico e no Yom Kipur [Dia do Perdão] por causa dela, mas era o máximo de concessão à religião que, principalmente, meu pai se dignava a fazer. O que não impedia meus pais de se sentirem judeus, de terem um certo orgulho disso, de nunca terem pensado em se converter e sempre terem me transmitido isso. Lembro que quando passei por uma fase sionista e tive a veleidade de ser bandeirante na CIP [Congregação Israelita Paulista], lá pelos 12, 13 anos, meus pais não me proibiram, mas meu pai fez questão de frisar que não era isso que ele tinha sonhado para mim, que não entendia por que eu queria voltar para o gueto. Eu não queria voltar para o gueto, estava apenas à procura de raízes. Na verdade, passei grande parte da minha vida à procura de raízes, até o momento em que depois de muita análise pude transformar minha não raiz em minha raiz!

 

PERCURSO E na estrangeiridade você viveu alguma situação mais difícil?

KOLTAI Com certeza. Todas começaram como experiências difíceis, mas todas puderam se transformar em outra coisa. De todas as estrangeiridades, a experiência mais difícil foi a que vivi na Argélia, a única da qual guardo más lembranças. Em 1975, eu e meu companheiro, também brasileiro, fomos dar aulas na faculdade de Constantina, cidade que era e é o centro religioso desse país. Eu de sociologia, ele de psicologia. Passamos um ano lá, e desde o primeiro minuto me dei conta de quanto é difícil ser mulher num país islâmico, e olha que nunca fui feminista, e quando viajei para lá, já pensava "não vou levar minissaia, não vou levar vestido decotado, sei que é outra cultura..." Mas isso não resolvia o problema. Vivi ali algumas situações bem difíceis, como o dia em que fomos convidados para jantar na casa de um aluno de psicologia do meu companheiro, e a mesa estava colocada para três: ele e nós dois, os convidados. Sua esposa ficou comendo em pé, na porta da cozinha! Também nesse período de um ano aconteceu o suicídio de três alunas minhas, que não queriam se casar com os homens que suas famílias haviam escolhido para elas!

E isso foi em 1975, bem antes dessa leva fundamentalista que assolou os países muçulmanos, e num país onde as mulheres participaram da revolução, a mulher argelina pegou em armas... e não fazia tanto tempo assim. Em Argel, a capital, a situação era bem diferente, e as mulheres pareciam participar muito mais da vida da polis.

Foi também ali que vivenciei minha primeira experiência de antissemitismo explícito quando um dia, em sala de aula, um aluno, que não sabia que eu era judia, me perguntou "judeu é ser humano?" Não foi uma agressão pessoal, mas revela bem o nível de preconceito que esse aluno carregava. Nunca tinha convivido com um nível de discriminação e violência como esses, e isso despertou meu próprio ódio. Minha experiência argelina foi muito dura justamente por me pôr em contato com coisas que até aquele momento pensava poder silenciar dentro de mim: minha própria intolerância e meu ódio por aquilo que era muito diferente de mim e dos meus valores.

Foi, em grande parte, através dessas desagradáveis experiências argelinas, que pude me dar conta dos limites do pensamento racional e teórico quando você depara com o horror! Sempre fui estrangeira, cheguei a me sentir discriminada, mas nunca tivera tanta consciência de quanto eu própria era capaz de discriminar o outro. Tinha estudado sociologia e antropologia, tinha aprendido que as culturas são diferentes umas das outras, eu mesma era uma estrangeira desde sempre e imaginava ter superado todas as questões de preconceito, de racismo. Ao me dar conta de que não era bem assim, foi um baque daqueles. O estrangeiro ora fascina, ora repele, e na minha experiência argelina vivi o lugar do estrangeiro que assusta e repele, o lugar do estrangeiro dejeto, e isso é da ordem do insuportável, e aí você odeia também.

 

PERCURSO E quando você voltou ao Brasil?

KOLTAI Voltei com a anistia; para ser exata, um pouco antes. Até então, não sabia se podia voltar, era uma incógnita. Eu podia eventualmente voltar numa boa, mas podia voltar e ter algum problema, então não voltei. Na verdade, eu não queria voltar, estava adaptadíssima na França e só voltei porque o meu companheiro e pai do meu filho queria voltar. A volta foi muito difícil! Voltar é muito mais difícil do que ir, não tenho a menor dúvida quanto a isso, porque aquilo que se deixou não está mais lá, as pessoas que você deixou são outras e você é outra. Você vai atrás dos lugares e nada mais está lá, principalmente quando você sai com 20 e volta com 32, e sua formação foi em outro lugar. Mas não me arrependo, porque a dificuldade da volta me permitiu dar conta de um percurso que não sei se na França eu teria feito. A situação lá estava muito cômoda para mim, eu podia querer virar psicanalista um dia, quem sabe, mas trabalhava numa instituição internacional com um bom salário, tinha mais férias que os franceses, minha vida era tranquila, não sei se teria ousado dar o salto, e quando voltei não tinha nada a perder.

 

PERCURSO Você fez a sua formação em psicanálise quando voltou ao Brasil? Como foi?

KOLTAI Logo que cheguei, tentei ganhar a vida aqui e não pensei imediatamente em formação analítica. Num primeiro momento fui trabalhar no Seade, depois veio a aventura do PT e só depois tive tempo psíquico para retornar ao meu desejo de ser analista. Foi quando comecei a dar aulas na Universidade e iniciei a formação em psicanálise na Biblioteca Freudiana, onde fiquei por vários anos antes de começar a atender. Duas vezes por ano ia para a França continuar minha análise com Radmila. Foi só ao retornar para o Brasil que consegui dar uma direção à minha formação e fui para a psicanálise também em uma situação de estrangeira, porque fiz formação em uma instituição lacaniana sem nunca ter me considerado uma lacaniana "pur beurre", como diriam os franceses. Mas foi uma experiência muito importante porque o lacanismo, sem dúvida alguma, ajuda a sistematizar o pensamento. É um ensino mais transmissível do ponto de vista teórico. Acho que entrei na hora certa e saí na hora certa. Sou grata à formação que recebi lá e tenho a impressão de que consegui me formar sem me deixar formatar. Minha clínica, no entanto, vem da minha análise. Comecei a atender somente uns 10 anos depois da minha volta da França, e a passagem se deu de maneira razoavelmente fácil, talvez porque comecei tarde, já com 40 anos. Estou convencida de que psicanalista é ofício de velho.... de quem já viveu muitas coisas e já rodou a baiana. Porque, quando você assume uma transferência, não dá mais para dizer "desculpe, mas vou fazer doutorado fora ou eu queria ter uma experiência de sei lá o quê...". Não é que seja proibido, mas para mim não faria sentido. Considerando o que vejo em volta, acho que tive um início relativamente fácil na psicanálise, e pude rapidamente largar outras coisas e viver da clínica. Fiz questão de manter as aulas, de não depender integralmente dos pacientes para viver, pois isso ajuda a não querer seduzi-los de medo de que possam ir embora. Larguei as aulas na Escola de Sociologia e Política de São Paulo e as da Faculdade de Moema, e mantive as da PUC, da qual só me desliguei no ano passado.

 

PERCURSO Em 1982 você se candidatou para vereadora. Como foi essa experiência?

KOLTAI Foi uma experiência importante mas muito perturbadora. Foi um caminho que encontrei na época para reatar com o Brasil. Saí por causa da política e, quando voltei, tentei retomar de onde tinha saído, como se isso fosse possível. Tinha que me agarrar ao que havia e na época o PT estava se fundando. Então, fui candidata a vereadora pelo PT. Mas, na realidade, não me candidatei, me candidataram e não soube dizer não. Lembro que um dia estávamos em uma reunião e eu disse que achava que tinha que ter um candidato para os alternativos, influenciada que estava por meus laços com a Itália, pelo partido radical italiano do Marco Pannella, um partido que se baseava de certo modo na desobediência civil. Foi quando me disseram: "E por que não você que já estava nessa em 1968?" Foi assim que virei candidata. E essa foi uma campanha engraçada porque muitos exilados que voltaram de outros lugares se reencontraram ali, assim como muitos jovens que tinham retomado a bandeira da redemocratização. Ser candidata nunca tinha passado pela minha cabeça, mas acho que foi importante porque foi uma maneira de depositar de vez minhas malas no Brasil, assim como de concluir minha vida de militante política e partir de vez para a formação e clínica psicanalíticas.

 

PERCURSO Em seu livro Política e Psicanálise, você faz duas proposições que são fundamentais para o desenvolvimento do seu pensamento. A primeira é que o estrangeiro é o conceito limite entre a psicanálise e o político. A segunda proposição é que o racismo é o sintoma principal do mal-estar na civilização contemporânea. Você poderia explicar como essas duas proposições se articulam?

KOLTAI Eu diria que essa tese se relaciona com o meu final de análise. Antes disso achava que o racismo era uma questão política que seria resolvida politicamente, com leis que criminalizassem o racismo e com uma educação para a paz, como se dizia na UNESCO. Mas o que percebi, através da minha análise e da experiência argelina, é que o horror ao estrangeiro é constitutivo da psique humana. Essa percepção foi anterior à minha formação analítica stricto sensu. Na minha leitura da obra freudiana, pude me dar conta de que a grande descoberta freudiana é a de que o homem é impelido por algo que lhe é estrangeiro, que ele não é integrado em si mesmo. Foi assim que identifiquei, desde os Estudos sobre a histeria e o Projeto, que sempre existe algo estrangeiro, de inassimilado na nossa constituição psíquica. Retomando o que Radmila disse de maneira exemplar, me parece que podemos afirmar que, num primeiro momento, todos nós, humanos, manifestamos reações de recuo perante um rosto desconhecido - o que foi chamado de angústia do oitavo mês. É num momento posterior da socialização que acaba surgindo um "nós" que se oporá aos "outros", mas até aí estamos no que chamaria de xenofobia ordinária, do medo do outro. O racismo só surge depois, quando você nomeia esse medo e passa a dizer que o perigo vem do outro, seja ele o negro, o judeu, o homossexual ou a mulher... É nesse momento que a xenofobia ordinária se transforma em racismo.

O estrangeiro sempre provoca movimentos de alma: amor, ódio, amódio. Tanto pode ser o Outro inimigo, como aquele que fascina por ter sobrevivido à separação. Diante do estrangeiro o sujeito nunca permanece indiferente. E essa é uma experiência que vivi muito precocemente. Desde muito cedo, me dei conta de que, quando contava minha história, assim como ela fascinava alguns e me abria portas, assustava outros, provocando um certo mal-estar, um certo medo.

E é para essa ambiguidade que os gregos chamaram nossa atenção ao usarem uma única e mesma palavra - hoste - para designar tanto o convidado quanto o estrangeiro. Hostes: hospitalidade/ hostilidade têm o mesmo prefixo, derivam da mesma palavra.

 

PERCURSO Podemos dizer que o racismo é o movimento de um ódio?

KOLTAI Sim, de um ódio, mas do ódio por onde se cola o discurso social. Sem o discurso social há a xenofobia, mas não o racismo. O racismo explícito precisa nomear esse estrangeiro que você tem que temer. Para que haja racismo é preciso que haja um discurso social que nomeie e alimente esse medo. E por isso é importante ressaltar que o racismo não é uma simples questão de agressividade. Ele só existe entre os humanos e é preciso relacioná-lo com a linguagem. Não há racismo sem discurso.

 

PERCURSO Você afirma, ainda em Política e Psicanálise, justamente, que não há racismo sem discurso, mas acrescenta que o racismo seria uma criação moderna, filho do discurso da ciência, do industrialismo e do capitalismo. Como a relação entre esses três fatores ofereceu o discurso necessário para o surgimento do racismo?

KOLTAI É exatamente o que acabo de dizer. Mas para chegar aí me perguntei como era isso antes e me aprofundei um pouco em três momentos da História que me ajudaram a pensar essa questão. O primeiro foi o lugar que o estrangeiro ocupou na Grécia Antiga. Para os gregos, os estrangeiros, os metecos e as mulheres não eram cidadãos, mas Jean-Pierre Vernant, em seu texto La mort dans les yeux, chama nossa atenção para o fato de que, apesar disso, as crenças e práticas vigentes na Grécia Antiga sempre incorporavam mecanismos institucionais que permitiam, de certa forma, reintegrar aqueles que elas mesmas excluíam formalmente. Ele nos faz ver, no momento em que o racismo estava de volta na velha Europa, que a cidade grega, diferente da nação moderna, não conhecia o problema da migração e não percebia a presença estrangeira como algo marginalizado ou com conotação pejorativa. A democracia grega não só tolerava o estrangeiro, como encorajava sua presença. Enfim, na Grécia existia a exclusão mas os gregos reinseriam os excluídos, a exclusão não tinha esse caráter definitivo e persecutório que tem nas sociedades modernas, no racismo contemporâneo.

O segundo momento, busquei na bíblia judaico-cristã e quem me ajudou foi Elie Wiesel, autor que eu adoro, que em seu livro Palavras de estrangeiro mostra como o estrangeiro é uma figura fundamental no Antigo Testamento. Ele retoma três figuras de estrangeiro: o Guer, o Nokri e o Zar. O primeiro é a figura da alteridade possível, visitante que vem de longe para dividir alegrias e sofrimento, sem querer apropriar-se do que somos, nem nos transformar naquilo que ele é; o segundo é o dono da verdade, vem de longe, para logo retomar seu caminho, faz questão de deixar claro que está ali provisoriamente e que amanhã será outro dia; o terceiro, o Zar, aparece como figura desprezível, como estrangeiro em seu sentido pejorativo, figura daquilo que passou a ser conhecido como o auto-ódio judeu.

O que muda com a modernidade? Muitas coisas, mas o que importa salientar é que, com o descobrimento da América, e o imprevisto que essa descoberta representou no encontro do Velho com o Novo Mundo, dos espanhóis com os ameríndios, o "Eu" teve que se defrontar com o "Outro" e os europeus rejeitaram a alteridade no exato momento em que a descobriram. Eu estava acostumada a ler os relatos de Vespúcio como obra histórica, antropológica, mas depois de ser atravessada pela psicanálise minha leitura dessa obra se transformou e pude reconhecer nesse escrito tanto o fascínio como o horror pelo estrangeiro. Segundo Todorov, o fato é que a civilização ocidental, ao deparar com esse novo continente, do qual tudo ignorava, assustou-se a tal ponto que não encontrou nada de melhor a fazer que exterminar sua população.

Na descrição que Vespúcio nos dá do Novo Mundo, ele atribui aos indígenas, ali encontrados, um gozo que a civilização ocidental teria reprimido, visto que eles se satisfaziam de modo diferente dos europeus, mais livremente, sem estar submetidos à repressão. Esse paraíso onde vive o bom selvagem, cuja sexualidade é livre, só tem lugar na teoria freudiana enquanto fantasma, fantasma do homem europeu que criou uma figura e um mundo para nele projetar uma idade de ouro e escamotear a inevitável castração. Como se o mal-estar fosse ligado à repressão da vida sexual, quando sabemos que ela é essencial à vida em civilização. Aliás, é o que constatamos cotidianamente na nossa clínica quando, apesar da revolução sexual dos anos 1960, apesar de uma vida sexual cada vez mais precoce e diversificada, nossos pacientes continuam sofrendo por não conseguirem desejar, não serem desejados ou amados como gostariam. Decididamente o paraíso sexual não existe.

Mas voltando mais precisamente ao que vocês me perguntaram sobre racismo e modernidade, poderia dizer que ao longo do século XIX desenvolveu-se, ao mesmo tempo, um sentimento de que haveria um paraíso perdido, que deu origem ao exotismo; e o racismo, contemporâneo ao surgimento dos Estados nacionais. E, como dizia Foucault, a teoria das raças é um dos elementos constitutivos do Estado. Na modernidade, capitalismo e colonialismo se juntaram na exploração desse outro, da força de trabalho desse outro, que está na situação de escravidão, desse outro que está quase entre o animal e o humano, porque é um humano tratado como um animal. E a ciência começou a produzir discursos que justificassem a inferioridade do outro, o outro é inferior por causa da cor da pele, porque aceita a escravidão, etc. Ou seja, a ciência moderna, baseada no positivismo, junto com o capitalismo, passou a produzir discursos sobre a inferioridade de uma raça em relação a outra. A própria antropologia, que hoje é uma ciência vista como progressista, xcomeçou de mãos dadas com o colonialismo. Ela alimentou o discurso sobre a inferioridade das raças. E a religião também.

 

PERCURSO Isso recoloca a questão do racismo como sintoma principal do mal-estar na civilização contemporânea. Como você chegou a entender o racismo como o principal sintoma contemporâneo? O que teria sido recalcado para que o racismo alcançasse este lugar central?

KOLTAI Isso eu devo a Lacan. Até entrar em contato com o pensamento dele a esse respeito, acreditava, como toda uma geração, que mudando o mundo politicamente algumas coisas não aconteceriam mais, que bastava dizer "isso nunca mais" para que de fato assim fosse. E foi quando deparei com o pensamento de Lacan na "Proposição de 9 de outubro de 1967" em que ele previu que os processos de segregação iriam se intensificar porque eram inerentes ao discurso da ciência e ao desenvolvimento tecnológico, que se desenvolvem em detrimento do estatuto do sujeito. Aprofundou isso em Télévision, em 1972, ao afirmar que nosso futuro de mercados comuns iria encontrar seu equilíbrio na extensão cada vez mais dura dos processos de segregação. Ou seja, ele percebeu, antes de todo mundo, que em vez de o racismo acabar, ele iria se intensificar. E as previsões de Lacan no campo social foram muito poucas, eu diria que essa foi uma das únicas, mas ele acertou em cheio. Quando li esse texto, deu um curto-circuito na minha cabeça. Como é que esse homem sabia? Do que ele estava falando? Naquela época, eu ainda era socióloga, militante e acompanhava todos os textos de sociologia e de política, e me perguntava por que ele estava dizendo o oposto do que diziam os autores que tratavam disso? E por que a história deu razão a ele com o passar do tempo? O que ele ouvia no divã dele? Porque era evidente que o que dizia vinha de sua clínica.

Ele escutava aquilo que diz respeito ao sujeito, aquilo que está para além das ideologias, dos tratados políticos, para além do consciente. Deixou claro que, quanto mais você quiser impor uma coisa, será justamente o oposto, em todo o seu horror, que irá se manifestar, dando-se conta de que a ciência, apesar de suas pretensões antirracistas, acabava por intensificar aquilo mesmo que pretendia combater, e que ao obrigar o outro a ser igual, é a diferença do outro que vai se manifestar. Isso tem a ver com a minha ideia do perigo da tentação do bem. Porque a tentação do bem sempre acaba pelo pior. Aí, mais uma vez é a influência de Lacan, ainda que me considere muito mais freudiana do que lacaniana. Mas não há como negar que Lacan foi, e é, fundamental para o pensamento psicanalítico contemporâneo, e que algumas de suas afirmações são irreversíveis.

Voltando ao que dizia quanto à tentação do bem, é preciso tomar cuidado, não sabemos o que é bom para o outro e acho que esse é um dos grandes desafios da clínica, porque corremos o risco, o tempo todo, de achar que sabemos o que é bom para o outro, para o nosso paciente. Não sei se é uma questão para todos, mas para mim é. Uma coisa é saber teoricamente que eu não sei o que é bom para ele e que não posso impor o meu bem, e outra é agir de acordo com isso, pois pensar que se pode fazer o bem é sedutor, mas muito perigoso!

Aqui deparo com outro problema... o que chamo de lado negro do atual lacanismo, quando, para evitar a tentação do bem, no que acho que estão cobertos de razão, às vezes se desemboca na clínica do mau-trato. Uma sessão de apenas alguns minutos, para mim, é clínica do mau-trato. Impossível ouvir e acolher quando o paciente seguinte já está esperando... Por outro lado, acho que a geração atual de lacanianos acaba fazendo algumas barbaridades em nome de Lacan, mas que não são necessariamente propostas dele. Não por acaso minha transferência ainda é com a primeira geração de lacanianos, que foram de uma criatividade extraordinária. Hoje em dia me parece que se caricatura Lacan e, pelo que sei, na maioria das vezes ele tinha uma verdadeira preocupação com seus pacientes, tanto que, quando saía de férias preocupado com um deles, ligava para os amigos desse paciente e dizia: "Olha, estou saindo de férias, mas estou preocupado, liguem para o fulano, não o deixem na mão". Quer dizer, ele era capaz de gestos extremamente humanos e cuidadosos, mas o folclore conta coisas que têm a ver com o nosso sadismo. Por que as pessoas só se fascinam pelo lado sádico? Nosso masoquismo! Quantas vezes vieram me procurar: "já fiz anos de análise, mas agora quero um analista duro, lacaniano". Errou de endereço! É o que tenho a dizer.

 

PERCURSO Agora, em relação ao bem que pode virar o pior, você faz uma série de transposições no sentido do racismo. Você fala do século XIX, em que o discurso que predominava era o discurso da biologia ligado à desigualdade das raças, que depois se deslocaria para a ideia das diferenças culturais e hoje, para você, ele se apresenta na forma de um discurso antirracista. Como você entende esse racismo travestido em um antirracismo?

KOLTAI Não é verdade que somos todos iguais, as diferenças existem, em todos os quesitos... a diferença de cor existe, você não vai dizer que somos todos brancos ou que somos todos negros, não é? O que você pode mudar é o valor que se dá a essa cor. Diferença de sexo existe, não somos todos homens, não somos todas mulheres, aliás para Lacan, mais uma vez ele, homens e mulheres representam duas raças distintas no que se refere à relação inconsciente que mantém com o gozo, e é o que tentou demonstrar com suas fórmulas da sexuação. Isso sem falar da diferença de cultura, de inteligência... Sem dúvida, as diferenças existem. O problema não é reconhecer as diferenças, o problema é a valoração que se dá a elas, ligadas ao mais e ao menos. Aí sim, estamos diante de processos discriminatórios. Então me parece que negar a diferença faz com que ela surja com mais violência ainda, e é o que vem acontecendo em nossos dias. Tentando ser mais precisa, diria que a doutrina do racismo vem se modificando e um discurso sobre a desigualdade das raças, tal como o de Gobineau, não faz mais sentido, e hoje em dia houve um deslocamento da desigualdade biológica para a absolutização da diferença cultural. E, dentro dessa linha de transformação, o racismo pode até se apresentar como antirracismo.

De certo modo, é para isso que Castoriadis, um autor de quem gosto muito, chama nossa atenção ao precisar que uma coisa é dizer que o Islã é outra cultura que devo respeitar; outra, é quando o seu vizinho corta o clitóris de sua neném, você ouve os gritos, e se omite em nome de um pseudorrespeito pela diferença cultural. Então, qual é o limite? Essa questão se coloca de modo cada vez mais intenso com a globalização e as migrações. O migrante faz uma escolha ao abandonar seus pais, escolha forçada na maioria das vezes, mas assim mesmo escolha. E exílio e migração têm um preço, o de aceitar os modos de vida de um país cuja cultura é diferente da cultura de origem. Algo sempre se perde na migração, não dá para fazer de conta que nada se perdeu. O esforço tem que ser de duas mãos, o migrante precisa aceitar as leis do país onde escolheu viver e o autóctone suportar o estrangeiro e sua cultura na polis que julga ser sua. Sair do seu país, da sua cultura, exige que você aceite a cultura de acolhimento, você não pode querer que nada mude. Nesse sentido, toda essa discussão que houve na França quanto ao uso do véu islâmico, sobre as meninas poderem, ou não, fazer aula de educação física me parece importante. Na minha opinião, imigrar é aceitar as leis do país de acolhimento, esse é o preço a pagar. Pode parecer muito reacionário, mas não creio que seja. Penso que só assim a segunda geração poderá, caso lhe permitam, transformar esse novo país em pátria e não ficar no ressentimento, como acontece hoje em dia.

Toda perda tem um preço e, de certo modo, isso vale também para as separações amorosas, onde também não dá para fingir que nada se perdeu, ou para as perdas de emprego, hoje tão frequentes no dito primeiro mundo.

 

PERCURSO Seguindo nessa linha, Jurandir Freire da Costa, no texto Da cor ao corpo - a violência no racismo, aponta para a impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro através de uma compulsória internalização de um ideal de ego branco incompatível com as propriedades biológicas do corpo negro, empurrando-o em uma direção mortífera. Tomando essa linha de pensamento, não haveria um ganho significativo na afirmação e diferenciação de uma identidade de negro da maneira como, por exemplo, é promovida atualmente pelo movimento negro.

KOLTAI Essa pergunta é superinteressante. Primeiro, tem algo da experiência da negritude que alguém loirinho de olho azul, como eu, não tem como viver. Tem algo que essas pessoas viram e veem no olhar do outro, que nunca experimentei, nunca vivi. Por mais que eu tente me colocar no lugar do outro, é uma vivência que não tenho e não terei nunca. Quando muito posso ter intelectualmente, mas não psiquicamente. Então, tudo que vou falar tem que levar isso em conta, com todas as aspas. Lembro que, quando começou o movimento negro nos EUA, os Black Panters, Angela Davis, eu lia todos os livros deles, era fascinada, tinha todos os livros dos Black Panters, Black is Beautiful, tinha todos os pôsteres, quer dizer, havia para mim uma importância radical desse movimento. Achava fundamental poder dizer black is beautiful. Historicamente, acho que eles foram fundamentais e tem um livro dos anos 1960/70 que me marcou demais: Na pele de um negro. É de um jornalista americano, branco, que quis fazer a experiência do que era ser negro nos EUA na década de 1970. Ele passou por um tratamento médico em que foram aplicadas injeções de melanina, ou algo assim, para ele mudar de cor. Ele acabou virando mulato por um período. O livro é impressionante, porque vai mostrando sua perda de lugar, dia a dia. Ele, um jornalista, branco, bem visto, se tornou um pária humano. A experiência é impressionante porque tem um momento em que ele deixou de existir, as pessoas que sempre o enxergaram deixaram de fazê-lo, ou passaram a enxergá-lo com desconfiança, com raiva, com ódio. Esse tipo de racismo existe, não resta a menor dúvida! Ele existe, é nocivo, é perigoso e produz efeitos.

 

PERCURSO Isso teria relação com o que Castoriadis fala sobre o ódio do outro como uma representação do ódio de si? E que daria forma ao racismo mais radical?

KOLTAI Sim, sem dúvida. Aqui o ódio é projetado para fora e é aí que o analista pode ajudar na elucidação das causas obscuras do racismo.

 

PERCURSO Isso em Freud seria a expressão da pulsão de morte e por isso seria constitutivo? Você pensa no ódio ao outro como constitutivo?

KOLTAI Diria que o que é constitutivo é o ódio de si, visto que Freud pôs a nu o fato de que é no interior do nosso aparelho psíquico que vivemos com inquietação e sofrimento aquilo que nos é estrangeiro, que somos estrangeiros a nós mesmos. Mais que isso, que na essência do homem encontramos ódio que pode destruir o que faz sua grandeza. E aí deparamos com o trabalho da pulsão de morte. O racismo se serve desse ódio de si e o projeta em figuras que estão à sua disposição na cultura. No Brasil, um país escravagista, essa figura é a do negro. Tem antissemita no Brasil? Certamente, mas não faz parte da cultura.

 

PERCURSO Poderíamos pensar na eleição de inimigos como uma expressão da necessidade humana de direcionamento de seu ódio ao mesmo tempo que uma possível recusa à proibição do incesto, pedra angular da civilização?

KOLTAI Diria que o tabu da proibição do incesto é um fato, não existe sociedade humana - pelo menos descoberta pela antropologia - sem esse tabu, o que confirma a ideia de Freud. Isso posto, vamos ao inimigo. Todos os grupos se constituem pela exclusão do estrangeiro. Primeiro se exclui para, depois, formar o grupo com aqueles que se inclui. A exclusão, a segregação, é primeira. E uso a palavra segregação de propósito, para mostrar que não acredito na possibilidade de uma sociedade sem segregação, ela é constitutiva. Mas por que precisam de leis? Para barrar os efeitos nocivos dessa segregação.

A segregação está aí, não tem jeito. Se você observa os grupos de psicanalistas, onde todos são psicanalisados, todos atravessaram, teoricamente, o seu fantasma, todos destituíram o Grande Outro - agora estou tirando sarro -, isso não os impede de continuarem se excluindo uns aos outros. Nisso os lacanianos são mestres, tanto que na França há dezenas de grupos... e aqui, ainda que em menor escala, vamos pelo mesmo caminho. Só trotskista consegue se dividir tanto! Aliás, no trotskismo existe algo muito interessante. Se vocês observarem, grande parte da direita inteligente, de hoje em dia, é composta de ex-trotskistas; os assessores do Bush são um bom exemplo disso, muitos deles foram ex-trotskos! E por quê? Porque eles continuam acreditando na revolução permanente, continuam acreditando que têm "a verdade", que devem exportá-la, em todos os sentidos. Mas voltando aos analistas... os grupos de psicanalistas, talvez, sejam o melhor exemplo da realidade insuperável da segregação, uma vez que não cessamos de nos excluir uns aos outros, acusando os que não são do nosso grupo de não serem analistas e acabamos tendo o grupo do A, do B, do C, como os PCs da vida.

E isso me remete a todos os discursos de final de análise, um pouco grandiosos demais para o meu gosto. Só acredito em um final de análise possível, aquele que permite ao sujeito se levar menos a sério, considerar que não tem o monopólio do sofrimento, o que eventualmente pode torná-lo atento à dor e ao sofrimento do outro. Para mim, isso é um bom final de análise.

 

PERCURSO No Brasil, é comum dizer que não existe racismo, muitos apontaram para a característica velada, dissimulada, do racismo brasileiro. O antropólogo Kabengele Munanga apontou que, aqui, o racismo poderia ser chamado "o crime perfeito", pois está presente nas representações negativas do negro, enraizadas no imaginário social, e não se fala nada a respeito dele. O historiador Tâmis Parron, por sua vez, afirma que a "assimilação segregada" é uma característica específica do Brasil. Você concorda com essas leituras?

KOLTAI Concordo. E, pensando na pergunta anterior, diria que não existe país que não tenha racismo, porque não existe humano que não seja potencialmente racista, já que, como já disse, todos nós somos mais ou menos xenófobos. Voltando à questão do início, existe a xenofobia e o discurso que aponta de onde viria a ameaça. E essa ameaça pode ser mais ou menos visível ou totalmente invisível. A pele negra é mais visível que alguns dos traços que ao longo da história foram atribuídos aos judeus, por exemplo. Aquele filme Europa, Europa é fantástico nesse sentido, pois o menino judeu é a perfeita personificação do ariano e esse menino tenta esconder sua circuncisão, tenta esconder que é judeu. Os dois grandes racismos modernos são o antijudeu e o antinegro. E na origem de tudo isso podemos pensar no que Freud disse no Tabu da virgindade, sobre a mulher que representa uma pequena diferença, sendo que é justamente nessas pequenas diferenças que se fundam os sentimentos de hostilidade entre os indivíduos.

Concordo com o Jurandir, com o Kabengele e com o Tâmis, de que no Brasil existe racismo, mas que é encoberto pela questão de classe. Hoje o racismo brasileiro se apresenta muito mais como um racismo anticlasse, contra pobre, do que especificamente contra negro, só que evidentemente atrás de um pobre tem um afrodescendente, e nesse sentido é obvio que existe racismo e é obvio que a cordialidade brasileira é a manifestação de um racismo diferente do americano. De certo modo, o que eles praticam às claras, nós encobrimos. Aqui houve uma miscigenação sexual muito maior, o que deve ser levado em conta. A luta antirracista aqui também foi e é diferente, e talvez por ser um racismo mais camuflado é mais difícil lutar contra ele. Aqui não tivemos a campanha pelos direitos civis. E ainda não tivemos um presidente negro. Se chegarmos a tê-lo não sei se terá a mesma significação que a eleição do Obama nos EUA.

Então que fique bem claro, é óbvio que existe racismo no Brasil, assim como sei que nunca vou poder viver a experiência que os negros brasileiros vivem, porque é algo no olhar do outro que te coisifica, que te reifica, e essa experiência eu não tenho. A não ser que faça como Na pele de um negro, e é nesse sentido que o livro é interessante. Isso posto, como encarar essa questão politicamente? Aqui minha postura diverge de uma posição mais clássica da esquerda, que pelo meu percurso pode soar esquisita, mas sinceramente não acho que virei de direita ou conservadora por ser contra a política das cotas. Minha postura vem mais da minha experiência de estrangeira do que do discurso político, é ela que me faz pensar assim.

 

PERCURSO E como a psicanálise entra aí?

KOLTAI Acho que é justamente nesse lugar que a psicanálise me ensinou. Primeiro, que não há ganho sem perda, ou seja, qualquer fronteira que você atravesse, geográfica ou psíquica, implica uma perda para poder implicar um ganho. Por exemplo, é muito difícil ser um negro bem-sucedido. Por quê? Porque os negros não vão te aceitar, é como se você fosse um traidor; e, para o branco, você será sempre a exceção. Agora, isso é como o outro te vê, mas como você pode ver isso? Como um favor? Como um direito? Como fruto do seu percurso, como algo que merece ser transmitido para as próximas gerações? Psicanalista pode e deve ter opinião, visto que é cidadão, mas psicanalista não é formulador de política pública. Vamos deixar as formulações das políticas públicas para aqueles que estão encarregados disso e sabem fazê-lo. A minha questão é por que, de modo geral, conversamos tão pouco entre nós, e essa crítica vale evidentemente para mim também. Embora tenha esse duplo percurso, escreva bastante sobre o político, não milito mais e acabo me desinteressando pelos que pensam políticas públicas. É uma pena, mea culpa.

 

PERCURSO Em seu livro O Estrangeiro você propõe que o psicanalista deve militar pelas forças que trabalham em prol da civilização, pela defesa da democracia, pelo reconhecimento dos valores universais sobre os quais repousa a civilização. Como o psicanalista pode militar nessa direção?

KOLTAI Freud nos ensinou que o exílio é a estrutura do sujeito, que somos todos exilados porque falantes. A psicanálise nos ensina que, ao nos darmos conta de que somos impelidos por algo que nos é estrangeiro, podemos, eventualmente, modificar nossa relação singular com o outro e abandonar a eterna procura de um bode expiatório. Os objetivos da civilização implicam a redução da violência às suas formas aceitáveis e o reconhecimento do outro à condição que a aceitação da diversidade cultural não faça esquecer a universalidade dos valores da civilização, e é por isso que penso que a militância possível na psicanálise é trabalhar pelo reconhecimento da alteridade, é estar do lado das forças que militam pela civilização.

 

PERCURSO Seria interessante você falar um pouco mais sobre essa distinção entre psicanalista e formulador de política pública. São situações bem distintas, mas quanto à França você conseguiu formular uma ideia em defesa de uma política pública laica, não é?

KOLTAI No que diz respeito à França, não fui eu que formulei, apenas acompanhei o debate que aconteceu por lá e, de certo modo, tomei partido. Convém lembrar que na França a escola é pública e laica desde a Revolução Francesa. O ensino religioso, qualquer que seja, é proibido, ainda que existam escolas confessionais. O debate lá girou em torno da defesa da escola pública e laica e a interdição dos símbolos religiosos, principalmente o véu islâmico, reivindicação de parte dos migrantes. E eu concordo com a proibição, até porque defendo uma escola laica. Talvez hoje em dia as pessoas não se deem conta do que a Revolução Francesa representou para uma certa geração: a França era o país dos direitos humanos. Li, recentemente, O mundo de ontem, um livro que Stefan Zweig escreveu em 1941, já em Petrópolis, um ano antes de se suicidar, em que faz um histórico da vida dele e de como chegou ao Brasil. E o tempo todo "porque a França é o meu segundo país...", "é o país dos direitos humanos", eu estava ouvindo o meu pai falar! Passei a vida inteira ouvindo em casa que só dá para ser livre em francês! Não é por acaso que precisei fazer análise em francês.

 

PERCURSO Você enfatiza a importância do ensino público, laico e gratuito.

KOLTAI Sim. A educação, a meu ver, deve ser assumida pelo Estado, que deve ser capaz de oferecer um ensino universal. E penso assim apesar de saber que a mesma oferta não produz necessariamente os mesmos resultados. Bourdieu já chamava a atenção para isso nos anos 1960. Minha afilhadinha francesa, por exemplo, que hoje tem 17 anos e sempre estudou em escola pública, livre, republicana, na classe dela, em um bairro ainda não tão refinado de Paris, dos 30 alunos que sua classe tinha no primário, 24 eram de nacionalidades diferentes. Isso, ao mesmo tempo que pode vir a desencadear manifestações racistas, porque o estrangeiro está na polis, é um exercício de convivência com a diferença. E eu aposto nisso, e não nos guetos e nas comunidades fechadas, sejam elas étnicas, religiosas ou sociais.

 

PERCURSO E como pensar isso no Brasil? Em relação às políticas afirmativas, por exemplo.

KOLTAI Em primeiro lugar devo dizer que sou muito reticente com todas as formas de políticas afirmativas. É possível que ainda esteja muito marcada pela minha própria experiência, mas penso que no Brasil, no que diz respeito à educação, em vez de priorizarmos, como estamos fazendo, as ações afirmativas, o Estado deveria reforçar a escola pública, de modo que a classe média voltasse a frequentar a escola pública, para que classes sociais diferentes voltassem a conviver na escola. Acho que a verdadeira política afirmativa seria um investimento maciço nas escolas públicas, onde o ensino ofertado fosse o mesmo que as escolas particulares oferecem hoje em dia. Enquanto tivermos uma escola de classe média de mediana qualidade - porque mesmo em parte das escolas particulares a qualidade não é lá grande coisa - e uma escola pública abaixo da crítica, com uma ou outra experiência que deu certo, o que se faz é reforçar a discriminação na raiz, para tentar solucioná-la lá em cima, quando o ressentimento já está bem instalado e quando o que se recebe é vivido como uma compensação e não como um direito. Tenho a impressão, talvez errônea, de que as políticas afirmativas apenas na universidade, assim como todas as cotas, são uma compensação e não o exercício de um direito.

 

PERCURSO Um dos argumentos é que o resultado do investimento na escola pública seria muito demorado.

KOLTAI Pois é, mas enquanto se investe só nas cotas, você pode achar que já fez a sua obrigação e que está tudo bem. Esse é o problema. Eu adoraria, por exemplo, que a minha neta não estudasse numa escola particular onde estamos nós entre nós. Da maneira como funciona nosso sistema de ensino, a escolha da escola acaba sendo uma escolha narcísica. Até concordo que por um tempo se lute nas duas frentes, a de uma verdadeira democratização de um ensino de qualidade e nas ações afirmativas. Seria possível, teoricamente, ter as duas coisas juntas, as cotas e a política universalista, mas na prática não vejo isso acontecer. Em relação às cotas, a pessoa pode escolher se quer ou não ingressar por esse sistema, pois ninguém é obrigado a ingressar por meio dele. É uma oportunidade que se oferece. O meu problema com as cotas é por considerar que vai jogar para as calendas gregas a escola pública.

 

PERCURSO Nessa discussão, muitos consideram que as pessoas vão ter que deparar com o seu próprio racismo, que está lá escondidinho, quietinho...

KOLTAI Está lá escondidinho porque eu não convivo com o outro, não deparo, por exemplo, com aquela frase que uma criancinha pode dizer: "você é preto" e coisas do gênero. E esses termos como afrodescendentes, mal videntes, mal escutantes... acho isso delirante! O politicamente correto me parece uma aberração. Não dar nome aos bois é trair a palavra! Essas brigas de criança - "seu negro", "seu feio" - são importantes para que a pessoa possa se assustar com o que diz. "O que é mesmo que eu disse para o meu amiguinho?". Talvez seja a única chance de você ser um pouco menos racista. O resto fica por conta de uma análise, agora estamos falando das possibilidades da educação.

Mas enfim, sou a favor da escola pública e acho que tem que se investir nela. As pessoas que frequentam bons colégios particulares se refugiam, às vezes, no fato de seus alunos participarem de um trabalho social. Não tenho nada contra o trabalho social efetuado por essas escolas de elite, muito pelo contrário, ainda que como analista me pergunte se não é uma maneira de se adquirir boa consciência e se sentir ainda mais reforçado narcisicamente, do tipo: "Sou um rico progressista, sou legal, fui fazer trabalho no social", mas também "fui levar a boa palavra...", fica como uma ação de missionário. Mas então não vou fazer nada? Não, acho que é pior ainda! São perguntas para as quais não tenho uma resposta. Mas considero que não dá para se esconder na boa consciência de que estamos fazendo algo, sem continuar nos cutucando.

 

PERCURSO Como é que você pensaria a questão da reparação?

KOLTAI É uma pergunta complexa e difícil de responder. É um processo que começou no pós-guerra quando o governo alemão propôs compensações financeiras aos sobreviventes que perderam tudo na guerra. Entendida desse modo, sou contra, porque acredito que não é possível reescrever a História e principalmente não há como ressarcir certos crimes, não há dinheiro que pague uma vida. Por outro lado, bens materiais que foram roubados, como obras de arte, por exemplo, é importante que voltem aos seus legítimos donos.

Talvez haja uma cultura familiar em jogo aí, mas assim como minha família não pediu ressarcimento ao governo alemão, no que foram uma exceção no meio em que viviam, tampouco me passou pela cabeça pedir algum tipo de indenização pelo meu exílio. Minha militância foi uma escolha e eu sabia dos riscos. Estou falando em nome próprio e que fique claro que não sou exemplo de nada. Várias pessoas me disseram "Você ficou 12 anos exilada, seus pais ficaram longe da filha única durante 12 anos, você tem que pedir indenização por eles!". Mas se eles não pediram por eles, eu vou pedir por eles!? Além do que, pessoalmente, acho que foram os melhores anos da minha vida. Não é porque você é uma exilada que você é infeliz, essa também é uma associação errada.

 

PERCURSO Mas a ideia não é essa. O ressarcimento está ligado ao fato de que a sua trajetória, a sua formação, a sua profissionalização foi barrada, em muitos casos as pessoas perderam seus postos na universidade, perderam seus empregos...

KOLTAI Pois é, mas as pessoas escolheram, escolheram fazer a revolução. É a escolha do sujeito, senão nenhuma escolha teria preço.

 

PERCURSO Mas e os crimes de Estado? A tortura? Não há uma reparação que o Estado deva fazer?

KOLTAI O Estado tem que se responsabilizar pelos que prendeu, matou e torturou. E por isso sou a favor das Comissões da Verdade e acho que elas são importantíssimas, assim como sou mais do que favorável às Clínicas do Testemunho, pois me parece fundamental criar um espaço de fala onde as pessoas possam ser ouvidas.

 

PERCURSO Mesmo o exílio você acha que é uma escolha pessoal?

KOLTAI Sem dúvida. E talvez aqui valha distinguir migração de exílio. Entendo por migração a condição imposta ao sujeito para escapar de algum tipo de perseguição, ainda que voluntária e assumida, e por exílio aquilo que esse movimento implica de sensação de um não retorno. O exílio acaba sendo sempre um momento de passagem entre dois lugares, o de origem e o de acolhimento; de dois tempos, o do medo e o do alívio. Sair de seu país é sempre uma escolha do sujeito, mesmo quando a situação está tão ruim que é a única possível. No meu caso pessoal, ninguém me obrigou a fazer política estudantil, foi uma escolha minha e suas consequências também. Uma escolha de jovem? Talvez.

 

PERCURSO Mas quando não é uma escolha? A situação da escravidão, do racismo...

KOLTAI Aí é diferente! Mas escravidão é uma condição, não um exílio. É diferente ser perseguido pelo que se é e pelo que se pensa. É importante fazer essa distinção. Tanto os negros quanto os judeus foram perseguidos ao longo da História pelo que eles eram, e no caso dos judeus nem a conversão resolvia o problema. Quanto ao negro escravizado, nem essa opção ele tinha. É muito diferente, aí é um crime de Estado. Quando o Estado resolve ressarcir financeiramente, ele repara com a única coisa que o capitalismo reconhece, que é o dinheiro. Vou dar uma segunda chance para as pessoas recomeçarem a vida. Tudo bem, nada contra, a questão é quem pede e quem não.

Uma coisa é o Estado se colocar e propor uma forma de retratação, mas é o outro que vai considerar se tem direito, se quer usufruir dessa retratação ou não. Aí temos o lugar da política e o da escolha do sujeito. São dois posicionamentos diferentes. Neste sentido, sim, acho que o Estado deve responder por seus crimes.

 

PERCURSO Você considera que as políticas afirmativas poderiam ser criticadas a partir desse lugar de reparação que você mencionou?

KOLTAI De certa maneira sim, ainda que essa seja uma opinião muito pessoal. Não acredito que possamos apagar a tragédia da escravidão com meras políticas afirmativas ou com um ressarcimento monetário que seria, a meu ver, um mergulho na lógica capitalista, vendendo a ilusão de que o dinheiro paga tudo, inclusive a vida. Insisto no fato de que, embora existam vítimas de trágicos acontecimentos sociais, não se reescreve a História, e que do meu ponto de vista é muito mais importante que o sujeito lute por seus direitos, do que reivindique um ressarcimento. Sei que é politicamente incorreto pensar assim, mas caso contrário me parece que produzimos vítimas em série, e não por acaso no mundo de hoje deparamos com múltiplas reivindicações identitárias, em nome de diferenças específicas transformadas em valores absolutos.

 

PERCURSO Você retoma a expressão "a palavra ou a morte", do psicanalista Moustapha Safouan, para pensar a linguagem como a única saída para a violência. Você considera que essa discussão que está acontecendo tem essa função?

KOLTAI Ela é superválida e espero que não pare por aí. Esse debate talvez aumente a conscientização do racismo. Não seria tão ruim assim se saíssemos do discurso cordial para assumir esse racismo cotidiano que mora em nós. É só olhar em volta. Quantos colegas negros você teve na escola? Com quantos negros trabalhamos? Quantos são os analistas negros? Quantos amigos negros temos? O racismo se esconde atrás da condição de classe. Falo de um assunto que está para lá do politicamente incorreto. Veja o Joaquim Barbosa, todo mundo achou ele o máximo, eu sinceramente não penso assim. Ele prestou um serviço à nação, comprou uma briga importante, mas o tom de ressentimento desse homem é algo da ordem do insuportável e que agora vai aparecendo, pipocando, quando ele fala "vai chafurdar no lixo"..., quer dizer, uma hora escapa, aparece. É um negro que deu para lá de certo, é um intelectual, fala mais línguas do que todos nós aqui juntos e carrega o ressentimento da vítima. Aí é importante ressaltar que no lugar dele eu também teria o ressentimento. Estamos falando de como é difícil ultrapassar isso. Neste caso, ao aparecer como o único que atravessou o deserto sozinho a situação é muito delicada.

 

PERCURSO O que mudaria se a cota fosse social em vez de racial?

KOLTAI Para mim mudaria muito pois deslocaria o problema para uma questão social, sem fechá-lo numa questão identitária, além de dar menos espaço ao ressentimento.

 

PERCURSO Mas aí não ocorreria, de alguma maneira, a negação da questão racial presente no Brasil?

KOLTAI Depende de como você coloca, se você explicita que podemos entender que a cota é social, ainda que saibamos que a grande parte aí presente é de negros, me parece melhor. Meu medo é tudo aquilo que fecha em uma identidade, seja ela qual for. Seja só do judeu, seja só do negro, seja da mulher. Aliás, a meu ver, aí residem as questões e dificuldades do movimento feminista.

Minha questão é quando fecha o sujeito numa identidade, que aliás é uma consequência do fracasso das ideologias políticas. Gosto muito de Marc Angenot, um sociólogo belga-canadense que, em seu livro As ideologias do ressentimento, mostra como as ideologias também têm seus altos e baixos. Com a morte das ideologias progressistas que marcaram a década de 1960/1970, que acreditavam na libertação do ser humano, instalaram-se ideologias do ressentimento que fecham o sujeito numa única identidade. Concordo com ele. Essas ideologias identitárias, todas elas, são uma resposta ao fracasso das ideologias progressistas que marcaram a década de 1960/1970. Esse também é o alvo da preocupação de Hassoun que aponta que vivemos tempos melancólicos. Segundo ele, enterrar ideologia é ainda mais difícil do que enterrar pessoas porque neste caso sabemos onde elas estão enterradas, podemos ir ao túmulo, mas a ideologia morre, nós a enterramos e não sabemos onde. Acho que ainda não fizemos um luto das ideologias da generosidade e da solidariedade. Não suportamos o seu fracasso e rapidinho colocamos outras no lugar. Faltou assimilar a perda e para não depararmos com a falta, fomos procurar lá atrás as ideologias identitárias. É muito difícil viver sem ideologia, é muito difícil não poder projetar o futuro.

 

PERCURSO E o que você acha que aconteceu no Brasil onde é quase proibido falar contra as cotas?

KOLTAI Acho que o Brasil é o país da moda e é moda em tudo. Hoje em dia falar contra a cota é visto como posição de direita. Eu não tenho o menor problema quanto a isso porque tenho a plena certeza de que não sou de direita, nunca fui e nunca serei, nem que quisesse. Reconheço o direito das pessoas de serem de direita, não acho que é um palavrão, é uma escolha política como outra qualquer. Mas hoje em dia não se sabe mais o que é ser de direita ou de esquerda. São palavras que deixaram de dizer o que um dia disseram, enfim talvez eu prefira trocar por conservador. Quando digo que sou contra as cotas não é em defesa do status quo conservador. Sou contra porque me pergunto quais são os efeitos subjetivos que isso vai produzir. Sou uma psicanalista interessada nos efeitos subjetivos que essas políticas produzem nas pessoas, é daí que eu falo. São pouquíssimas as coisas que aprendi na vida, mas essas poucas marcam o que faço. Uma delas é que não dá para camuflar as perdas. As perdas existem, elas deixam marcas, elas se inscrevem e a minha pergunta é: o que faço com elas? E o que eu tenho a ver com elas? Porque algumas lhe foram impostas, outras você foi escolhendo ao longo da vida. Também aprendi, e hoje em dia tenho certeza disso, que não sei o que é bom para o outro e, em tudo o que penso e faço, tento me perguntar se não corro o risco de cair na tentação do bem. Através da destampada que a psicanálise dá no campo desejante, aprendi que o desejo circula do subjetivo ao político e do político ao subjetivo. Levar uma vida desejante é não se deixar fechar como objeto do outro e nem do pensamento dominante. É suportar que você pague o preço de pensar contra a corrente. É suportar que você não pense igual aos mais próximos. É suportar a solidão. Isso também a psicanálise me ensinou, que a solidão é constitutiva e você tem que saber fazer algo com ela. Porque pensar, de verdade, exige solidão. Pensar exige ver o que os outros pensam, dialogar com eles e depois se perguntar: e eu? Como é isso para mim? É não querer ser aprovado a qualquer custo, não querer ser amado a qualquer custo, nem pelo que você é e nem pelo que você pensa. São poucas coisas, mas considero que mudam muito a qualidade de vida do sujeito.

 

PERCURSO E, nesse sentido, que papel a psicanálise poderia ter nessa discussão toda?

KOLTAI Cada vez mais penso que a psicanálise não é para todos, e não por questões econômicas ou intelectuais. Se não existe uma interrogação sobre o seu sofrimento, não tem por que fazer psicanálise. Uma das coisas que me surpreende na nossa pós-modernidade é que a tristeza virou algo proibido, e a tristeza faz parte da vida, assim como a solidão, assim como os lutos inevitáveis, ou seja, nem sempre a vida é um mar de rosas. Também nem sempre é um breu horroroso. Hoje em dia, a menor tristeza parece que tem que ser curada, então é antidepressivo contra o luto, é Viagra para não deparar com a impotência... Nada contra se você quiser, mas enfim, antes de tomar o antidepressivo, o Viagra, pare e se pergunte o porquê. Agora o analista não está dispensado do dever de cidadania, não está dispensado de se preocupar com o mundo em que ele vive porque ele recolhe os efeitos do mal-estar no consultório. Os sintomas são históricos, não é porque não encontramos mais as histéricas do Freud que não temos mais histéricas. Até para ouvir o sintoma cotidiano, você tem o dever ético de saber em que mundo você vive, não apenas em que país você vive. Você tem obrigação de ler jornal, de estudar, acho que grande parte dos analistas são ignorantes, estudam pouco e só estudam psicanálise, o que acho pecaminoso. Temos que ler outras coisas que não psicanálise. Existe vida inteligente fora da psicanálise. Um analista não pode ficar lendo Lacan o dia inteiro como se fosse a bíblia, digo Lacan porque é mais próximo, mas imagino que os kleinianos façam algo equivalente. É fundamental ler literatura. O psicanalista é um homem do seu tempo, ele tem que saber em que tempo ele vive. Freud nunca deixou de comentar o mundo em que viveu, muito pelo contrário, grande parte de sua teorização foi consequência do mundo em que ele vivia. Não fosse a guerra, ele não teria teorizado a pulsão de morte. Freud sempre se interessou pelo mundo em que vivia, ele não era militante, era um burguês liberal, mas sempre leu muita literatura, por isso escreveu tão bem e até hoje temos prazer em lê-lo. Lacan sempre se interessou pelo mundo dele, os grandes analistas sempre se interessaram. Nesse sentido acho que o analista tem sim o dever de ler, de estudar, de saber do mundo.

Agora análise é uma experiência a dois, de alguém que demanda e de outro que acha que pode escutá-lo. Não é uma norma de vida, é uma aventura. Ainda acho que a psicanálise é uma grande aventura, uma das poucas grandes aventuras possíveis do século XXI. É para quem quer e para quem tem a sorte do encontro também, como tudo na vida que depende de sorte. Não é com qualquer pessoa que você faz uma grande análise, assim como você não é um bom analista para qualquer paciente. Você pode ser um péssimo analista com um paciente e ser um ótimo analista para outro. Agora estou chegando ao ponto de não ser a primeira analista das pessoas que me procuram, porque quando você começa você é a primeira. E quando você começa a ser a segunda ou a terceira analista, você vê análises com analistas, os quais pessoalmente admiro muito, em que aparentemente não aconteceu grande coisa. E às vezes você tem um paciente que fez análise com alguém que você nunca ouviu falar e percebe que a pessoa fez um percurso lindo. Análise é uma aventura que exige um encontro. É uma história de amor, não é um trabalho burocrático. Uma análise tem que ser o encontro de duas subjetividades.

 

PERCURSO Você também reflete sobre a importância da gratidão, gostaria de falar a respeito?

KOLTAI A gratidão, para mim, tem a ver com a psicanálise e com Hannah Arendt, que é uma filósofa política de quem gosto muito. Acho que sem gratidão não haveria o possível, é a vida do ressentimento: não me amaram o suficiente, não me deram o suficiente, não tive o suficiente. A gratidão é o oposto disso: amaram-me o melhor que puderam, pude fazer algo com isso, tive encontros que me acrescentaram. Não é gracias a la vida, mas é quase isso! Para sair dessa inveja permanente tem que haver gratidão pela experiência de vida, pelo outro ter se emprestado para você poder fazer a sua experiência, porque o outro se empresta. Acho que em uma análise que é uma análise para valer - e eu pude fazer essa experiência dos dois lados -, nenhum dos dois envolvidos sai igual. O analista também não sai igual, o analista continua sua análise com seus pacientes. A gratidão é fundamental na vida! Em relação aos seus pais, em relação aos seus amigos. Considero a amizade uma das coisas fundamentais da vida e acho que amizade e psicanálise são primos irmãos. O psicanalista e o verdadeiro amigo estão muito próximos. A pessoa que não é grata em relação ao que recebeu não tem o que transmitir.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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