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Resumo
Resenha de Ana Carolina Soliva Soria, Do indivíduo à cultura: um estudo sobre Freud. Jundiaí, Paco Editorial, 2012, 143 p.


Autor(es)
Janaina  Namba
é doutora em Filosofia pela UFSCAR, aluna do Curso de Psicanálise (2o ano) do Instituto Sedes Sapientiae.


Notas

[1]    J. Laplanche, Vie et mort en psychanalyse. Paris, puf, 2008, p. 21.

[2]    J. Laplanche, op. cit., p. 21e 31.

[3]    C. Lévi-Strauss, Les structures elementaires de la parante, Paris, Mouton&Co, 1967, p. 29.


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 LEITURA

Do indivíduo à cultura ao indivíduo

[Do indivíduo à cultura: um estudo sobre Freud]


From the individual to the culture to the individual
Janaina  Namba

Podemos observar logo na introdução do livro de Ana Carolina Soliva Soria, Do indivíduo à cultura: um estudo sobre Freud, o modo claro como apresenta as ideias de Freud. O livro é fruto de sua dissertação de mestrado, que investiga o papel da fantasia na teoria freudiana. A autora nos anuncia neste início que dará um destaque especial para a teoria da sedução, melhor dizendo, para o abandono dessa teoria, que leva em consideração a existência de um evento real original de sedução. Isso ocorre não apenas pelo fato de o abandono da sedução ser um ponto crucial na teoria freudiana, já que "isto se deve à descoberta de que os relatos de suas pacientes não passavam de fantasias" (p. 12) e Freud passa a ter um "novo ponto de vista acerca do exame do psiquismo, em que substitui a concretude do evento real pela realidade psíquica" (p. 13), mas também pelo fato de que, a partir de sua pesquisa sobre a teoria freudiana da cultura, Soria encontra uma brecha sugestiva de que essa renúncia não aconteceu completamente e que o evento real passa a ser procurado em outra esfera, "não mais dos acontecimentos individuais, mas no curso da espécie humana. Para isso, o recuo deste evento marcante deve ser tão grande para que não abranja apenas pequenas comunidades, mas que seja válido para todos os seres humanos" (p. 13-14).
 

Para analisar de perto o estatuto da fantasia, seja ela individual, seja pertencente à espécie humana, neste último caso, as protofantasias, Soria realiza uma leitura filosófica, bastante rente à concepção teórica de Freud, e utiliza como fio condutor de sua exposição a teoria das pulsões. Para isso, examina minuciosamente desde a psicologia individual, o desenvolvimento infantil e as neuroses para alcançar a psicologia dos povos na obra do pai da psicanálise: "as diferentes etapas pelas quais passam as pulsões nos trazem à luz os eventos determinantes da espécie" (p. 15).

 

Ainda que o título aponte para um estudo que se desloca do indivíduo para a cultura, poderíamos sugerir um complemento: de volta para o indivíduo, isso porque no capítulo 4, A vivência pré-histórica e as disposições psíquicas, encontramos um realce das protofantasias como material fundamental para o estabelecimento da realidade psíquica na teoria freudiana, e, nas Considerações finais, a autora nos sugere que Freud constrói uma concepção de homem que "abrange três campos distintos do conhecimento, a saber, o biológico das pulsões, o biográfico da infância, e o sociológico da cultura; campo abarcado pelas fantasias" (p. 133).

 

A autora diz que ter "uma ideia clara da teoria freudiana das pulsões não é tarefa simples" (p. 17), a começar pela dificuldade de encontrar na língua portuguesa a palavra correspondente para Trieb em alemão. Comenta que a opção adotada foi a palavra pulsão, como vinha sendo utilizada por parte da antiga e recente traduções da Imago, bem como a tradução de alguns textos de Freud feita por Marilene Carone, ainda que Paulo César Souza, diferentemente, tenha optado por traduzi-la por instinto, o que gerou assim grande controvérsia. Ela o faz justificando que, de acordo com o dicionário "Laplanche e Pontalis (2000), do ponto de vista etimológico, Trieb e pulsão conservam a ideia de uma força de impulsão (treiben - impelir), sem levar em conta uma finalidade objetiva, ao passo que a palavra instinto (Instinkt), usada por Freud num contexto nitidamente delimitado, qualificaria o comportamento animal hereditariamente fixado" (p. 17), e "que se repete segundo modalidades relativamente adaptadas a certo tipo de objeto"[1]. Soria segue dizendo que, "para entendermos o sentido da palavra Trieb na psicanálise, é muito importante termos em mente a multiplicidade de seus sentidos" (p. 18). Quanto a isso encontramos em Laplanche, Vida e morte em psicanálise, que, ainda mais importante que a etimologia ou as ressonâncias semânticas, seria a descoberta dessa relação de significados, estabelecida entre esses dois termos no pensamento freudiano (Instinkt e Trieb). Relação que pode ser pensada a partir de uma analogia, uma diferença e uma derivação. Derivação real da pulsão, no homem, a partir do instinto, como, por exemplo, com o apoio inicial das pulsões sexuais sobre as funções vitais[2].

 

É notável como a autora nos introduz e nos transporta pelo conceito de pulsão, uma vez que o fio condutor de sua pesquisa é a teoria pulsional. A partir da explicação das características das pulsões - fonte, pressão (Drang), meta e objeto: "as quatro propriedades pulsionais nos mostram o percurso da pulsão desde a sua origem como estímulo corporal até a sua satisfação" (p. 27) - é que nos apresenta as diferentes facetas do aparelho psíquico proposto por Freud, ou ainda, como se dá a genealogia dos sistemas psíquicos e a formação dos representantes pulsionais. Isto é, apresenta o surgimento do aparelho psíquico, assim como descreve seu funcionamento quanto aos aspectos tópico, econômico e dinâmico, enfatizando especialmente o aspecto econômico quando menciona os modos de funcionamento psíquico conforme os processos, primário e secundário: "o aparecimento dos diferentes sistemas anímicos e os diferentes modos como a pulsão ganha representação no psiquismo estão estreitamente relacionados com a mudança do funcionamento do aparelho psíquico, a saber, com a passagem do processo primário para o processo secundário" (p. 37). A partir desse "conceito-limite", somos então levados a percorrer aspectos importantes da primeira tópica da teoria freudiana e a observar que as esferas fisiológicas e psíquicas encontram-se numa "relação de completude" (p. 29).

 

Antes de nos dirigir à segunda tópica, a autora nos ressalva a respeito da necessidade de uma reformulação conceitual que permitisse a Freud não cair num engodo teórico: o de haver um terceiro inconsciente, de modo que "não só o reprimido, mas também a instância repressora que na primeira tópica se encontrava no pré-consciente, pode ser inconsciente" (p. 48). Dado que nem todo o inconsciente é reprimido, mas continua sendo todo o reprimido inconsciente, foi necessário a Freud incluir a instância repressora, "igualmente inacessível para a consciência" (p. 48). E é justamente pela via da precisão linguística que Soria nos descreve uma instância psíquica específica: "é no pronome pessoal neutro da língua alemã que Freud vai buscar a palavra que melhor expressa esse âmbito anímico: das Es" (p. 48). Ainda que em português não haja "nenhuma palavra que traduza de modo satisfatório esse pronome que não é nem feminino, nem masculino", utilizou-se do pronome demonstrativo Isso, por fazer referência a "eventos de causas indeterminadas, a ações que independem do sujeito ou a sensações corpóreas e psíquicas" (p. 48-9).

 

Independentemente da escolha da autora com relação ao pronome, é interessante notar o modo como Soria retoma a letra de Freud para descrever algumas características do Isso e contrapô-lo tanto tópica quanto dinamicamente ao Eu: "O Isso é um caos, "uma caldeira plena de excitações borbulhantes", cujas leis do pensamento não encontram nenhum tipo de expressão. Nele, moções opostas e contraditórias podem coexistir sem conflito. E como não conhece divisão entre interior e exterior, não é afetado nem pelo tempo, nem pelas leis morais" (p. 49). O Eu, enquanto instância conciliadora entre o mundo externo e interno, seria a grande responsável por permitir o "inevitável transbordamento das excitações psíquicas para o exterior" (p. 52).

 

Ao expor as relações entre as instâncias Eu e Isso, a autora se questiona quanto à gênese da instância egoica, e acaba por nos mostrar que o modo de pensar de Freud, ao realizar um paralelo entre o organismo e o psiquismo, parte de "moldes do funcionamento orgânico, seguindo o modelo do como se fosse assim" (p. 52). Apresentar a gênese do Eu, instância, extensa e por excelência consciente e inconsciente, significa em seu trabalho poder acompanhar o fio condutor pulsional desde a correlação entre os sistemas psíquicos da primeira tópica e as instâncias psíquicas na segunda tópica, até a constituição de um indivíduo erotizado e fantasiado que ingressa no complexo de Édipo: "o apoio das pulsões sexuais nas de autoconservação determina a escolha do primeiro objeto de amor: este será sem dúvida a mãe. E o desejo de se unir novamente ao objeto é expresso pelo desejo de se unir a ela. Essa é a grande fantasia do Eu, que revela a impossibilidade de abandonar o estado narcísico original" (p. 64).

 

O ingresso no Édipo é marcado pelo primeiro tempo da eleição de objeto, pelas identificações e pela lei contra o incesto. Esse primeiro momento em que se elege objeto de amor é marcado, no Édipo dito normal, por uma grande rivalidade, bem como por identificações com o progenitor do mesmo sexo. O que significa dizer com relação às instâncias que há a edificação da terceira instância, o sobre-Eu: "esta nova instância surge com as identificações com aquele que impõe a proibição do incesto. Ao incorporá-lo em seu Eu, a instância responsável pela censura já não se encontra apenas no exterior do sujeito, mas também em seu interior. As identificações com o pai formam um precipitado no Eu, que dele se separa para dar origem à nova instância psíquica" (p. 66).

 

"Impedir o incesto é essencial para a saúde psíquica do indivíduo, já que interdita a fusão do sujeito com o objeto escolhido" (p. 67). A interdição do incesto é, para Claude Levi-Strauss, o fato que marca a saída da natureza e o ingresso na cultura. "A proibição do incesto é o processo pelo qual a natureza se ultrapassa a si mesma; ela se acende sob a ação da qual, uma estrutura de um novo tipo e mais complexo se forma e se superpõe, ao integrar-se às estruturas mais simples da vida psíquica [...] Ela opera e por ela mesma constitui o acontecimento de uma nova ordem"[3].

 

Ainda que não haja um estado de natureza na teoria freudiana, quer dizer, um aparelho psíquico submetido exclusivamente ao princípio do prazer, é possível pensá-lo como ficção e como princípio que, para as pulsões sexuais, se prolonga, pois estas se demoram no período autoerótico e encontram satisfação no próprio corpo, "de modo que não chegam à situação de frustração" (p. 85), como às pulsões egoicas, às quais fora imposto o princípio de realidade muito precocemente.

 

De acordo com Soria, "a persistência do autoerotismo torna possível que a satisfação instantânea e fantasiada relativa ao objeto sexual seja mantida por mais tempo, em lugar de uma satisfação efetiva, que exige esforços e adiamentos" (p. 86). E como nos é lembrado pela autora, o grande interesse freudiano pelas fantasias diz respeito à formação do sintoma e à realidade psíquica.

 

A autora nos mostra assim que, para Freud, a realidade psíquica aparece como oposição à realidade material, e "as fantasias são realizações de desejos inconscientes ligadas às pulsões" (p. 95), mas considera que "Freud deve [também] atribuir uma realidade material à fantasia, pois senão, sua teoria estará condenada ao fracasso. Como buscar a realidade dos fatos se a história individual não nos fornece nenhum indício material para a origem da fantasia?" (p. 97-98). Ou seja, como atribuir uma realidade material à fantasia uma vez que, a partir dos relatos de seus pacientes, Freud conclui que o conteúdo desta é sempre o mesmo e, na maioria das vezes, encontra-se em desacordo com o os fatos vividos individualmente. Isso faz com que Soria nos aponte ainda outra questão: "deveria Freud recorrer a algum tipo de concepção que não conceda uma realidade própria à fantasia e que não veja nela nada mais que uma expressão da imaginação que mascara a dinâmica pulsional?" (p. 99).

 

É sabido que para Freud as fantasias têm como fonte a pulsão. No entanto, a autora nos lembra que as fantasias com conteúdo idêntico (sedução infantil, incandescência da excitação sexual na observação do comércio sexual entre os pais e a castração) são protofantasias (Urphantasien), ou fantasias filogenéticas, e diz que essas "fantasias nos reenviam a uma dupla pré-história: à individual na infância, e à filogenética na espécie" (p. 101). As protofantasias "distinguem-se [então] das individuais pela universalidade de seus temas e por oferecerem uma resposta ao enigma das origens" (p. 109). No entanto, temos acesso a esse enigma apenas de maneira indireta, seja pelo relato clínico, seja pela elaboração teórica. Isso leva a autora a afirmar que "para chegar ao conhecimento do conteúdo dos esquemas filogenéticos, jamais fornecidos diretamente ao indivíduo, devemos nos mover no campo das hipóteses, onde o "proto-homem" (Urmensch) não é senão uma ideia" (p. 109).

 

Ainda que o "estudo da neurose relaciona-se estreitamente com o estudo das origens; Freud orienta a sua busca em direção à realidade dos fatos, o homem que descobre não é um homem real, bem como a origem não indica um passado remoto" (p. 132). E é nesse sentido que o livro de Soria nos remete a uma leitura estrita das ideias de Freud, desde o indivíduo até cultura e de maneira inesperada de volta ao indivíduo, freudiano, como concepção teórica.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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