EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Resenha de Mauro Mendes Dias, Os ódios: clínica e política do psicanalista, São Paulo, Iluminuras, 2012, 141 p.


Autor(es)
Marilucia Melo Meireles
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre e doutora em psicologia clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Autora do livro Anomia: ruptura civilizatória e sofrimento psíquico (Casa do Psicólogo, 2001) e coautora, com Marco Aurélio F. Velloso, de Seguir a aventura com Henrique Jose Pichon-Riviére: uma biografia (Casa do Psicólogo, 2007).

voltar à primeira página
 LEITURA

Viva o ódio!

[Os ódios: clínica e política do psicanalista]


Long live to hate!
Marilucia Melo Meireles

O leitor não encontrará, nesta obra, qualquer exame sobre categorias tão comuns das ações humanas: violência; agressividade, impulsividade, fúria, incontinência psíquica, mau-humor; bondade-maldade; coragem-medo; irracionalidade; intolerância-tolerância, passionalidade.

 

Tampouco investigações sobre o córtex pré-frontal, esquerdo ou direito, explicativas dos processos de descontrole que regem o nosso sistema nervoso e consequentemente nossa conduta.

 

Menos ainda aprenderá algo que envolva decisões morais, nem alguma referência aos "sete pecados capitais".

 

Não. O livro de Mauro Mendes Dias vai numa contradireção.

 

Reunindo a transcrição de quatro comunicações dirigidas a uma plateia de psicanalistas, realizadas em junho de 2008, em São Paulo, durante dois fins de semana consecutivos - a última compreende perguntas e respostas de um debate com o público -, a proposição ao leitor é a de convidá-lo a desconsiderar os significados existentes acerca do ódio e deter-se, exclusivamente, na investigação de seu lugar metapsicológico no conjunto das proposições da doutrina psicanalítica.

 

O resultado desse esforço empreendido em torno dos ódios é este livro, lançado quatro anos depois.

 

Além do rigor clínico-teórico de seu autor, esta obra expõe seu pensamento e sua posição política dentro do campo das psicanálises.

 

Denunciando inicialmente um inexplicável silenciamento de nossa comunidade psicanalítica em torno dessa temática, sugere a existência entre nós, talvez, de "um compartilhamento com os ideais morais de nossa civilização", uma sociedade cada vez mais produtora de sujeitos pasteurizados, equilibrados em sua pusilanimidade (p. 23).

 

Herdeiro da tradição lacaniana, mas nem por isso aprisionado a ela, Mauro Mendes escolhe o plural para examinar o ódio, daí, os ódios: clínica e política do psicanalista, este, singularizado.

 

A escolha do plural - ódios - decorre de sua determinação de evidenciar a falta de unidade encontrada em torno desse conceito no interior da obra freudiana e, num segundo momento, na de Lacan. O resultado é uma acalorada conversa epistemológica com seus interlocutores, explicitando as modulações encontradas e se negando, radicalmente, a fazer uso apressado de superposições entre as duas teorias.

 

Sua primeira tese é a de que a ideia de ódio encontrada em Freud - quando de seus estudos sobre a constituição do sujeito - se embaralha com a noção de desprazer.

 

O ódio, oriundo da incidência inexorável do mundo externo sobre o par ego-prazer, rompe o equilíbrio homeostático encontrado neste par ideal, mãe-bebê. A frustração desencadeada diante do não atendimento das suas necessidades impõe-lhe o existir, enquanto espécie humana, inscrito na condição de castrado, uma vez que a externalidade, como Outro, não se curvará diante de suas demandas.

 

Nesse sentido, o ódio é ao mesmo tempo "constitutivo da concepção de espaço e de exterior", "está antes do sujeito", impõe-lhe assimetrias e pode, por isso mesmo, ser recoberto pela insistência dos fatores egoicos e narcísicos, obturando a presença do simbólico.

 

Ao agregar a noção lacaniana de ódio enquanto uma das paixões do ser, Mauro Mendes articulará, ou melhor, trabalhará de maneira dialética esta noção, ora descrevendo ora aproximando as duas teorias, decantando-as e sustentando o prejuízo que acarretou à teoria freudiana a divisão estabelecida pelos referentes internos ou externos, levando à ilusão de que a unidade poderia ser conservada caso a externalidade não se atualizasse inexoravelmente sobre o sujeito.

 

A teoria do simbólico, em Lacan, é mais favorável ao seu ensinamento, pois o exterior não será mais colocado do lado de fora. A suspensão da barra - significante/significado - trará ao sujeito a ilusão da fruição, do triunfo, de sua grandeza, o de ser o dono da verdade, campo fértil para o surgimento da cegueira do ódio.

 

Para Mendes, faz toda a diferença a introdução dessa concepção, uma vez que apaixonar é, de certa maneira, manter-se nessa indiscriminação, num bunker gerador de amores-ódios implacáveis, prontos para a destruição, caso sejam perturbados.

 

O ódio, nesse caso, é sem barr(a)eiras, diluído, líquido, pronto para escorrer no ato.

 

O corpo é seu ancoradouro, mais uma diferença evidenciada, na medida em que, freudianamente falando, o ódio é descarga quantitativa, é afeto, e em Lacan, será o gozo.

 

Ao redigirmos uma resenha é esperada apenas a transmissão, ao leitor, dos principais eixos contidos no livro. Tarefa inglória no nosso caso, pois, sendo comunicação oral, coube ao autor-orador transitar livremente pelos meandros de seu pensamento, nos brindando com uma infindável articulação sobre os ódios.

 

A virada, a meu ver, contida na proposição dessas quatro reuniões, se dá quando Mauro Mendes nos apresenta os fatores estruturantes do ódio.

 

Como assim? Sentir ódio é necessário, mais do que isso, é imprescindível, e deve ser, portanto, positivado. É preciso haver ódio para que aconteçam os avanços, a progressão, a constituição de nossa subjetividade. Na medida em que, desde o nascimento, somos alienados pelo que do outro capturamos como nossa imagem, só nos resta saída quando deparamos com os limites advindos do Outro, e nos vemos destituídos da permanência, da possibilidade da insistência, da birra por uma continuidade homogênea, por uma mesma natureza.

 

O ódio portanto é superação, é emancipação. A revolta radical de Antígona quando disse "eu não sou movida pelo amor, mas sim pelo ódio" é a confirmação suficiente de sua positividade (p. 25).

Em seu próprio dizer:

 

o ódio comparece promovendo uma dialetização da imagem por via do significante. O ódio, em termos da experiência psicanalítica, não é apenas o querer mal ao meu semelhante, como o moralismo ocidental apregoa. Não, o ódio é um fator de presença de sujeito, porque, na medida em que se destaca esse elemento significante da imagem, aquela constituição unitária é afetada e o sujeito é levado a ter de colocar um elemento novo no lugar (p. 41).

 

Encorajo-me a afirmar que um dos pontos altos dessas comunicações foi, para mim, o trabalho exaustivo ao qual o autor se dedicou ao apresentar a distinção necessária do ódio - enquanto promotor de superação das identificações primárias - e as consequências nefastas do ódio - enquanto suspensão do significante.

 

Esse destacamento do significante é a característica presente nas patologias sociais de um modo geral e, principalmente, no fanatismo religioso e no ajuizamento xenofóbico presente em nossa contemporaneidade.

 

Na clínica psicanalítica, o campo transferencial é, dentre outros aspectos, um conjunto de ações, concepções, próprio de cada analista em seu ofício de psicanalisar. Assim, a direção que tomará o tratamento dependerá exclusivamente do manejo que cada qual, à sua maneira, conduzirá sua clínica.

 

É o próprio Mendes quem afirma:

 

A nomeação "Clínica do Psicanalista" procura salientar que, na Psicanálise, a experiência se encontra na dependência do manejo do psicanalista, assim como do compromisso e responsabilidade que mantém com sua função; o que leva a situar aquele que conduz os tratamentos em função de um desejo e não de uma habilitação ou capacitação que se solidarizam com ideais de eficiência (p. 19).

 

Recorrendo à formulação freudiana sobre a transferência negativa, faz sua leitura e várias advertências aos psicanalistas quanto à negatividade e positividade do ódio na relação transferencial. É mais um convite à revisão do conceito de resistência - pois a eclosão do ódio na transferência não é apenas uma repetição dos aspectos infantis. A surdez do analista, neste particular, o impede de ouvir, na eclosão do ódio na transferência, o legítimo esforço de ultrapassagem exercido pelo analisando.

 

Desse ponto de vista: "dependendo do lugar a partir do qual o psicanalista maneja a transferência, o ódio vai poder ou não encontrar lugar numa análise, inviabilizando algumas delas no sentido dos limites da experiência" (p. 24).

 

O eixo estruturante deste livro, sua tese central, é o de que odiar não é o negativo do amor. O ódio tem seu estatuto próprio, sua geografia, seu nascedouro, seus limites.

 

Mendes vai além: apoiando-se nos fundamentos contidos em Freud, e sustentado pela robustez da leitura lacaniana, palmilha a gênese desta marca humana, sublinha seus percursos e percalços e retira desse conceito a ideia taciturna que sempre o recobriu e circunscreveu somente à categoria destrutiva.

 

Seguindo suas próprias recomendações quanto à clínica e à política que o analista deve exercer em seu ofício, Mauro cumpre, nessas reuniões proferidas, revisadas e transcritas, seu próprio ensinamento. Recomendo.


topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados