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Autor(es)
Fernando Urribarri
é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica (APA), na qual dirige o Seminário de Pesquisa André Green. Em 2005, codirigiu o Colleque International de Cérisy à obra de Green, cujas atas foram publicadas pela PUF. É fundador da revista Zona Erógena (Buenos Aires), e autor de Entretiens avex André Green. La psychanalyse chemin faisant (Ithaque).


Notas

336. A. Green, 1995.

337. Cf. teoria que Green formalizou em seguida, com a apresentação, em 1997, do texto: "Le langage au sein de la théorie de la representation", reproduzido in A. Green, Du signe au discours, p.?31-60.

338. Cf. "L'objetct est la fonction désobjectalisante" ("O objeto é a função desobjetalizante"), in Propedeutique, op. cit. p. 239.



Referências bibliográficas

Green A. (2011). Du signe au discours. Paris: Itaque. p. 31-60.

Green A. (1995). Propédeutique. La métapsychologie revisitée. Paris: Champ Vallon.




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 ENTREVISTA

André Green - A representação e o irrepresentável

rumo a uma metapsicologia da clínica contemporânea


André Green - Representation and the unrepresentable
Fernando Urribarri

Em 1996, a Universidade de Buenos Aires festejou seu 175o aniversário propondo, entre outras comemorações, um programa no qual foram convidadas grandes personalidades do pensamento contemporâneo. Nesse contexto, André Green, nomeado Professor Honorário da Universidade, fez uma conferência magistral, e ministrou um seminário internacional de pós-graduação. Encarregado da coordenação de suas aulas, tive então a ocasião de trabalhar e de conviver com ele durante esse período.

A visita coincidiu com a publicação da tradução para o espanhol de Propédeutique. La Métapsychologie revisitée (1995), livro que inaugurou uma nova coleção da Editorial Universitária de Buenos Aires, "Pensamento Contemporâneo", da qual eu era e ainda sou diretor. Depois de uma semana de trabalhos e passeios em Buenos Aires, Green e eu decidimos realizar uma entrevista com a intenção de expor em grandes linhas suas principais ideias metapsicológicas. Essa conversa foi publicada mais tarde pela Revista de Psicanálise da Associação Psicanalítica Argentina (vol. Internacional, n. 6, 1998). Apresentamos aqui a primeira parte desse longo diálogo, que selou o início de uma não menos longa amizade.

 

Os dois modelos freudianos:
a representação e o irrepresentável

 

FERNANDO URRIBARRI Minha impressão é que, em seus últimos trabalhos - por exemplo em Propédeutique. La Métapsychologie revisitée (1) -, o senhor foi se encaminhando para uma síntese metapsicológica importante. Nessa reelaboração, o senhor trabalha basicamente sobre a obra de Freud e recolhe dela dois modelos que se diferenciam principalmente pelo lugar atribuído à representação. Para começar, gostaria então que explicasse um pouco essa ideia.

ANDRÉ GREEN Digamos que sou alguém que de fato reivindica a riqueza e a força teórica do pensamento de Freud. Pois não creio que nenhuma das teorias que tentaram superá-la - a psicologia do ego, o kleinismo, o lacanismo - o tenham conseguido. No fundo, todas recaíram em algum tipo de reducionismo. Não que eu defenda um certo talmudismo ou um apego religioso à letra da obra de Freud. Pelo contrário. Penso que é preciso trabalhar sobre ela a partir do que a história do pensamento psicanalítico pós-freudiano nos trouxe e a partir dos desafios que a clínica contemporânea nos lança. Ao mesmo tempo, a própria obra de Freud é capaz de nos fornecer elementos para repensar as questões a que ele mesmo respondeu de modo equívoco ou insuficiente.

Como o senhor muito bem indica, afirmo, em linhas gerais, que é preciso considerar a existência de dois modelos na obra de Freud. É uma ideia que foi surgindo à medida que pensava na dificuldade de dar conta daquilo com que deparamos na clínica com pacientes não neuróticos: o problema da representação e do irrepresentável, ou seja, o problema dos limites e das falhas do trabalho de representação.

Na evolução do próprio Freud, podemos observar que há uma mudança. Ele passa de um primeiro modelo que opõe a neurose e a perversão, a outro que compara e relaciona a neurose e a psicose. Esquematicamente, pode-se fazer coincidir estes dois modelos com as duas tópicas.

O primeiro modelo é construído em torno do sonho como paradigma central do inconsciente. É um modelo que se revelou relativamente eficaz para a análise dos neuróticos. Do ponto de vista clínico, ele é formado pelo par: sonho/relato do sonho. Essencialmente, ele postula a compatibilidade do sonho com o relato do sonho: o sonho é fabricado de tal modo que seu relato nos dá acesso ao trabalho do sonho. Do ponto de vista metapsicológico, trata-se da teoria da representação esboçada por Freud já em 1900 e que será detalhada em 1915. Seu alicerce é a relação eficaz, conflitante mas estável, entre a representação de coisa e a representação de palavra. O sonho (representação de coisa) convertido em relato do sonho (representação de palavra) faz circular o sentido de um plano ao outro.

Ora, este modelo possui algumas características fundamentais nas quais nem sempre se repara, ou talvez não o suficiente, e que são decisivas para entender a mudança de modelo que Freud vai estabelecendo. Uma delas é que a pulsão está fora do aparelho psíquico, na fronteira com o soma (a pulsão, diz Freud, não é consciente, não é inconsciente, e é apreensível somente através de seus representantes). Uma outra característica é que se trata de um modelo centrado na consciência, como demonstram claramente as três instâncias da tópica : in-consciente, pré-consciente, consciente. A referência comum é a consciência. Além disso - e isto também é importante - em última instância, os sistemas são regidos pelo princípio de prazer.

 

FERNANDO URRIBARRI O que o senhor assinala é que os fracassos da clínica revelam a insuficiência desse modelo, na medida em que a pulsão de morte vem atacar esse sistema de compatibilidade que garante o trabalho de representação.

ANDRÉ GREEN Exatamente. E Freud se dá conta. Por isso, depois de um longo processo de pesquisa, concebe um novo modelo: o da segunda tópica e do segundo dualismo pulsional. Muitas vezes se pensa que ambas as tópicas são idênticas, com nomes diferentes - o que é não somente uma asneira, mas também é falso. O que mudou foi o próprio modelo de base. A partir daí, trata-se justamente de reconhecer e de pensar as diferenças, e de ordenar uma articulação entre ambas, coisa que Freud não foi capaz de fazer.

O aparelho da segunda tópica é muito mais heterogêneo que o da primeira: o trabalho de representação deve misturar elementos diversos, e se embrenha por caminhos menos garantidos. Em primeiro lugar, as pulsões passam a se localizar dentro do aparelho psíquico, no Isso - e, quando digo pulsões, entenda-se: pulsões de vida e pulsões de morte. Ora, a introdução das pulsões de morte faz evidenciar de modo radical o problema do irrepresentável, ou seja, o que excede toda forma de representação, atacando portanto o próprio processo de representação.

É preciso sublinhar esta diferença fundamental: na segunda tópica, as pulsões não estão nem fora nem no limite, mas sim dentro do aparelho psíquico. A representação perde seu lugar central, e são as moções pulsionais que assumem o protagonismo. O Isso substitui o inconsciente, que passa a ser uma simples qualidade psíquica. O Isso, afirma Freud, não tem representação nem conteúdo algum. O que é preciso entender deste movimento é que a representação perdeu sua sede. No primeiro modelo, a representação tinha seu lugar, sua existência garantidos. No máximo, Freud colocava o problema da sua localização em relação ao recalque (Verdrängung). No segundo modelo, a representação deixa de ser um dado fundamental, um elemento originário do psiquismo, e torna-se apenas um resultado possível. Sua probabilidade é mais do que incerta. Trata-se então de uma nova problemática: pulsão/descarga ou elaboração representativa. Este modelo procura dar conta do fracasso da palavra, da representação e da interpretação, frente à pulsão, à compulsão à repetição mortífera e à atuação (Agieren).

O irrepresentável constitui a referência essencial deste modelo, no qual a atuação ocupa o lugar paradigmático que o sonho tinha no modelo anterior. Por essa razão, Freud toma como referência a reação terapêutica negativa. A partir desta modificação, podemos constatar que o negativo mudou: já não se trata da neurose como negativo da perversão. Do trabalho do negativo como estruturante do aparelho psíquico no recalque, passa-se ao negativo da reação terapêutica negativa e da compulsão à repetição mortífera da pulsão de morte. Freud começará então a pensar a neurose em relação à psicose: o problema não é mais o recalque, mas a destruição do próprio pensamento.

 

FERNANDO URRIBARRI O senhor afirma que os impasses da clínica levam a conceber uma maior distância entre a pulsão e a linguagem, podendo conduzir ao fracasso da mediação representativa.

ANDRÉ GREEN Sim, justamente a partir da perspectiva de Freud - que compartilho - de que a linguagem não pode cobrir toda a atividade psíquica. Freud passou a vida lutando contra a ideia de psíquico = consciência. Seguindo Freud, rejeito a ideia de psíquico = linguagem. Talvez, por meio de várias acrobacias, a ideia lacaniana de um inconsciente "estruturado como uma linguagem" possa ser defendida no caso da primeira tópica. Mas jamais no caso da segunda. Na medida em que a noção de representação - toda representação! - desaparece com a nova noção de Isso e é substituída pelas moções pulsionais (que foram agora para dentro do aparelho psíquico), a linguagem é posta em xeque. E o que é postulado para o aparelho psíquico tem seu correlato na cura: é a própria cura, na medida em que se funda na linguagem, que é posta em xeque. Posta em xeque pelo irrepresentável, pelo que escapa à linguagem e faz transbordar o modelo cura/relato do sonho. A interpretação fica encurralada. Surge então uma outra problemática, a do objeto - uma problemática do objeto que não é mais obrigatoriamente aquela em que a relação possa corresponder à ordem da linguagem.

 

Rumo a uma teoria generalizada da representação

FERNANDO URRIBARRI Bem, mesmo se o senhor sublinha a grande importância da pulsão de morte e do problema do irrepresentável, sua proposta é a de salvar a teoria da representação. Mais ainda, o senhor escreveu algo que poderá parecer uma novidade para muitos dos que o veem como o homem do afeto: na sua opinião, o principal componente de uma teoria do psiquismo seria uma teoria da representação. Assim sendo, há pouco tempo, o senhor propôs uma "Teoria generalizada da representação."(2)

ANDRÉ GREEN É verdade. Penso que a teoria da representação - que está implícita em Freud e que procurei reelaborar - é absolutamente fundamental. Para entender a ideia que propus recentemente, de uma teoria generalizada da representação, é preciso lembrar que surgiu dessa extensão do campo da representação que fui praticando ao longo de minha obra. Até o afeto, já que o senhor o mencionou, deve ser considerado como representante-afeto. No fundo, a representação é quase sinônimo de psiquismo. A representação, a meu ver, não se reduz ao plano do sentido. Ela também faz parte do plano de força. Isto é justamente o que a diferencia da representação filosófica ou do significante linguístico.

Nesta ampliação do campo da representação que esteia a minha teoria, o que proponho é considerar as diversas relações da psique: com o corpo, com o outro semelhante e com o mundo. O essencial é que, a partir de cada uma destas relações, a psique, por trabalhar com materiais diferentes, vai produzir diferentes tipos de representações. É este trabalho com materiais heterogêneos que define o funcionamento psíquico. Consequentemente, a heterogeneidade é a chave desta reelaboração, em que a noção de limite vem carregada de um valor: o de território de passagem, isto é, de transformação.

 

FERNANDO URRIBARRI A noção de heterogeneidade constitui um dos pilares de seu pensamento, certo?

ANDRÉ GREEN Sim. Mas mais do que uma noção, trata-se, se me permite dizê-lo assim, de uma lógica da heterogeneidade. Na verdade, a heterogeneidade das representações ou do significante (que, como tal, não é senão o suporte de um sentido) é tamanha, que não há sistema homogêneo passível de ser aplicado a todas as dimensões psíquicas em jogo. De meu ponto de vista, a riqueza da psicanálise provém dessa heterogeneidade, dessa diversidade dos significantes que se manifesta na pulsão, nas representações de coisa e de palavra, no pensamento, etc. Pois é disso que somos feitos: das interações, dos conflitos (que constituem uma outra dimensão essencial e complementar) entre os mais diversos registros, a partir do que tentamos depreender algum sentido - sentido que resulta justamente dessa confrontação e da transformação de um dado psíquico (ou seja, de uma representação) ao passar de um registro psíquico a outro. Pois cada vez que se passa de um sistema a outro, a representação, ao mesmo tempo, perde e ganha algo: não há processo acumulativo linear. O processo de transformação, de transposição ou de transferência é descontínuo. É por isso que proponho esta lógica da heterogeneidade, em que a diversidade da representação dá lugar ao conflito e à transformação. Parece-me que ela permite uma definição do funcionamento psíquico mais complexa e consistente que, por exemplo, a do significante ou a da lógica paradoxal de Winnicott.

Retomando, pois, a teoria da representação generalizada, o que ela procura, em última instância, é explicar enorme heterogeneidade que caracteriza a psique, por sua relação com o que está fora dela. O que quero dizer com isso? É simples. A partir da relação com o corpo, surge a pulsão e seu representante psíquico (Triebrepräsentanz), que não se deve confundir com o representante-representativo (Vorstellungsrepräsentanz). Da relação com o mundo, do ponto de vista intrapsíquico essencial da busca de satisfação e de prazer, surge a representação de coisa ou de objeto. Da relação com o outro semelhante, enquanto ser falante, surge a representação de palavra. Há que se acrescentar, enfim, as representações da realidade, esses "juízos que no Eu representam a realidade", como diz Freud.

Daí uma distinção importante que podemos atribuir a Freud, embora ele nunca a tenha esclarecido. A pulsão, tal como ele a descreve, representa as exigências que são impostas à psique por sua relação com o corpo. Ela mesma já é então um representante, uma delegação da força que se faz presente no psiquismo. Esta delegação é o representante psíquico da pulsão (Triebrepräsentanz). E, ao mesmo tempo que é um representante, a pulsão tem também seus representantes: o representante-representativo (Vorstellungsrepräsentanz) e o afeto.

 

FERNANDO URRIBARRI Resumindo: o senhor define o representante psíquico da pulsão como expressão de uma excitação somática que advém ao psiquismo e se manifesta como pura tensão psíquica. Ou seja, como um representante que não é uma representação. Poder-se-ia dizer que, deste modo, o senhor concede um lugar ao irrepresentável na sua teoria da representação? E isso explicaria então a necessidade de se reconhecer o valor do segundo modelo freudiano, que exige ir mais além da noção de inconsciente a fim de incluir o Isso? É possível - e como - esta articulação?

ANDRÉ GREENSó se pode verdadeiramente colocar a questão do irrepresentável dentro do contexto de uma teoria da representação. Ou seja, para nós, psicanalistas, a partir de uma perspectiva metapsicológica. Trata-se de ultrapassar, literalmente, a consciência. O irrepresentável não é aquilo que o sujeito não tem na consciência em um dado momento. Não é o que não se consegue ou não se sabe como dizer na sessão. Tampouco trata-se de representações que, por estarem ligadas a uma fantasia inconsciente, teriam sido recalcadas. Pelo contrário: é algo que não consegue se ligar. O irrepresentável, então, remete à questão da representação, da mesma forma que a pulsão, à questão da ligação e do desligamento.

Por outro lado, é certo que a questão do irrepresentável obriga a reconsiderar nossa compreensão do inconsciente. Se, por um lado, a noção de inconsciente continua sendo fundamental para mim, por outro, penso que deva ser articulada com aquilo que está além dela: a pulsão de morte.

Quanto à passagem para a noção de Isso, proposta por Freud na segunda tópica, a articulação me parece possível, entre outras razões, na medida em que o Isso - como moções pulsionais representantes do corpo mas não representativas - corresponde ao representante psíquico da pulsão da primeira tópica.

De qualquer forma, a questão da articulação entre estes modelos é mais complexa. Se retomarmos o fio de minha teoria da representação, veremos que ela inclui ainda algo mais fundamental: a conceitualização da representação de coisa ou de objeto, de seu lugar no psiquismo. A representação de coisa funciona - ou melhor dizendo, pode funcionar - como uma encruzilhada, uma ponte, o elo por meio do qual trabalha a simbolização.

Do ponto de vista de sua constituição, a representação de coisa é o rastro mnêmico deixado por uma experiência de satisfação, na qual o objeto que trouxe satisfação recebeu sua inscrição. O objeto encontra assim sua inscrição, sua representação no psiquismo - mesmo quando, obviamente, não é reconhecido como tal. O desejo inconsciente é justamente o movimento pelo qual, ante a ausência do objeto, o representante da pulsão investe - literalmente monopoliza, ocupa - a representação de coisa, que se torna assim representação-meta da busca de satisfação. Isto quer dizer que a representação de coisa vai permitir uma ligação à pulsão.

No primeiro modelo freudiano, este processo se completava após o recalque originário, com a aparição das representações de palavra e das representações de coisa conscientes. Apesar de não ser possível contentar-se com este esquema, que deve ser ampliado, para mim continua sendo essencial o duplo caráter da representação de coisa: sua possibilidade de se articular, ao mesmo tempo, com a pulsão e com a linguagem.

Logo, o valor da representação de coisa decorre do seguinte: o representante psíquico da pulsão é o primeiro esboço de sujeito, mas isto não basta - é preciso que o processo de cooptação da representação de coisa pelo representante psíquico constitua essa matriz de simbolização, que é o inconsciente. Pois se algo diferencia o inconsciente do Isso é esta passagem possibilitada pelas representações de coisa, pela qual o inconsciente se torna o defensor dos investimentos e capaz de transformações. Graças à representação de coisa o representante psíquico se liga, entra na cadeia da simbolização. A representação de coisa opera ligando, transformando, limitando e dando figuração à energia pulsional.

 

FERNANDO URRIBARRI Se estou entendendo bem, o que o senhor coloca é que a representação de coisa tem um duplo valor: o primeiro, por ligar a tensão do representante da pulsão, abrindo caminho ao trabalho psíquico de representação, de simbolização; o segundo, porque as representações de coisa inconsciente e consciente podem estabelecer a ponte que vai da pulsão à palavra.

ANDRÉ GREEN Sim, no melhor dos casos é assim. Porque o que é que observamos no que se costuma chamar de casos difíceis? Vemos que há falhas na simbolização, como se as representações não pudessem ligar a força das pulsões, que inclusive podem acabar por se expressar como passagens ao ato ou somatizações. É neste ponto que nos vemos confrontados com algo que não ocorre na neurose, ou seja, a representação de coisa inconsciente pode ser atacada e mesmo abandonada pelas pulsões devido a uma insuficiência do trabalho psíquico. Temos então que considerá-la com a força destrutiva das pulsões de morte, com seus ataques contra a representância e com suas descargas diretamente no real.

Podemos, então, perceber não apenas como a articulação entre a teoria da representação e o segundo dualismo pulsional é possível, mas também como nele a representação de coisa tem um papel privilegiado. Tomemos um outro exemplo: como entender a reação terapêutica negativa, ou a repetição mortífera, que transborda o princípio de prazer? Propus uma hipótese que é a seguinte: o sistema de traços mnêmicos constituído pelas representações de coisa não pode trabalhar, nem é trabalhável. Observamos que é como se a rede de traços não pudesse ser reinvestida pela memória porque em lugar dos traços houvesse um esgarçamento do tecido psíquico. Assim, todo reinvestimento conduz à dor. E para evitá-la se constitui então um limite, que é a compulsão à repetição. Repetição que excede o princípio de prazer, pois repete o desligamento, a não representação, a expulsão para fora do psiquismo.

 

Sujeito, pulsão
e função objetalizante

FERNANDO URRIBARRI O senhor acaba de falar do sujeito. Gostaria de perguntar sobre sua noção de sujeito. O senhor escreveu que "a pulsão é a matriz do sujeito"(3). Poderia comentar um pouco essa ideia?

ANDRÉ GREEN Para mim, a noção de sujeito tem uma grande importância. Em primeiro lugar, porque a única psicanálise que existe é a do sujeito - fato que as teorias modernas parecem esquecer. Ora, a originalidade da concepção freudiana sobre a subjetividade consiste em descobrir que o que permite dizer eu é justamente a pulsão. É a isto que me refiro quando escrevo que "a pulsão é a matriz do sujeito".

A meu ver, assim como temos uma "linhagem objetal", ou seja, diversas concepções do objeto que remetem, na realidade, a coisas diferentes (objeto primário, objeto fantasmático, objeto narcísico, objeto interno, etc.), temos também uma "linhagem subjetal". Pois não é por acaso que certas pessoas preferem falar de "Moi" (Ego) como Anzieu, outros de "sujeito", ou empregam, como Piera Aulagnier, o "Je" (Eu). Minha tese é que o referente comum a todos esses termos "subjetais" é a pulsão, a pulsão em sua atividade de ligação e desligamento.

Por outro lado, o senhor me pergunta sobre o lugar que dou à pulsão, pois sabe que se trata de um conceito essencial para mim. Penso que, apesar dos ataques que ele sofre atualmente, existem vários motivos de peso para revalorizar este conceito. O conceito de pulsão procura dar conta de uma questão fundamental no pensamento de todo analista: a questão do chão que dá origem à psique.

Se nos colocamos em uma posição metapsicológica, entendemos que Freud inventa o conceito de pulsão para dar conta da noção de força psíquica, da dimensão disto que se coloca à psique como exigência de trabalho por sua relação com o corpo, e que depois (em um devir do qual não é alheio nem ao objeto, nem ao advir das representações) poderá ser chamado de desejo; é o que nos dá a dimensão da intencionalidade, e também da capacidade de transformação. Ou seja, na psicanálise, é a pulsão que ocupa o lugar da causalidade. Não há causalidade psíquica - não há nenhum fenômeno psíquico - que não remeta à pulsão.

É claro que outras teorias existem, como a de Laplanche. Mas podemos dizer que, hoje, duas perspectivas se opõem, basicamente. Uma dá grande importância à estruturação intrapsíquica. A outra concebe diretamente esta estruturação intrapsíquica como resultado exclusivo da relação intersubjetiva. Não faço parte desta última, pois para mim a intersubjetividade pura não existe. A meu ver, cada um dos termos desta intersubjetividade remete ao intrapsíquico, a seus respectivos psiquismos. Trata-se então de uma relação entre dois intrapsíquicos mediados pela intersubjetividade.

 

FERNANDO URRIBARRI A referência às duas linhagens, objetais e subjetais, faz-nos lembrar outra das características de seu pensamento: a proposta de levar em conta a articulação da noção de pulsão com a de objeto, considerando-as como um par dialógico.

ANDRÉ GREEN De fato, penso que é preciso superar a antinomia entre a teoria da pulsão e a teoria das relações de objeto. Para mim, como o senhor mesmo mencionou, trata-se de sua articulação. Pois mesmo se postulamos a pulsão como um dado psíquico originário, como matriz do sujeito, este só se desenvolve em relação com o objeto. É nesse sentido que propus considerar o objeto como revelador da pulsão.

Evidentemente, o objeto só o é na medida em que nos referimos ao sujeito, à pulsão, e, depois, ao Eu. Mas ele não é uma coisa meramente externa que virá se adicionar mais tarde. O objeto tem, desde o começo, uma dupla função. Por um lado, sua função é a de estimular a vitalidade do sujeito, de estimular e ser o revelador da pulsão; por outro, é a de promover a simbolização, a representação, ao estabelecer adequadamente os cuidados, os ritmos entre ausência e presença - isto é, ao tornar tolerável a excitação, discriminando-a. Esta demora na satisfação só é tolerável se o sujeito puder contar com outra cena, a inconsciente, em que possa reencontrar, ou melhor dizendo, reinvestir os traços do objeto, sua representação. Uma tal possibilidade existe para o sujeito, na medida em que o objeto o ajudou a criar essa internalização, criadora do que denomino de "estrutura enquadrante", ou seja, que constitui o espaço que dá lugar à representação. Em outras palavras, retomando a minha teoria da representação, proponho justamente a ideia de que a representação, para que possa se estabelecer, necessita do objeto. De acordo com o que chamei de "segundo modelo freudiano", sabemos que a representação não é um dado primeiro, mas sim um resultado possível do trabalho psíquico. E é neste trabalho que o objeto é essencial.


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