EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
O negativo e sua constituição são contemplados no pensamento de André Green, assim como os impasses e falhas na sua construção. Esses acarretam vários modos e diferentes graus do negativismo (segundo afirma Freud em 1925) ou algo que se pode denominar como o negativo do negativo. Além de circunscrevê-las na obra de Green, duas vinhetas clínicas são trazidas como ilustração.


Palavras-chave
alucinação negativa; duplo-limite; negativo; tempo.


Autor(es)
Daniel Delouya
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do do Instituto Sedes Sapientiae e da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Professor no programa de pós-graduação em psicologia na Universidade São Marcos em São Paulo. Autor de Torções na razão freudiana. Especificidades e afinidades, Unimarco, São Paulo, 2005, entre outros livros e artigos em revistas especializadas.


Notas

[1]   A. Green (1998), "Sur la discrimination et indiscrimination affect-representation", p.?213.

[2]   Citado em A. Green (1993), "Le travail du négatif", p.123 e em W. Shakespeare (1996), Macbeth, Act I, Sec.,3, p.860.

[3]   Um conceito desenvolvido entre 1976 e 1982 e se encontra no livro de 1990, La folie privée.

[4]   A. Green (1990), La folie privée.

[5]   S. Freud (1920), "Além do princípio do prazer".

[6]   A. Green, A (1966/7) no livro de 1982, Narcisismo de vida, narcisismo de morte.

 [7]   In Freud, Projeto de uma psicologia, de 1895, cap. 11 da I parte.

 [8]   Op. cit.

 [9]   Originalmente descrita por Breuer na conduta de Anna. O.

 [10]  Cf. A. Green (1973), L'enfant de Ça.

 [11]  Cf. A. Green (1989), "Da terciedade", in La pensée clinique.

 [12]  D. W. Winnicott (1971), Playing and reality.

 [13]  W. R. Bion (1970) empresta esta noção do romântico poeta J. Keats, que define tal capacidade como uma qualidade que forma as personalidades de êxito, por serem capazes de tolerar (estar no estado de) incertezas, mistérios e dúvidas sem se irritar e recorrer a fatos e razões para se defender dos mesmos.

 [14]  A. Green (1980) in Narcisismo de vida, narcisismo de morte.

 [15]  A. Green (1993a), "A analidade primária", in La pensée clinique.

 [16]  A. Green (2000), "A posição fóbica central", in La pensée clinique.

 [17]  A. Green (2000a), "Le cadre psychanalytique: son interiorization chez l'analyst et son application dans la pratique", in L'avenir d'une désillusion.

[18]  "Representantes da representação da pulsão" (cf. Freud, 1915, "O inconsciente"), ou seja, frutos do trabalho do objeto.

[19]  A reivindicação pela ternura infantil neste paciente não pode se valer de experiências significativas com os objetos primários. Os vestígios destes são tão escassos que se desenlaçam e se dissolvem em desamparo, e em uma alienação que desemboca em um desespero para recorrer ao socorro via voracidade indiscriminada. Por exemplo, uma despedida de uma namorada no aeroporto é insuportável a ponto de, logo, minutos depois, dar vez a uma caça ansiosa por um envolvimento sexual. É nessa diferença, da perda da singularidade, que Freud em 1924 situa o retorno do masoquismo moral para o desamparo de origem e suas vias de busca de compensação voraz e atuada.

[20]  Ver O Projeto... de 1895 e o artigo "A negativa" de 1925.



Referências bibliográficas

Bion W. R. (1970/2004). Attention and interpretation. Jason Aronson Book.

Breuer J.; Freud S. (1895/1974). Studies on hysteria. In: Pelican Freud Library (vol. 3). London: Cox and Wyman.

Freud S. (1915/1991a). The unconscious. In: PFL, vol. 11, p.159-222.

_____. (1920/1991b). Beyond the pleasure principle. In: PFL, vol. 11, p.?269-338.

_____. (1924/1991c). The economic problem of masochism. In: PFL, vol. 11, p.?409-427.

_____. (1923/1991d). The ego and the id. In: PFL, vol. 11, p.?339-408.

_____. (1925/1991e). Negation. In: PFL, vol. 11, p.?435-442.

_____. (1895/1995). Projeto de uma psicologia. Trad. O. F. Gabbi Jr. Rio de Janeiro: Imago.

Green A. (1967/1988). Narcisismo primário: estrutura ou estado. In: Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta.

Green A.; Donnet J. L. (1973). L'enfant de ça. Paris: Minuit.

Green A. (1980/1988). A mãe morta. In: Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta.

_____. (1989/2002). Da terciedade. In: La pensée clinique. Paris: Odile Jacob.

_____. (1990). La folie privée. Paris: Gallimard.

_____. (1993). Le travail du négatif. Paris: Minuit.

_____. (1993a/2002). A analidade primária. In: La pensée clinique. Paris: Ed. Odile Jacob.

_____. (1998/2002). Sur la discrimination et indiscrimination affect-representation. In: La pensée clinique. Paris: Ed. Odile Jacob.

_____. (2000/2002). A posição fóbica central. In: La pensée clinique. Paris: Ed. Odile Jacob

_____. (2000a). Le cadre psychanalytique: son interiorization chez l´analyst et son application dans la pratique. In: Green & Kernberg (ed.,), L'avenir d'une désillusion. Paris: PUF.

Shakespeare W. (1564-1616/1996). The complete works of William Shakespeare. Wordsworth Editions.

Winnicott, D. W. (1971). Playing and reality. Harmondsworth: Penguin Books.





Abstract
The work of André Green gives full attention to the negative: its constitution, its dead ends, its failures. The latter are at the root of several degrees and modes of negativism (according to Freud’s paper “On negation”, 1925). This is what Green names “the negative of the negative”. The present paper focuses on this part of his work, and illustrates it with two clinical vignettes.


Keywords
negative; hallucination; double limit; time.

voltar à primeira página
 TEXTO

O negativo, sua construção e sua origem

The negative, its construction and its origin
Daniel Delouya

Ao definir o psiquismo como "efeito da relação entre dois corpos, um dos quais está ausente", Green[1] carimba de próprio punho o selo da psicanálise que matiza a vida psíquica em relação à falta. E ele o faz com o aval de Shakespeare que constata And nothing is, but what is not - e nada é a não ser o não (o negado)[2]. A ausência, porém, se coloca em evidência pela relação simbólica. O simbólico constitui o meio pelo qual o que é negado - recalcado, memória, experiência - se presta ao trabalho da percepção, da presença, do encontro, ou seja, à atividade psíquica em face à realidade. Assim, o sintoma é, para Freud, o símbolo do mnêmico, do trauma; e a neurose, o negativo da perversão. Este é o trabalho do negativo, do psíquico, no qual prefiro destacar o trabalho do tempo: do sonho, do luto, do pensar, do julgar e do crescimento; e com seus variados produtos culturais: os outros, os sintomas, a vida, o amor, a arte.

 

O negativo desse negativo seria a perda parcial ou quase total do tempo: uma desesperança pelo gozo, levando à atuação perversa, drogadita, psicopática, melancólica, e psicossomática; assim como na exasperada busca de salvação junto aos fetiches, aos bezerros de ouro de religiões, da política e das terapias. Negativar o negativo significa a destruição da falta, a destruição da vida psíquica.

 

Até aqui Green não é tão crucial, mas ele passa a sê-lo pela perícia que efetuou na busca dos eixos e dos elementos de construção do negativo. O negativo, o psíquico, precisa ser construído! Com sua junta médica de Ferenczi, Bion, Winnicott e Lacan, entre outros assistentes, Green se vale da clínica para encontrar em Freud uma construção do negativo entre a pulsão e o trabalho do objeto. Aqui, a grande variável está no objeto, no trabalho do objeto!

 

O negativo, como vimos, pressupõe a circunscrição do sujeito em relação ao outro, ao mundo, mas isso só é possível ao se assegurar de posses próprias, de seu recalcado, ou seja, onde se delimita nele uma reserva ou dispensa própria. Essa dupla circunscrição, entre o eu e o outro, e entre o eu e o seu inconsciente, caracteriza o duplo limite[3], fruto de duas negativas entrelaçadas.

 

A vida, dizia Freud, é o ruído oriundo dos estímulos do, no e sobre o corpo e, portanto, do contato, da dor, que pede alívio, descarga. Isso que Green enxerga como moção primária de ex-corporação[4]. Porém, existe na vida uma tendência que constitui o interno[5], agindo em silêncio, e numa direção contrária: não de descarga, mas de fuga, retraimento. Entre esses vetores, centrífugo e centrípeto, Freud postula, em 1924, uma potencialidade masoquista erógena. O que isso significa? O adulto, em sintonia com tal polaridade, contém e seduz, fixa e convida, ao servir de tela, estrutura enquadrante[6] pela e sobre a qual se tricotam ligações e trilhas para constituir referências para o eventual nascimento do corpo psíquico. Segundo Green, o objeto revela a pulsão, a traz para o palco da vida! Ao reconhecer no bebê um futuro parceiro, o adulto acolhe, denomina os seus movimentos oriundos das moções e dos anseios do corpo, e com isso o convida (seduz), por assim dizer, para adentrar a cultura. O adulto fixa os movimentos, interpreta-os, e deles faz derivar pulsões, delegados do corpo ante o mundo humano; os movimentos se imprimem na psique como "imagens de movimento" e "notícias de si"[7], precipitando-se através da área de contato entre os corpos, sobre o manto psíquico da criança, sua futura alma. Assim, o adulto constitui para elas um lugar, um espaço. [Tal revelação implica que, em meio à ajuda alheia do adulto (Freud)[8]- nebenmenche, vizinho, estrangeiro - ele se torna, para o bebê, uma fonte de enigmas; impõe-lhe um esforço de tradução (Laplanche), expresso na modulação contínua dos movimentos, criando e revelando-os]. Ao mesmo tempo, para tudo o que exige, devido à dor, se ex-corporar (a se desligar e se descarregar), o adulto proporciona um endereço, circunscreve um terreno fora vis a vis o corpo, e tece, com isso, imaginariamente, canais (de "esgoto"), levando o excesso para fora. Assim se constitui o duplo limite, com dispensa dentro, e a delimitação de um fora, e as vias até este. Com a progressão dessa empreitada criam-se condições para o "bota-fora", onde as respectivas forças de reunião e expulsão no trabalho do objeto culminam, em seu feito, na separação, na diferenciação do sujeito em relação ao objeto; desembocam em botar o objeto fora, ou fazem o corpo psíquico se botar fora de seu objeto, o que Green reidentifica como alucinação negativa[9]. Tudo depende deste ato de apagar o objeto, pois tudo o que se reuniu sobre a tela e sob o cuidado enquadrante do objeto pode agora se destacar dele - negativando-o alucinadamente - e configurar-se como pano de fundo próprio; um lugar, vazio, receptivo a futuros investimentos de objetos com os quais o sujeito vai poder brincar, gerando cenas sobre um palco próprio.

 

O que toda essa empreitada implica? O psiquismo do adulto. Se o negativo é mal constituído no próprio adulto, ele não tem como se identificar com o novo ser, não o enxergará como tal, portanto não poderá validar os seus movimentos, mas os perturbará, os invadirá, em prol de um consolo das próprias (do adulto) carências, narcísicas e perversas. Desse modo, também não vai poder aliviar o bebê dos excessos dos estímulos, da dor e de suas intoleráveis cargas: não o poupará do mal e não o protegerá. O que será vivido/ sentido como desprezo, indiferença, abandono.

 

Estes distúrbios por parte do objeto não se limitam apenas a essas figurações espaciais (invasão e abandono), mas têm um corolário na escansão temporal: se diante das urgências do bebê haverá a resposta rápida, invasiva, sem intervalo - devido ao ímpeto maníaco e fusional do adulto -, freia-se a criatividade e o desenvolvimento dos movimentos, estimulando a onipotência do sujeito, como ela se manifesta na drogadição que eclode pós-latência. Aqui, a falta da falta (Lacan) revela seus gritantes danos. Por outro lado, se houver demora na resposta do adulto para além do tolerável, perde-se uma grande parte do que constitui a confiança, a esperança. Ultrapassar esta resiliência, da espera, esgarça o tecido psíquico e os seus elos trançados pelos fios do binômio pulsional. Isso pode resultar nas afecções-limites, de desesperança congênita (Winnicott), entre as quais as esquizoidias, as psicoses e depressões brancas[10], além de poder promover esforços de remenda do desenlace pulsional através das atuações perversas e, outras, masoquistas, que se encontram, amplamente, na clínica contemporânea.

 

A moção negativa que caminha silenciosa, no decorrer do trabalho do objeto, para uma alucinação negativa, isto é, para a separação do objeto, para poder descobri-lo fora, e se descobrir num mundo compartilhado, num mundo terceiro[11], denunciará aqui essas patologias, ou seja, as falhas do trabalho do objeto. Winnicott e Bion já os haviam explicitado; o primeiro em relação aos impasses no alcance da "possessão não eu" e, em consequência disso, do "uso de objeto"[12]; o segundo, no colapso da "capacidade negativa"[13]. Green tem descrito várias manifestações do fracasso do negativo. Os fortes testemunhos deste encontram-se na "mãe morta"[14], na "analidade primária"[15] e na "posição fóbica central"[16]. Em linhas gerais, no primeiro trabalho, a retirada abrupta do objeto, de sua função enquadrante - por exemplo, em consequência de um luto agudo na mãe - equivale a sua morte repentina, deixando o bebê à sorte da ferrenha luta em seguir, sem ajuda, na costura das moções contrárias das pulsões. Uma violência que ameaça o desfazimento do tecido psíquico em suas várias regiões. No segundo, a impermeabilidade de defesa narcísica dos próprios pensamentos assemelha-se à demarcação de território nos animais através do resguardo dos valorizados produtos fecais e urinários. A armação em volta de um universo mínimo se deve à intrusão ameaçadora a qual foi suscetível precocemente o ambiente de origem. No terceiro, há subversão no uso das vias associativas. Em vez de aproveitá-las para o encontro, na experiência e no pensar - o que Freud designa como função de juízo -, essas vias associativas do tecido psíquico são rastreadas para encontrar caminhos de fuga. Uma estratégia de evitação, de fuga se instala para se poupar do reencontro dos focos traumáticos gerados junto a objetos significativos da infância.

 

Tais configurações clínicas atestam falhas na estrutura enquadrante do objeto, flagrando-se como tais em consequência da alucinação negativa, para a separação do objeto. Por isso, a função analítica implica a restauração dessa estrutura enquadrante, o que coloca o enquadre analítico em outra perspectiva: como algo interior[17] no analista, e desafiado continuamente pela transferência.

 

A seguir, trago duas vinhetas de pacientes com configurações diversas e que ilustram os fracassos do negativo:

 

Um jovem é acometido de um acidente cardíaco durante uma viagem a trabalho, quando a esposa perpassava o final da gravidez da segunda filha do casal. Após o susto, o médico recomenda a psicoterapia. Ele aceita na condição da presença da esposa. Nas entrevistas é a esposa que fala e fico sabendo que, quando ele contava com dois anos, sua mãe perdeu um feto menina nos últimos meses de gestação. [Que o soma possa imitar um episódio cardíaco fatal no feto-irmã, talvez seja o nexo possível com o acidente na véspera de nascimento de sua segunda filha.] Ele cresceu como filho único sob o mando rígido e estreito da mãe (que se agrava ao visar, inconscientemente, garantias absolutas de vida ao filho, projetando nele, em face à perda da menina, uma idealizada completeza). Rigidez ao qual a esposa atribui uma revolta enquistada nele, de outrora, que vez e outra salta para fora em forma de acessos de ira. Explosões ocasionais, mas que persistem, pondo a continuação do casamento em perigo, porque apavoram a esposa pela transfiguração da pessoa introvertida do marido e de sua costumeira companhia dócil e complacente. Após um ano, a esposa, porta-voz do casal, se retira dos encontros e ele permanece vindo duas vezes por semana. A cena muda de figura: ele fala e só ele. É só ele que pode existir bloqueando - imagino - uma reincidência de invasões. Predomina, então, o pensamento operativo, e, ao mesmo tempo, onipotente, de arrogância onipresente e onisciente. Nenhuma possibilidade de interrompê-lo ou de ele me ouvir. Assim permanece durante anos, em uma armação betonada por detrás da qual o medo - advindo da ameaça sobre sua posição no trabalho ou em reação às teimosias de sua filha primogênita - acaba sofrendo uma reversão: transforma-se em maquinação onisciente acerca do conjunto da empresa, e de outro, na busca de princípios rígidos de conduta a impor à filha, reeditando, com este, as de sua mãe da infância. Na terapia, era preciso que eu sobrevivesse, não reagindo a tamanha avalanche, e que essa só se amansasse pelas ameaças de rompimento após as explosões em casa ou no trabalho. Após quase nove anos, ele gera, pela primeira vez, um sonho, e de angústia. Nele, ele vinha à sessão para encontrar, em seu lugar e horário, um colega de trabalho, que na sessão anterior eu apontara como pondo em risco a posição que ele almejava conquistar. Sonho que constitui um marco de mudança que se instala, abrindo um espaço ao vislumbre da área terceira, de "eu e você". Já se passaram doze anos, e, de fato, o convívio denota a diminuição considerável da defesa onipotente inicial.

 

Nesse paciente a tentativa de nascer - de colocar-se fora do objeto, alucinando-o negativamente - fracassa em função da intrusão do objeto. A expressão somática na tentativa de se separar do objeto denuncia a inaptidão do objeto originário em reconhecer o bebê e, portanto, em poder seduzi-lo, e derivar de seu soma pulsões, seus representantes, verdadeiros delegados (vorstellungtriebrepresentaz)[18] para sua inserção na cultura. A demanda narcísica torna-se evidente, na onipotência e na onisciência, com uma lógica inicial "ou eu ou você", ilusão narcísica do eu-ideal que o adulto deve celebrar em pequenas crianças para lhes transmitir, "sim, é você, só você" para que, em seguida, se dê a passagem para a área terceira "eu e você". Suportar e permitir esse difícil processo, caminho, no campo da transferência significa reeditar e, de alguma forma, corrigir as funções da estrutura enquadrante do objeto de origem.

 

A fragilidade em sustentar o negativo, o recalcado, encontra outra modalidade em outro paciente que passo a descrever. Nesse caso, o não reconhecimento pelo objeto como futuro sujeito se deve não à intrusão, como acima, mas a partir de certa indiferença.

 

Neste paciente a ação - incluindo a adicção a drogas e ao sexo - visa dominar e afagar francos ou iminentes mal-estares. Executivo de notáveis habilidades, ele vem esbarrando, de tempos em tempos, desde sua adolescência, com estados agudos de depressão que o levavam, de início, a planos e execuções suicidas. Itinerante, tem estudado e trabalhado em vários países de diferentes continentes. Sua filosofia de vida se resume em nada se prender (casamento, filhos, país) e tudo aproveitar. Sente-se incapaz de manter a moderação seja no número de relações sexuais, modalidades e pares, seja no consumo de drogas entre outras fugas de prazer como comida, bebida e esportes; além de, continuamente, expor-se a riscos, físicos e outros. Quanto ao nosso trabalho, iniciado há quase três anos, ele conduz nossos encontros pela fala ininterrupta sobre si, racionalizando posições ao recrutar conhecimentos gerais que vem acumulando de diversas áreas, mas com utilidade questionável. O silêncio lhe é intolerável, e, no início, qualquer intervenção de minha parte parece incomodá-lo, atropela-o. Só recentemente, ele consegue vez e outra registrar algo que eu digo, sobretudo quanto aos seus sonhos. Curiosamente, acabei submetendo-me às suas imposições de frequência das sessões, seus valores e a forma de pagamento: ele determinou e eu aceitei! No final de cada encontro, marca sua próxima sessão após verificar a minha disponibilidade, e paga de acordo. Aos poucos, o temor da depressão, de um lado, e sua voracidade atuada, de outro, vão se ligando ao mesmo movimento de domínio que remonta a uma vivência de infância que ele atribui às consequências do infeliz casamento e separação dos pais. A situação à qual ele se reporta, com frequência, é da mãe nunca ter tido tempo para ele - ou passando o maior tempo no trabalho ou, na volta, fixando-se na tela da televisão. Sozinho, desde pequeno, tentava ocupar-se - dominar - lendo tudo que aparecia a sua frente, desde a bula de remédio até os livros de ciência e de literatura e ensaiando experimentos com qualquer objeto disponível. A ocupação de então, de uma criança hiperativa, persiste no modus vivendi de seu cotidiano e na relação estabelecida com a realidade (a análise inclusa), mesmo depois de completar seus 40 anos de idade. "Viver para mim é como estar diante de uma enorme check-list, tanto no trabalho (workaholic como minha mãe), como nos prazeres (bon-vivant como meu pai)". É ele, não eu, quem liga o estado da solidão da criança com uma suplantação voraz e atuada. Na sua incessante autoavaliação, além da insaciabilidade, ele atribui a sua incansável entrega às tarefas, e a generosa recepção dos amigos, à inquieta busca de admiração - aqui, a palavra amor surge em mim, nunca em seu discurso (nas sessões, a docilidade nunca falta à exibição de menino prodígio e refinado). Espanta-o descobrir-se, nas suas palavras, um ser "egocentrado". A essas genéricas notas, eis uma particular: ele se indaga por que diante de notícias chocantes, como o abuso de meninas pelo pai, tio ou padrasto (como o pai austríaco que engravidou a filha e a confinou), ele fica indignado - e prestes a chorar, mas as lágrimas nunca surgem a não ser pelo nó na garganta - e, de outro lado, excita-se, identificando-se com o adulto na cena de abuso.

 

Não podendo ficar só (falha do negativo) do qual o estado de agonia da infância é seu protótipo, atesta a fragilidade de sua fiação psíquica, montada junto ao objeto pela via do masoquismo erógeno. O acarretado afrouxamento no enlace pulsional prenuncia o desamparo. Um mal-estar que a hiperatividade - desesperada busca de religação - tenta aquietar, para alcançar a passividade, o masoquismo feminino (figurado no atentado a frágeis meninas), em vista da restauração da terna atenção infantil, e assim, acordando o roteiro de subjetivação via o universo incestuoso. Reanimação na qual Freud ressalta a incitação do masoquismo onde desperta a culpa inconsciente. Culpa-se pela intolerância à árdua solidão da vida adulta, o que faz clamar pelo alívio, gozo, redenção e salvação infantil de outrora. O trabalho de negativo aqui implica a recorrência aos modos sensoriais de aquisição da ternura, em função do seu saldo deficitário nos confins do eu - herança da falha na estruturação enquadrante proporcionada pela mãe da infância[19].

 

Acredito que essas vinhetas ilustram os impasses na instauração do negativo, deste pano de fundo que possibilita o juízo[20]. A invasão, de um lado, e a indiferença, de outro, dão lugar aos respectivos terrenos selvagens, destrutivos, onde a onipotência, de um lado, e a ação voraz, de outro, acordam para salvaguardar o desmantelamento do tecido psíquico: o controle, seja pela vigilância onisciente, seja pela desenfreada ação, pretende escapar, nos dois casos, do fosso depressivo, e aquém dele, da franca insanidade.

topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados