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Resumo
Discurso pronunciado em 27 de janeiro de 2012, no Cemitério do Père Lachaise (Paris), durante a cerimônia de adeus a André Green.


Palavras-chave
paixão; amizade; pluralismo; Psicanálise


Autor(es)
Fernando Urribarri
é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica (APA), na qual dirige o Seminário de Pesquisa André Green. Em 2005, codirigiu o Colleque International de Cérisy à obra de Green, cujas atas foram publicadas pela PUF. É fundador da revista Zona Erógena (Buenos Aires), e autor de Entretiens avex André Green. La psychanalyse chemin faisant (Ithaque).


Notas
[1]   Como vários intelectuais de sua geração, André Green participara do famoso Groupe de théâtre antique de la Sorbonne, fundado por Roland Barthes em 1936 [nota do editor].

[2]   . O primeiro dos quais, La clinique psychanalytique contemporaine, foi publicado em outubro de 2012 (Paris, Ithaque) [nota do editor].



Abstract
Enlogy delivered on Jan. 27, 2012, at the Père Lachaise Cemetery (Paris), as a part of the farewell ceremony for André Green.


Keywords
passion; friendship; pluralism; Psychoanalysis

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 TEXTO

O legado de André Green: recordar, elaborar, assumir

The legacy of André Green: reminiscing, elaborating, accepting
Fernando Urribarri

Men must endure

Their going hence, even as they coming hither;

Ripeness is all. Come on.

[W. Shakespeare, King Lear, act v, scene 2.]

 

Há alguns dias, perdemos André Green. Pouco depois, fui informado de que no seu testamento, escrito em 2008, constava o desejo de que nesta despedida eu tomasse a palavra em terceiro e último lugar.

 

Com este gesto, André me legava o compromisso de testemunhar uma história compartilhada e assumir essa herança nos tempos que estão por vir.

 

"O afeto - dizia ele - é movimento em busca de forma." E me pergunto: Como dar forma transmissível ao legado de uma relação de mais de vinte anos? Como traduzir nossa extensa e intensa comunicação neste breve e solitário discurso? Como dar testemunho da generosidade e da coerência de seu fazer e pensar, tanto em público quanto na intimidade, que constituem o fundamento ético e afetivo de sua obra? Aqui estou eu como Santo Agostinho ante a questão do tempo: "Se ninguém me pergunta, sei; quando me perguntam, já não sei."

 

Buscando a saída do labirinto, recorro a Jorge Luis Borges, nosso amigo em comum: "A amizade é a paixão que salva os argentinos". É um bom ponto de partida. A amizade como paixão cosmopolita. A improvável amizade entre um portenho, bisneto de bascos e judeus russos, filho do movimento psicanalítico argentino, com um judeu do Cairo, descendente de espanhóis e egípcios, que assumiu seu desejo de ser um grande psicanalista francês. Uma paixão freudiana com sede em Paris. E pontes com Buenos Aires.

 

Quando digo paixão, tenho certeza de que todos nos recordamos dele. Por exemplo, me lembro de uma conversa num táxi que tomamos juntos, em Buenos Aires, em 1996. Foi na saída de uma palestra maravilhosa, polêmica, vibrante. André havia investido ali toda sua capacidade oratória. Passou-me então pela cabeça - e eu lhe disse - que talvez seu estilo no palco tivesse sido forjado no grupo de teatro da Sorbonne[1]. Com um olhar sério e um tom de cumplicidade, respondeu: "Meu estilo é a paixão pela verdade!"

 

Enquanto o ouvia no táxi, desfrutava do prazer de ter dirigido essa cerimônia, na qual o título de Professor Honorário da Universidade de Buenos Aires acabara de lhe ser outorgado. André estava feliz, agradecido, orgulhoso. Porém, confessou, não tanto pelos vários "Prêmios Nobel" com quem compartilharia agora essa honra, mas sim porque isso o aproximava um pouco mais, uma vez mais, de Borges. Esse amigo literário a quem visitou em sua casa em Buenos Aires em duas oportunidades inesquecíveis.

 

Amizades literárias, intelectuais, psicanalíticas. Amizades inspiradoras e cativantes. A paixão pela amizade impregnava André Green. Ela marcou sua vida, sua obra, sua relação comigo.

 

Será que não fui escolhido para falar a vocês justamente porque, mais que amigos, fomos mestre e discípulo e, no fundo, quem sabe, como pai e filho? Isto é tão claro quanto é claro que, para entender o que digo, mais vale evitar o lugar-comum, retrógado, que opõe as figuras do mestre e do pai à do amigo. É preciso, pelo contrário, considerar quão coerentes foram as ideias de André a respeito do pai como figura terceira (e terciarizante) com sua prática da análise, da transmissão e da amizade.

 

Lembremo-nos de sua formulação a respeito da função do pai marcada por suas teorias do trabalho do negativo e da terciaridade - ou seja, o pai como motor da subjetivação, como fonte do trabalho do negativo e da posição terceira do analista.

 

Além do pai edípico (e poderíamos dizer também: antes e depois dele), André Green postula uma outra figura do pai. Retoma o Freud de Psicologia das massas, que propõe uma identificação primária com o pai admirado, tomado como modelo, e não como rival. Sustenta que a relação com este pai idealizado e inspirador é a fonte da ideação, da simbolização, da sublimação, do pensamento. Este pai motor de subjetivação é a fonte da alteridade: como abertura amistosa não só ao outro semelhante, mas também à relação consigo mesmo.

 

E é esta figura terciária do pai que funda a posição transformadora do analista. Posto que, neste caso, a questão fundamental é: Do que é modelo o pai da identificação primária? A letra e o espírito da obra de André Green respondem: da autonomia subjetiva.

 

Sua paixão pela verdade era também uma paixão pela alteridade. Verdade e alteridade se conjugam em uma espécie de princípio freudiano contemporâneo: a psicanálise é um projeto que só pode se sustentar e avançar através da paixão pela autonomia - inseparavelmente individual e coletiva.

 

Dentro e fora do consultório, estes princípios foram assumidos em ato por André Green. Isto bem o comprova seu percurso intelectual, especialmente a partir do que chamamos "a guinada do ano 2000". Começando pelo próprio título do livro que abre esta fase: Ideias diretrizes para uma psicanálise contemporânea. Seu autor se lança a reinscrever todas as suas principais ideias no interior de um projeto coletivo de renovação pluralista da psicanálise, que busca superar a crise dos dogmáticos modelos pós-freudianos. O projeto de uma psicanálise ampliada, transformada, contemporânea de sua própria prática e do mais avançado do saber de seu tempo.

 

Ninguém ignora que André Green se lançou neste projeto no exato momento em que estava sendo consagrado na comunidade psicanalítica internacional como o mais reconhecido dos autores. Em outras palavras, em vez de sua própria teoria e de seu nome próprio, priorizou a construção de um novo paradigma freudiano, aberto, hipercomplexo, especificamente contemporâneo. Um novo programa de investigação clínica e teórica no interior do qual suas ideias pudessem intervir e promover um diálogo pluralista, um pensamento crítico e criativo.

 

Não creio que tenhamos ainda a medida da transcendência histórica (tanto ética quanto epistemológica) desta posição freudiana inédita, pluralista, construída por André Green. Possivelmente é o primeiro Grande Autor da história da psicanálise que milita contra o estabelecimento de mais uma corrente militante, de um enésimo discurso dogmático identificado com seu nome.

 

Poderíamos quase dizer que - quer se admita, ou não -, graças a ele, todos nos tornamos (ou poderemos nos tornar) psicanalistas contemporâneos. Já que nos movemos em um terreno que ele mapeou como ninguém, enfrentando os problemas que circunscreveu e nomeou. Sua obra é uma bússola que aponta para o futuro da psicanálise.

 

Tendo colaborado com André Green em cada um de seus livros e nos seus principais projetos dos últimos dez anos, tive a oportunidade de viver intimamente seu compromisso com a verdade e sua comovente abertura ao outro. Desde que me propus a ajudá-lo na preparação de Idées directrices (2001), compartilhando uma semana juntos, gravando nossas conversas para então elaborá-las e reescrevê-las como livro, até o ano passado, quando enfrentamos a tarefa de seleção e discussão de seus artigos inéditos a fim de compilar os dois volumes que serão publicados em breve[2]. Passando, é claro, pelos seus convites para escrever o posfácio de Illusions et désillusions (2010), ou o prefácio de Du signe au discours (2011). Eu sempre perguntava o que ele estava esperando, o que gostaria que eu abordasse ou priorizasse quanto à forma ou ao conteúdo. Em todas as ocasiões, me deu a mesma resposta: "Meu querido Fernando, deixo isso em suas mãos".

 

Hoje, mais do que nunca, me parece necessário compartilhar esta experiência. Queridos amigos e colegas de André Green: agora, está em nossas mãos. Cabe a nós recordar, elaborar e assumir sua herança. Cabe a nós fazer de seu fecundo legado um pensamento vivo.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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